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3 DISCURSO, ESTÉTICA E LINGUAGEM

3.1 PINTURA E FENOMENOLOGIA

Merleau-Ponty (2004, p. 26), em “O olho e o espírito” (1961), seu último grande ensaio filosófico acerca das artes visuais, ao abordar a natureza da representação, seu conteúdo, significados e fins, e a relação do artista com o mundo, afirma que uma teoria da pintura implica uma metafísica, ou seja, uma concepção de como o eu, o corpo, a mente e o mundo inter-relacionam-se. Em seus outros ensaios, como “A dúvida de Cézanne” (1945) e “A linguagem indireta e as vozes do silêncio” (1952), o filósofo recorre também a essa relação interna entre as teorias da pintura e da metafísica para desafiar algumas correntes filosóficas e científicas que discorriam sobre a ideia de percepção, sentido, imaginação e subjetividade humana.

É importante notar que, se toda teoria da pintura implica uma teoria metafísica, nem toda teoria metafísica oferece uma teoria da pintura. A noção de arte desempenha um papel central nos esforços de Merleau-Ponty para elaborar sua fenomenologia, no entanto, mesmo, por exemplo, na intensa reflexão de “A dúvida de Cézanne” a respeito da vida e da obra deste pintor, não está tão claro que, a partir dessa investigação fenomenológica, emerge uma filosofia da arte. Na verdade, há uma tensão, nos ensaios do autor, entre a tentativa de, por um lado, oferecer uma teoria filosófica geral e, por outro, fornecer explicações e interpretações particulares sobre o fenômeno artístico.

Em “A dúvida de Cézanne”, Merleau-Ponty (2004, p. 121-124) irá rejeitar a diferenciação entre o eu e seus atributos externos, ações e experiências. No domínio da arte, o filósofo francês evitará a dicotomia entre explicações internalistas da arte, que encontram o seu significado na vida ou nas intenções do artista, e explicações externalistas, que

olham para o social e o contexto do artista como fontes de significado das artes. Para esse autor, a arte, o artista e a vida dele são interdependentes, pois cada parte pode ou não explicar a outra, ou vice- versa. Além do mais, Merleau-Ponty vai apresentar uma forma de conceber a arte, como refletindo a vida de seu criador, mas não de modo transparente. Em outras palavras, ele vai argumentar que há uma relação interna entre trabalho e vida, mas que essa relação reflete contingências no modo como trabalho e vida se desenrolam.

A pintura de Cézanne é tanto um objeto para um estudo fenomenológico do filósofo, quanto fonte de uma análise fenomenológica em si mesma. Na interpretação de Merleau-Ponty (2004, p. 131-133), este pintor não ofereceu uma imagem do mundo “como ele é”, mas uma imagem do mundo “vindo a ser”, a partir da perspectiva do próprio pintor, não antes ou depois, mas como os atributos associados com o uso, o significado e o valor que lhe são aplicados. Aqui, o autor também contesta algumas teorias positivistas de percepção, segundo as quais o mundo se apresenta a nós como dados dos sentidos que são, então, interpretados e pré-configurados na mente. Ele argumenta, ainda, que a perspectiva particular de consciência de alguém não deve ser entendida apenas como uma tela de subjetividade que, ao retirá-la, permitiria o acesso ao próprio objeto, já que esse objeto de experiência, como compreendido pela fenomenologia, é, em parte, constituído pela perspectiva da consciência.

Merleau-Ponty toma o que foi uma disputa artística de longa data entre aqueles que construíram a “verdade” da pintura em termos do naturalismo, e os que encontraram essa “verdade” na expressão de uma inspirada mente criativa e a levantaram ao nível de sistemas metafísicos. Nenhum sistema ou dicotomia que se constituem juntos serão suficientes como síntese da compreensão humana do mundo. Além disso, porque justamente a fenomenologia rejeitou a dicotomia entre realismo e idealismo, Cézanne é descrito por Merleau Ponty (2004, p. 126-127) como se recusando a ser fixado entre os pólos do impressionismo e do simbolismo, entre uma noção de arte que mostra apenas as aparências e uma noção dela como fundamentada na vida de uma artista. Talvez, esse entendimento seja uma resposta idiossincrática ao mundo.

Ainda nessa esteira, Merleau-Ponty (2004, p. 131-133) não afirma que Cézanne tinha alguma capacidade especial para a visão que lhe permitiu mostrar o que os outros não podiam ver. Realmente, se o filósofo francês está certo de que este pintor nos mostra algo sobre como chegamos a ver o mundo, isso poderia, em princípio, ser verdade com

relação à visão do mundo dos impressionistas. Em vez disso, Cézanne mostra-nos, via sentido pictórico, que Merleau-Ponty poderia descrever, por meios filosóficos, que a nossa relação com o mundo se dá através de seres encarnados, com uma compreensão incompleta do mundo. Dessa maneira, o significado que experimentamos deste mundo, não surge de alguma paisagem determinada e imutável de objetos que nossa percepção segue passivamente, nem da nossa mente impondo preexistentes categorias sobre o mundo.

Mais do que isso, o significado de nossa experiência vem de nossa confrontação perceptiva e corporal com o mundo, a partir de dentro dele. Tal sentido é dado ao mundo antes de qualquer sentido ou significado que possa advir de nosso julgamento intelectual do que encontramos à nossa volta. Os objetos estão plenos de significados, por causa da nossa relação sensório-motora para com eles, pois o fato de estarmos defronte de um objeto implica, para os seres que podem se mover através do espaço, que podemos estar atrás dele também.

A descrição fenomenológica expressa que os significados dos objetos têm como consequência pertencer à órbita de tais seres encarnados, isto é, a experiência de uma coisa real não pode ser explicada pela ação dessa coisa em minha mente: o único caminho para uma coisa a agir sobre uma mente é o oferecer a ela um significado para se automanisfestar a ela, para constituir-se defronte à mente em suas articulações inteligíveis (MERLEAU-PONTY, 1942, p. 215). Esse é o motivo pelo qual a atividade organizadora de nossa percepção encarnada se esconde em sua operação, deixando-nos ver as coisas do mundo, habitualmente, como se determinadas e existentes independentemente de nós.

O filósofo francês interpreta Cézanne como se recusando a render-se a essa forma habitual de ver. Na pintura de Cézanne, não vemos a revelação de alguma característica do mundo a que visões anteriores tinham sido cegas, como, por exemplo, a cor que os impressionistas mostraram estar inerente nas sombras. Em vez disso, vemos as condições sob as quais a nossa visão do mundo é almejada. Na verdade, Merleau-Ponty (2004, p. 122, 125) assinala um número de técnicas pictóricas pelas quais a geração da nossa experiência é representada; entretanto essas técnicas pictóricas ou características não ocupam algum lugar específico no mundo real. Assim, por exemplo, Cézanne pinta uma multiplicidade de contornos em torno de uma figura para minar a impressão habitual de que as arestas das coisas existem antes da nossa percepção que atribui sentido a elas.

Pinturas que representam as coisas do mundo são as próprias coisas no mundo, e Merleau-Ponty não explica como a imagem do mundo que Cézanne apresenta vai escapar de ser vista por nós, da mesma forma que o resto do mundo é. Ou seja, se os objetos no mundo tomam a forma como os percebemos, da mesma maneira que os objetos em uma pintura tomam a forma como os percebemos, então o que poderia a pintura nos mostrar, já que, olhando para o mundo real, ele já nos mostrou, ou supostamente, mostrou?

Uma resposta sugerida, mas não explicitamente defendida por Merleau-Ponty, é que as técnicas de Cézanne constituem descobertas pelas quais ele é capaz de fazer notório ou evidente algo que faz parte da experiência visual, mas não recriamos, devidamente, essa experiência visual. Assim, Merleau-Ponty (2004, p. 127-128) distingue entre uma pintura de uma paisagem de Cézanne em que ele mostra a “natureza pura” e uma fotografia da mesma cena que, invariavelmente, sugere o trabalho de um homem, suas realizações e sua presença imediata. Se a reprodução mecânica mostra um já categorizado e habitado mundo, isso não seria porque o fotógrafo pretende que seja assim, mas porque esse fotográfo, na comparação de Merleau-Ponty, não possui os meios técnicos para mostrar o mundo de qualquer maneira, exceto como estamos habituados a vê-lo.

Se a pintura de Cézanne impede a experiência de ver uma imagem, justamente como se vê o mundo, não é porque sua descrição da paisagem deixa fora características que a fotografia deixaria dentro, é porque o pintor, ao contrário do fotógrafo, emprega uma técnica que chama a atenção para as formas em que os objetos são dados em sua individuação, significado e forma. Portanto, na referência de Merleau- Ponty (2004, p. 126-127) ao que Émile Bernard descreveu como “suicídio de Cézanne”, apontando para a realidade enquanto negando-se os meios para alcançá-la, frisamos que não são algumas técnicas pictóricas que são negadas, mas aquelas como a perspectiva matemática, pela qual uma pré-formada, familiar e ordem natural é imposta ao fluxo da experiência.

O que Cézanne faz, na visão de Merleau-Ponty, é tematizar esse uso da perspectiva, isto é, o pintor faz a artificialidade da perspectiva marcante em sua obra, divulgando-a de uma forma que permite que ela seja refletida como uma convenção. A sua revogação da perspectiva também é importante para o caminho em que demonstra o pintor desistir de um tipo de controle, abandonando a si mesmo ao caos das sensações. Aqui, Merleau-Ponty (2004, p. 124-125) refere-se a mais do que sensações exclusivamente visuais. Ele argumenta que as sensações não

são experimentadass individualmente, uma após a outra, mas de modo global, cada qual condicionadas às outras, de acordo como elas todas são reveladas.

Merleau-Ponty ainda se refere à observação de que Cézanne pode mesmo ser capaz de pintar até odores, para destacar que existe uma unidade das propriedades sensíveis das coisas na experiência, antes de serem submetidas às distinções da mente. Tais sensações holísticas implicam o papel do corpo na constituição dos objetos da experiência. Isso não é a experiência de alguém afetada pela sinestesia, mas um armazenamento dos fundamentos da experiência da perspectiva vivida de alguém, antes que seja submetida aos julgamentos categorizados e individualizados do intelecto.

Já em sua discussão sobre a técnica de Cézanne, Merleau-Ponty (2004, p. 124) sugere que aqueles artistas que continuam uma tradição tendem a ser cometidos a essas dicotomias, como entre sensação e compreensão, enquanto aqueles que iniciam novas tradições tendem a renunciar a essas dicotomias. Podemos perceber, portanto, que Cézanne não escolhe entre representar as coisas como elas são e a forma como elas aparecem. Em vez disso, ele irá representar a matéria da maneira que ela toma forma, o nascimento da ordem através de uma organização espontânea.

Esse fato significa que, inicialmente, Cézanne desenha os contornos dos objetos em uma natureza morta, sem o emprego de uma linha contínua, para qual se fará um objeto da forma (MERLEAU- PONTY, 2004, p. 128-129). Mais tarde, no lugar disso, ele trata o contorno como o limite ideal para o qual os lados de uma maçã diminuem. Esses lados visíveis, logo, referem, como presenças para ausências, aos lados da maçã que não vemos, mas para o qual a nossa presença sensório-motora no mundo está orientada.

Aqui, e novamente no final do ensaio, Merleau-Ponty (2004, p. 135, 140) refere-se a filósofos e pintores, como tal, iniciadores de uma tradição, sugerindo que o filósofo e o pintor estão envolvidos no mesmo tipo de projeto, apesar das diferenças no método e no material. A importante diferença, então, entre as investigações de Cézanne e as de Merleau-Ponty não é o resultado, mas o fato de que o pintor pode não estar ciente ou, no mínimo, não ser capaz de articular a sua consciência da verdade da experiência que ele tem revelado, ao passo que o filósofo pode ser capaz de articular a verdade da experiência que ele tem descoberto, descortinado.

Entretanto, ao contrário do sucesso do pintor em trazer recursos daquela experiência para uma inteligibilidade, a articulação da

experiência do filósofo lida com o risco de distorcê-la. Os riscos da articulação da experiência do filósofo introduzem distorções, pois lançam a experiência justamente naquelas representações explícitas e objetivas que a descrição científica emprega, mas que a fenomenologia tem sublinhado é estranha à experiência, uma vez que ocorre a uma consciência encarnada. Na sua tardia e inacabada obra “O visível e o invisível”, Merleau-Ponty parece buscar resolver essa diferença entre a experiência e a sua articulação linguística, sugerindo que as duas estruturas são interdependentes.

Nesse ponto, pelo menos, o seu tratamento serve como uma recusa à acusação de que a filosofia da arte invariavelmente subordina arte à filosofia ou deforma a arte, fazendo-a amoldável às análises filosóficas. Na verdade, Merleau-Ponty reconhece, de certa maneira, que o artista pode se envolver em uma espécie de análise filosófica da experiência que não é totalmente aberta ao filósofo. A distinção entre o filósofo e o pintor se coloca novamente em “O olho e o espírito”, em que Merleau-Ponty (2004, p. 12) descreve o ponto de vista científico que trata objetos e seres no mundo como essencialmente suscetíveis à manipulação e ao controle. Ele diz, por outro lado, que o domínio de investigação que pertence às artes é precisamente este mundo humano que o operacionalismo, forma de fundição do mundo em termos instrumentais, ignora.

Enquanto a literatura e a filosofia avaliam o que elas tratam, podem ter uma relação de julgamento para com seu tema, o pintor está encarregado de olhar para tudo, sem ser obrigado a avaliar o que ele vê. Merleau Ponty (2004, p. 13-14) diz que o pintor sozinho pode ficar fora da esfera de ação e juízo, como se na vocação do pintor houvesse alguma urgência acima de todos os outros direitos sobre ele. Embora aqui ele pareça invocar uma noção modernista da autonomia artística, na qual a arte é, em sua essência, considerada imune às exigências da prática, da moral e das esferas políticas, Merleau-Ponty entende autonomia artística não como uma rejeição das reivindicações do mundo sobre o artista, mas como a busca de uma reivindicação muito maior.

A reivindicação que Merleau-Ponty desenvolve em “O olho e o espírito”, que representa uma mudança de sua predominante preocupação com a visão nos ensaios anteriores, aborda o papel do artista em expressar um modo de existir no mundo que não é apenas próprio dele, mas é o do grupo coletivo, sociedade ou o meio ao qual ele pertence. Porém é precisamente em ausentar-se de uma forma de existência autônoma, a partir das demandas de ação e de julgamento que

definem o pertencimento a uma sociedade, que o artista é capaz de alcançar tal expressão geral e não individualista.