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4 CINEMA, SER E A NOVA PERSPECTIVA ONTOLÓGICA

4.1 CARNE, MUNDO E VISIBILIDADE

4.1.1 Quiasma e Rizoma

Podemos dizer que é no quarto capítulo da obra “O visível e o invisível”, intitulado “O Entrelaçamento ‒ o Quiasma” que a noção desse conceito será desenvolvida mais intensamente. Aqui Merleau- Ponty traça inter-relações sutis e complexas, em uma tentativa de mergulhar mais a fundo na análise do indivíduo, articulando, neste capítulo, a própria essência de seu pensamento fenomenológico anterior. O que faz o filósofo francês é traçar os principais aspectos que compõem uma estrutura quiasmática, e de onde e como ela se inscreve na multiplicidade do ser.

O que ele chama de quiasma, marca o próprio movimento de fenomenalização, que não é uma relação superveniente estática entre coisas e indivíduos. Eles, em sua rica diversidade, articulam-se somente dentro do dinamismo quiasmático da interimbricação (empiétement) e diferenciação que faz que a deiscência ou o explodir fenomenal (éclat) seja chamada de carne. Por essa razão, qualquer análise que procure resolver ou separar o que é aqui entrelaçado, somente conseguirá torná- lo ininteligível, o que implica que uma filosofia que reconheça o quiasma dependerá de um novo tipo de inteligibilidade (MERLEAU- PONTY, 2009a, p. 240).

Falar de quiasma é realmente heterogenizar e singularizar um movimento e uma articulação que, sendo difundida, toma múltiplas formas. Podemos falar, por exemplo, da inter-relação quiasmática do sentiente e do sensível, do corpo e do mundo, das modalidades

sensoriais umas com as outras, da visibilidade e do invisível, do eu- mesmo e de outrem, da ideia e da carne, ou do discurso e do significado. Estas inter-relações podem ser compreendidas em unidade apenas na medida em que são elas próprias interligações quiasmáticas, o que implica que não podem ser colapsadas em qualquer identidade ou coincidência fundamental.

No entender de Merleau-Ponty (2009a, p. 235), esses múltiplos quiasmas se amontoam em um único somente, não em termos de síntese, de uma singular unidade sintética, mas sempre no sentido de Uebertragung, de invasão, de imbricação, isto é, da propagação do ser. Por essa razão, ele pode descrever o quiasma como a verdade da harmonia preestabelecida leibniziana, uma verdade, para além disso, que não se limita a uma singular unificação de perspectivas monádicas, mas há uma interligação de totalidades unificadas com antecedência, por meio da diferenciação, o que quer dizer, na verdade, articulações quiasmáticas.

Considerando que essa harmonia preestabelecida pertence a uma positiva ou clássica ontologia, ou seja, em uma ontologia da substância, o pivô do quiasma é insubstancial, um “nada”. Todavia não é um nada absoluto, um puro nada, pois há uma intimidade entre o visível e a visão, e também essa proximidade não é recolhida a uma coincidência. As coisas não estão lá fora por si só, já que meu olhar envolve as coisas e as interage com a sua própria carne. Mas o que é ver uma cor, por exemplo? Levando adiante a adoção da psicologia da gestalt, Merleau- Ponty (2009a, p.128-129) sugere que o vermelho que vejo não pode ser um simples choque pontual ou uma qualidade, porque, para ver o vermelho, exige-se uma focalização, no entanto, breve.

Além disso, sua particularidade é internamente estruturada de acordo com a sua textura ou configuração, como uma modalidade de “plano” ou de “quente”. Esse vermelho é também uma pontuação no campo das coisas vermelhas, o que lhe confere um significado através de sua diferença estrutural de todos os outros vermelhos. O mesmo comprimento de onda ou quale (película de ser sem espessura) simplesmente não é o mesmo vermelho quando participa da bandeira da Revolução ou das vestes de um promotor público. O sentido desse vermelho visível é estruturado de acordo com uma imensa estratificação invisível de relações que, silenciosamente, pesam sobre e através do nosso olhar invisível (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 129).

Do lado do ver, o nosso olhar envolve e apalpa a coisa “como uma coisa”, tal como sua face. Assim como uma mão antecipa a forma do objeto que está prestes a agarrar, o olhar possui uma pré-possessão

do visível, uma arte de interrogação ou uma inspirada exegese. O parentesco que permite essa solicitação é forjado por meio do estatuto essencial do corpo como palpado e palpante ou como visto e vidente. Como salienta o autor, em seu retorno à imagem husserliana, há mais coisas em jogo do que uma simples mudança de atenção. Quando um sujeito que toca desce ao nível das coisas, o palpante é revelado como uma atividade inegavelmente mundana, consumada por uma consciência corporal (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 130).

Assim, a reversibilidade do palpante e do palpado é o distanciamento, o espaçamento ou uma imbricação (empiétement) por meio da qual a experiência é possível, um espaçamento a priori antes da existência e da essência. Outra imbricação, ou mesmo certo tipo de transposição (enjambemet), ocorre entre a visão e o tato, o visível e o tangível, e o corpo, que é o lugar dessa dobra, desvio ou quiasma. Isso leva à necessária conclusão de que o vidente não pode possuir o visível, a menos que aquele que vê seja possuído pelo visível. De fato, a coisa só pode aparecer porque o vidente não é nada, e isso se deve à espessura da carne entre o vidente e a coisa. O corpo não é apenas uma conexão entre o “em si” e “para si”, porém é um sensível para si ou um exemplar sensível (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 131-132).

Todo o ser corporal envolve profundidades e latências, e o corpo humano, sensível e sentiente, é uma variante notável. Assim, a reversibilidade do ser corporal revela um paradoxo do ser, e não um paradoxo do homem. Diferentemente da ontologia clássica de um puro em si mesmo e de um puro para si mesmo, o corpo pode ser compreendido como um nó, uma intriga no tecido do mundo que é, simultaneamente, sujeito e objeto, como uma estrutura de visibilidade. Portanto, entre o mundo e meu corpo, há uma recíproca inserção e entrelaçamento de um no outro (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 133- 134).

Nesse sentido, a articulação quiasmática é multidimensional. O que Merleau-Ponty (2009a, p. 145-146) insiste é sobre o não fechamento que permanece característica do quiasma. É esse vazio, perda não intencional, ou hiato que permite as linhas de vigor e as dimensões da visibilidade, sendo que o que vem à tona aqui é ausente de toda a carne, uma negatividade que permeia essa carne e o corpo e que não é, como já vimos, um puro nada. Na verdade, há uma deiscência do que vê no visível, e do visível no que vê, marcando uma abertura diferenciada, um ponto de passagem do quiasma, que é um núcleo vazio.

É importante notar que há outro conceito filosófico que seguiria, aparentemente, algumas dessas características, mas, no fundo, diverge

em muitos aspectos. Trata-se do rizoma, que é uma palavra advinda da Botânica, alusiva aos bulbos e aos tubérculos, órgãos geradores de outras plantas, e que, quando apropriado pelos filósofos Deleuze e Guattari (1995), significa a conexão por todos os lados e a feitura de alianças, como uma linha do meio. O rizoma descreve as conexões que ocorrem entre os mais diferentes e os mais semelhantes objetos, lugares e pessoas.

Na palavra dos autores:

Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, linguísticos, mas também, perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos [...]. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 16).

O rizoma mapeia um processo de pensamento relacional, transversal, de rede, um modo de ser sem localização da construção desse mapa como uma entidade fixa. Linhagens ordenadas de corpos e ideias que seguem sua base originária e individual são consideradas como formas de pensamento arborescente, e essa metáfora de uma árvore como a estrutura que ordena epistemologias, enquadramentos históricos e esquemas homogêneos é invocada pelos filósofos franceses para descrever tudo o que o pensamento rizomático não é.

Esse conceito pode ser compreendido como um manifesto, uma nova imagem do pensamento destinada a combater o privilégio secular da árvore que desfigura o ato de pensar e dele nos desvia. Para os autores, é flagrante que muitas pessoas têm uma árvore plantada na cabeça, quer se trate de se buscar raízes ou ancestrais, de situar a chave de uma existência na infância mais remota, ou ainda destinar o pensamento ao culto da origem, do nascimento, do aparecer em geral (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 34).

Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não signos. O rizoma não se deixa reduzir nem ao uno nem ao múltiplo. Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções movediças. Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual

ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 31).

Na explicação de Carvalho (2010, p. 161-162):

O rizoma possui vários princípios, que dizem respeito à sua forma de interagir dentro de um sistema. Os dois primeiros são os princípios de conexão e heterogeneidade, que requerem que qualquer ponto de um sistema rizoma pode ser ligado a outro ponto qualquer, ou seja, o sistema não é uma estrutura hierárquica. O terceiro princípio respeita a multiplicidade, cuja importância está, não nos pontos terminais das relações, mas no modo como essas ligações têm lugar, ou seja, no relacionamento intersubjectivo entre os elementos das regiões, ou seja, as linhas entre os pontos é que são importantes. O quarto princípio é chamado de princípio de apontamento de ruptura e diz-nos que num rizoma pode acontecer uma ruptura num dado ponto, mas o que estava em curso não será interrompido e recomeçará novamente numa das antigas linhas ou em novas linhas [...]. O quinto e sexto princípio do rizoma são os de cartografia e decalcomania que nos dizem que o rizoma não é um mecanismo traçador, mas que é à partida um mapa com múltiplos pontos de entrada. Podemos dizer, que pelo facto de ser um mapa encaminha a construção do nosso subconsciente de forma orientada no sentido de uma experimentação de contacto com o real, reproduzindo também sucessivamente esta experimentação pela circulação ou intersecção em cada fase espaço em cada ponto de entrada do rizoma. O rizoma é portanto um sistema sem centros, não hierárquico, um sistema não significante sem um guia e sem uma memória organizada, ou uma central de automação, definido somente pela circulação dos estados, ou seja, paradigmas ou conceitos em articulação.

Deleuze e Guattari (1995, p. 10) descrevem o rizoma como uma ação de muitas entidades abstratas do mundo, incluindo música, matemática, economia, política, ciência, arte, ecologia. O rizoma concebe como cada coisa e cada corpo (todos os aspectos de concreto,

entidades abstratas e atividades virtuais) podem ser vistos como múltiplos nos seus movimentos inter-relacionais com outras coisas e corpos. A natureza do rizoma é a de uma matriz em movimento, composta de peças orgânicas e não orgânicas, formando conexões simbióticas de acordo com rotas transitórias e ainda indeterminadas.

Aqui, podemos falar em um pensamento rizomático, como método do antimétodo, que comporta, pelo menos, três reflexões, analisadas sucintamente pelo autor François Zourabichvili (2004, p. 99). Ele diz:

[...] 1) pensar não é representar (não se busca uma adequação a uma suposta realidade objetiva, mas um efeito real que relance a vida e o pensamento, desloque o que está em jogo para eles, os relance mais longe e alhures); 2) não há começo real senão no meio, ali onde a palavra “gênese” readquire plenamente seu valor etimológico de “devir”, sem relação com uma origem; 3) se todo encontro é “possível” no sentido em que não há razão para desqualificar a priori certos caminhos e não outros, todo encontro nem por isso é selecionado pela experiência (certas montagens, certos acoplamentos não produzem nem mudam). Nesse sentido, formações rizomáticas podem servir para superar e transformar estruturas de pensamento e de julgamento rígido, fixo ou binário. O rizoma é antigenealogia. Um rizoma contribui para a formação de um planalto através de suas linhas de devir, que formam ligações agregadas. Não há posições singulares nas linhas de rede de um rizoma, apenas pontos conectados que formam conexões entre as coisas. Um platô rizomático de pensamento, sugerem Deleuze e Guattari, pode ser alcançado por meio da consideração do potencial de ideias e corpos múltiplos e relacionais (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 11).

Aqui, a noção de devir pode ser vista como uma série de cruzamentos e de linhas a que faltam coesão, centro, retenção (memória), expectativa ou significação que são, portanto, praticamente impossíveis de localizar ou de destruir (em distinção de uma estrutura composta de pontos). Temos a figura do mapa de um devir, ou seja, uma linha de fuga que envolve a deformação das formas de conteúdos, formas de expressão e de uma rede de intensidades, movimentos e sensações.

Esse fato implica um processo transformativo ou distributivo horizontalmente, sem começo ou fim, em distinção daquilo que é

organizado verticalmente, enraizado em um único local. Matematicamente, é o que não faz distinção entre o um e o múltiplo, porque opera por subtração de qualquer ponto de partida dado, e não por adição. Ainda, consideramos que o rizoma não é redutível nem ao um nem ao múltiplo. Ele não tem começo nem fim, mas possui sempre um meio, a partir do qual ele cresce e se extravasa.

Mais do que a realidade que está sendo pensada e escrita como uma ordenada série de totalidades estruturais, em que conexões semióticas ou taxonomias podem ser compiladas a partir da raiz em direção à árvore, a história do mundo e de seus componentes pode ser comunicada por meio de operações rizomáticas de coisas, movimentos, intensidades e formações polimórficas. Rizomas não têm nenhuma ordem hierárquica em relação às suas redes de capitalização, já que o pensamento rizomático funciona como uma configuração produtiva no estilo aberto-fechado, em que associações e conexões randômicas impulsionam desvios e abstratas relações entre componentes. Qualquer parte dentro de um rizoma pode ser ligada à outra parte, formando um meio que está descentrado, sem fim distintivo ou ponto de entrada.

Como uma sequência não homogênea, o rizoma descreve uma série que pode ser composta de causalidade, acaso e ligações aleatórias. Conexões rizomáticas entre corpos e forças produzem uma energia ou entropia afetivas. Consequentemente, a interação de uma força determinada social, politica ou culturalmente e qualquer corpo dado produz associações de ideias. A corrente descontínua é o meio para a rede de expansão do rizoma, assim como é também a circunstância contextual para a produção da cadeia.

Deleuze e Guatarri (1995, p. 46) entendem que cada operação no mundo, como a troca afetiva de intensidades rizomaticamente produzidas, cria órgãos, sistemas, economias, máquinas e pensamentos. Cada corpo é impelido e perpetuado por inúmeros níveis de forças afetivas de desejo e suas materializações de ressonância. Variações para cada sistema dado podem ocorrer por causa de intervenções no âmbito da repetição cíclica e sistemática. Como o rizoma pode ser constituído de um corpo existente, incluindo pensamentos existentes que podem exercer influência sobre outro corpo, ele é necessariamente um tópico que está relacionado a princípios de diversidade e de diferença através da ideia de repetição.

Desse modo, a escrita rizomática, o ser ou o devir não são simplesmente um processo que assimila coisas, mas sim um meio de transformação perpétua. O meio relacional que o rizoma cria dá forma a ambientes evolucionários, onde diversas relações alteraram o curso de

como fluxos e desejos coletivos desenvolvem-se. Não há nenhuma função de estabilização produzida pelo meio rizomático, nem há criação de um conjunto de partes virtuais e dispersas. Em vez disso, através do rizoma, pontos formam agrupamentos, múltiplos sistemas associam topologias possivelmente desconectadas ou quebradas; por sua vez, os agrupamentos e as tipologias alteram, dividem e multiplicam por meio de encontros e de gestos díspares e complexos.

O rizoma é qualquer rede de coisas postas em contato com um outro, funcionando como uma máquina de montagem para novos conceitos, novos órgãos, novos pensamentos. A rede rizomática é um mapeamento das forças que se movem e imobilizam organismos. Corpos e coisas, incessantemente, assumem novas dimensões através de seu contato com entidades diferentes e divergentes ao longo do tempo. O rizoma assinala uma maneira divergente de conceituar o mundo que é uma das características da filosofia de Deleuze e Guatarri como um todo.

Assim, o rizoma é uma importante forma de pensar sem recorrer à analogia ou às construções binárias. Pensar em termos de rizoma é revelar as múltiplas formas pelas quais podemos abordar qualquer pensamento, atividade ou conceito. O que sempre trazemos conosco mesmos são muitas e diversas maneiras de entrar em qualquer corpo, de pensamento múltiplo e de ação através do mundo.

Voltando à noção de quiasma, é importante detalhar, neste momento, um fundamental princípio ontológico, que é o da reversibilidade, que o autor francês nomeia de “verdade última” (vérité ultime) (MERLEAU-PONTY, 2009a, p. 150). Essa noção emerge de suas explorações anteriores a respeito da ambiguidade do ser-no-mundo e dos enigmas do palpante e palpado (tocante e tocado), do vidente e visível. Ele explora a noção de Ineinander (um no outro), ou entrelaçamento, e a estrutura paradoxal do envolvente e envolvido como fundamental fato de que o corpo é, ao mesmo tempo, um poder de explorar o mundo e é, necessariamente, do mundo.

Percebemos que essa característica não se encontra na noção de rizoma, que está aberto aos devires-intenso, aos devires-animal, e versa a respeito dos devires em nossas semelhanças com os outros, as coisas, os animais ou os vegetais. Logo, há, em um plano de imanência, exclusivamente o caos, ou o ser já é uma instauração do caos, gênese no caos, e toda essa criação é sempre especial (DELEUZE-GUATTARI, 1992, p.15).

Já o quiasma é atraído por uma transcendência (distância) de ser que não se completa como um transcendente na imanência. É uma

imanência não intencional que, como diz Merleau-Ponty (2009a, p. 121), não é nem composição, nem separação incondicional (positivismo e negativismo) ao ser. Seguramente, toda descrição do ser para Merleau- Ponty não exaure sua infinitude nem suprime sua transcendência. Pontuamos aqui que o termo transcendência a que se refere o autor francês é a disparidade na imanência da experiência, e não o transcendente a que se reportam Deleuze-Guattari (FURLAN, 2011, p. 117).

Prosseguindo na análise a respeito da reversibilidade, podemos ver que, na “Fenomenologia da percepção”, Merleau-Ponty discute a relação entre vidente e visível, junto com a noção de tocante e tocado. Justamente como o meu corpo pode, em princípio, reverter a sua atitude entre tocante e ser tocado, assim como entre as minhas duas mãos, o meu corpo é também um poder para ver e, em tese, visível em si mesmo. No entanto, essa reversibilidade potencial nunca é realizada, e meu corpo não é em si visível, na medida em que ele está vendo. Invocando a ideia de um espelho, podemos vislumbrar o meu olhar vivo quando um espelho na rua inesperadamente reflete minha própria imagem de volta para mim (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 135).

Nossas estruturas são de natureza visível, como Merleau-Ponty (2006, p. 8) entende, na medida em que o indivíduo pode ser seu exterior, e o corpo do outro pode ser o outro dessa própria pessoa. Dessa forma, o outro aparece através de comportamentos do corpo visível, sem realmente estar contido lá, e a visão é o olhar se preparando para o mundo visível, e é por isso que o outro olhar não pode existir sem algum indivíduo. Há uma ambiguidade aqui que não é um raciocínio por analogia. Outra pessoa pode aparecer precisamente porque todo ser é uma visão encarnada e nunca transparente para ele mesmo (MERLEAU- PONTY, 2006, p. 471-472).

Esse aspecto sugere que o corpo é o lugar de uma fundamental imbricação (empiètement) entre sentiente e sentido, uma essencial sensibilidade pela qual o ser em si e outros podem aparecer. Na obra “O olho e o espírito”, por exemplo, o filósofo discute como a pintura tem um acesso privilegiado à reversibilidade entre aquele que vê e o que é visto, bem como a possibilidade de uma compreensão de uma reversibilidade entre as dimensões da imagem e das coisas (MERLEAU- PONTY, 2004, p. 22 e 34).

A estrutura de proliferação de reversibilidades se repete em “O visível e o invisível”, tal qual um elemento basilar da carne, como o lugar de toda relação quiasmática, sendo capaz de estruturar uma completa ontologia e um novo entendimento da intersubjetividade,

como também da intercorporeidade. Em ambos os casos, a reversibilidade pode ser reconhecida como um princípio possível, porém