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1 A ARTE CINEMATOGRÁFICA EM BASES REFLEXIVAS

1.2 O CINEMA É UM PENSAMENTO

1.2.2 Jean-Luc Godard

Faremos aqui uma exposição sucinta da importância do cinesta Jean-Luc Godard para as reflexões do cinema. No último capítulo, retomaremos o tema e o mostraremos de forma mais amplificada nas relações intrínsecas entre o cinema godardiano e as ideias merleaupontianas.

Godard é membro fundador, com os cineastas François Truffaut, Jacques Rivette e Eric Rhomer, do movimento Nouvelle Vague francesa, na década de 1950, fortemente influenciado pelos escritos teóricos de André Bazin e pela pedagogia crítica do fundador da Cinemateca francesa, Henri Langlois. Dentre as obras de seus colegas, o cinema godariano é o menos conhecido, o menos visto e, talvez, o menos compreendido. No entanto, seu rico acervo de obras, muitas vezes difíceis, constitui um cinema; incluem-se aí, projetos inacabados e ensaios sobre vídeo, um corpus que é o mais autoconsciente.17

Essa autoconsciência se faz visível, apresenta-se como o trabalho da imagem, o que pode explicar a infeliz experiência do espectador comum, que, por amor à ilusão, desaprendeu a ver precisamente a imagem. Com o cineasta francês, a questão que anima os escritos de André Bazin, “O que é cinema?”, torna-se uma busca, uma missão e um problema permanente para o próprio cinema. De semelhante modo, como o pintor Cézanne, Godard sabe muito bem que o que é possível para o cinema não pode ser encontrado, exceto na obra em que ele está

17 Ver: GODARD, Jean-Luc. Godard par Godard. Paris: Cahiers du cinéma, 1950-

trabalhando (BLANCHOT, 1955, p. 246). O “verdadeiro cinema”, o do gesto puramente cinematográfico, pode ser sempre criado e atualizado. É preciso amá-lo, cegamente, de todo o coração (GODARD; ISHACHPOUR, 2000, p. 41).

Nesse sentido, o cineasta é um operador principal em seu trabalho, pois entre som e imagem, imagem e escrita, voz e texto, música e som ocorre uma nova criação e o efeito de um “cinema puro”, ou seja, aquele que traz lágrimas aos olhos. (BERGALA, 1999, p. 240). Todavia, ao mesmo tempo em que há a beleza da criação, é impossível dissociar do cinema o mal estar em que o trabalho se inscreve, que diagnostica, lamenta e chora a sua doença, que é o fracasso dessa arte para cumprir o seu papel, a sua recusa ou o esquecimento que ela é feita para pensar, é um instrumento poderoso de pensamento. Em suma, o trabalho de Godard situa-se no limite desse paradoxo, do cinema que chora o esquecimento do próprio cinema, mas que não aspira negar ou superar a possibilidade de se pensar com ele e sobre ele.

Esses aspectos podem ser vistos em seu filme intitulado “Duas ou três coisas que eu sei dela”, 1966 (Deux ou Trois Choses Que Je Sais d'Elle). Tal filme não pode ser considerado uma ficção, já que não há enredo, nem forma dramática, nem personagens que sustentem uma trama narrativa. Essa obra fixa-se, em grande parte do tempo, sobre as imagens de Paris, com seus prédios em construções, seus conjuntos habitacionais e seus habitantes despersonalizados. Também não é um documentário a respeito de Paris, pois há cenas com atores e textos visivelmente decorados, há ainda montagens, cenas tomadas em estúdio e um grande número de imagens gráficas tiradas de revistas ou de embalagens de produtos de consumo (MACHADO, 2004, p. 18).

Trata-se aqui, conscientemente, de um “filme-pensamento” ou de um “filme-ensaio”, no qual o tema da reflexão pode ser o mundo urbano sob a égide do consumo e do capitalismo, tomando como pano de fundo a forma como se dispõe e se organiza a cidade de Paris. É uma espécie de ensaio filosófico-antropológico em forma de um romance audiovisual. O curisoso nesse filme é a maneira como Godard passa do figurativo ao abstrato, ou do visível ao invisível, manejando apenas com o recorte operado pelo enquadramento da câmera. Por exemplo, vemos, em um café de Paris, uma pessoa anônima colocar açúcar no seu café e mexer o líquido com uma colher (MACHADO, 2004, p. 18-19).

Repentinamente, surge um close-up da imagem da xícara, o café se transforma em uma galáxia infinita, com bolhas explodindo e o líquido escuro girando em espirais. Mais à frente, uma mulher, em sua cama, fuma um cigarro antes de dormir, porém um primeiríssimo plano

transfigura completamente o fumo ardente do cigarro, transformando-o em um tipo de mandala, um círculo mágico que emite as cores do arco- íris.

Um dos pontos mais relevantes da preocupação do cineasta francês com o cinema e o pensamento encontra-se na sua relação com a pintura, em que o sentido das imagens ‒ ora mescladas entre a película e o vídeo, ora trabalhadas digitalmente com cores aberrantes em filmes como Sauve Qui Peut (la Vie) (1979), Passion (1982), Je vous salue Marie (1985) e Éloge de l'amour (2001) ‒ torna-se uma promessa de imensa esperança no mundo em que habitamos. Por isso, a sua distância de um tipo de cinema que é sobre e para o desejo do sujeito e o sujeito do desejo, já que a felicidade de uma imagem para Godard são afetos impessoais que não passam despercebidos (GODARD; ISHACHPOUR, 2000, p. 32-33).

Assim, de modo mais amplo, afirmamos que Godard pode ser considerado o autor de cinema que traduz a consciência mais profunda de sua herança artística, filosófica e pictórica. Dos filmes citados anteriormente, Passion, Je vous salue Marie, Sauve Qui Peut (la Vie) são os que mais diretamente trabalham os temas da pintura, do cinema e da filosofia. O que importa em Passion é que aí são mostrados não quadros, mas quadros se fazendo e se desfazendo. O autor refaz telas célebres, explora-as, desmonta e monta, leva-as a seu limite e tenta variantes, combina-as entre si e as simplifica. Em suma, ele as faz trabalhar, põe-nas em questão (DUBOIS, 2004, p. 253-254).

Essa relação é ainda mais fortemente atuante em Je vous salue Marie, Sauve Qui Peut (la Vie), que colocam questões mais imediatas. Como pintar? Como representar? E, aliás, o que representar? O sol, as nuvens, a natureza, mas como pintar as coisas novamente, de modo novo? Questões incansavelmente retomadas e variadas pelo próprio Godard, no primeiro filmado citado, e que seriam uma das chaves para a compreensão da obra. Nela, vemos certas imagens de coisas simples, como as nuvens, uma menina, a Virgem Maria, um raio de sol atravessando o céu, como analogias, provavelmente, da graça divina visível.

Apesar da violência e da polêmica que a película Je vous salue Marie suscitou na crítica cinematográfica dos anos 1980, é relevante entender a radicalidade e a provocação que ele propõe, não somente com referência à pintura, ao sagrado, à representação visual e aos mistérios do mundo. Esses temas, na verdade, só interessam a Godard enquanto cineasta-pensador de uma obra audiovisual. Por isso, o valor de ruptura do filme está, antes de mais nada, no esforço incessante para produzir

imagens que escapem ao domínio estritamente da linguagem, para, assim, levar o cinema o máximo possível para a esfera do visual, da visibilidade e da visualidade (DUBOIS, 2004, p. 256).

É nesse sentido que trabalha uma obra sua anterior, Sauve Qui Peut (la Vie), na qual a pintura não aparece diretamente, mas a reflexão filosófica sobre a imagem, sobre o movimento, sobre o instante toma obliquamente toda a própria invenção do cinema. As desacelerações, as câmeras lentas, as tomadas de pessoas e de paisagens de frente e de costas e as paradas sobre as imagens-descomposições deste filme tentam resumir toda a problemática da ontologia temporal da imagem fotográfica e cinematográfica. O cinema é demonstração, é mostração, é visual (AUMONT, 2004, p. 229).

Em essência, e subsumindo as diferenças, há uma mesma preocupação nos três filmes descritos: pictorializar o cinema, injetar nele questões e problemas de um pintor. Ao mesmo tempo, nessas obras e, sobretudo, nas entrelinhas do discurso que as acompanha, mostra-se, fortemente, o sentimento de perda, de fim, a nostalgia de certo tipo de cinema que deixou de existir, o cinema da pura imagética; mote esse constante em Godard, há anos. Todavia não só o cinema se perdeu, a pintura, de certa maneira, tomou o caminho errado. É preciso, então, voltar ao modelo pictórico, paragmático da arte solitária, o artesão, o pintor cineasta, figuras-chave do criador (AUMONT, 2004, p. 236-237), em suma, um ser-imagem de todas as coisas.

O cineasta francês tem repousado inteiramente nessa tensão entre fazer ainda filmes, ou seja, objetos circunscritos e identificados, e ser completamente um artista de obras singulares que perscrutam um estado do olhar, uma escrita do cine-vídeo-pensamento, um ser-imagem total. Podemos considerar Godard um artista de um projeto desmesurado, no qual o cinema, como audiovisual, como natureza e como cultura, está em suas mãos para repercutir os estrondos e os tremores de uma vida inteira (RANCIÈRE, 2013, p. 178).

Na verdade, não há mais um sujeito-Godard, como criador autônomo ou um iniciador-manipulador, pois, atualmente, já não se trata mais de escrever ou de inventar uma imagem, mas de inscrevê-la em um mundo, ou seja, em uma narrativa cinematográfica, como veremos a seguir.