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Capítulo I. Contando a História, Criando o Cinema

4. O Filme como Agente de Propaganda e de Pressão Ideológica

4.1. O Filme de Guerra

A guerra pode ser considerada uma das temáticas mais susceptíveis à manipulação dos cidadãos, em virtude das memórias dolorosas que suscita, pelo número de baixas que provoca, e também, muitas vezes, pela premência em ocultar o fracasso de uma derrota, para fazer esquecer e, desta forma, silenciar a memória colectiva.

O século XX distinguiu-se pelo eclodir de guerras um pouco por todo o planeta e o cinema, através dos filmes de guerra, retratou os diferentes conflitos armados e os problemas que lhe estavam subjacentes a nível político, económico, social, ideológico e religioso. O tratamento cinematográfico de uma determinada guerra, elabora, não só um documento dela, mas evoca, também, os horrores, os danos físicos e os traumas causados na psique individual e colectiva de um povo.

Muitos dos países que estiveram envolvidos em conflitos recorreram a dramas e aventuras de guerra como forma de realçarem as suas resoluções políticas. Todavia, o interesse despertado por este género de obras cinematográficas prende-se com a proximidade e a ameaça da morte, bem como o tratamento dado à temática da dor e do efeito que esta pode ter nos intervenientes.

Os filmes de guerra apelam à empatia e à solidariedade do espectador que interioriza as situações históricas dramáticas, tendo, deste modo, uma ideia do horror representado pela guerra. Compreende-se, assim, a perspectiva de

Rosenstone quando afirma: “Film the contemporary medium still capable of both dealing with the past and holding a large audience.” (Rosenstone 1995:4)

Ao descrever o comportamento de pessoas vulgares em circunstâncias adversas, para muitos insuportáveis, por irem contra a natureza humana, estes filmes captam a atenção de grandes audiências e proporcionam momentos diferenciados: de horror, revolta e repulsa como no filme Apocalypse Now, devido às atrocidades cometidas e o estado psíquico a que alguns dos soldados chegam: “the horror, the horror”. Podem, de igual modo, produzir um humor cortante, quando instituições e ordens superiores são questionadas por quem faz a guerra, como em Good Morning, Vietnam.

Partindo da premissa que a indústria cinematográfica americana é considerada a quarta do país e de que o filme é encarado como a arte americana por excelência, segundo o historiador Arthur Schlesinger, a abordagem da temática da guerra, revela-se de crucial importância, pois permite criar e recriar factos da História dos Estados Unidos, nas suas diversas vertentes, divulgando-os e contribuindo para o enaltecimento dos seus heróis.

A indústria cinematográfica americana produziu filmes sobre diferentes conflitos, sobretudo, durante a Segunda Guerra Mundial, período em que muitos cineastas e actores se alistaram e estiveram na frente de batalha, vivenciando no terreno, experiências duras e traumáticas que se reflectem nos filmes produzidos na época.

Um acontecimento digno da preocupação cultural nos Estados Unidos é o envolvimento americano no Vietname, em virtude da polémica que se criou em redor da necessidade ou não da intervenção americana no sudeste asiático.

A maior parte das abordagens cinematográficas da Guerra do Vietname, à semelhança das da Segunda Guerra Mundial, seguem o procedimento tradicional, retratando a guerra como uma arena onde a ferocidade humana, a coragem, a capacidade de sacrifício e o altruísmo estão representados.

Na óptica do comentador de rádio, Leo Cawley, expressa no artigo “The War about the War: Vietnam Films and American Myth” os filmes de guerra

americanos, revelam que a participação em conflitos armados se prende, sobretudo, com questões morais e altruístas. “A moral impulse is behind every American war. Wars are undertaken by Americans, even if the cause is mistaken, as crusades.” (Dittmar 1990: 70). Perante um inimigo demoníaco, o caso específico da Guerra do Vietname, o soldado americano apresenta capacidades de resistência e de sacrifício que lhe permitem ultrapassar os limites humanos. “Individuals “prove” themselves by personally participating in combat, which teaches truths impossible to learn elsewhere.” (70)

Outra premissa essencial para o envolvimento do povo americano em guerras, consiste na necessidade dos Estados Unidos procurarem sair vencedores e de serem um país disposto a defender causas nobres em prol dos seus ideais de democracia. “Americans themselves are better, friendlier than other nationalities, and want nothing selfish in their relation with foreigners. But if there is conflict, Americans are inherently better at violence and will win.”(70).

Muitos dos filmes de guerra americanos procuram revelar o modo como os indivíduos buscam significado na existência diária, que percepções têm de si próprios e da sociedade em que estão inseridos. Estas narrativas fílmicas não são apenas uma reprodução da vida na sociedade contemporânea, mas apresentam, de modo similar, questões sociais e políticas transformando-as em metáforas representativas da vida nacional e global. “Film, like any valid art form, mirrors the life of the society which creates it.” (Palmer 1997: 17)

Embora muitos filmes de guerra mostrem apenas explosões, tiroteios e mortes, há, todavia, uma outra corrente que utiliza o filme de guerra como instrumento de reflexão sobre o mundo em que vivemos. Este tipo de filmes tenta analisar os conflitos bélicos sob os mais variados aspectos, desde os violentos confrontos no campo de batalha até ao choque psicológico da desmobilização ou, ainda, os seus reflexos na sociedade americana. A intervenção militar americana no sudeste asiático, em especial, teve graves repercussões no plano político e proporcionou aos cineastas diferentes tipos de abordagens. Nos finais da década de 70, do século XX, assistiu-se a um ressurgimento do filme de guerra,

concebido como uma espécie de exorcismo da consciência americana e uma tentativa de curar algumas das feridas que, teimosamente, ainda hoje persistem e perseguem muitos dos ex-combatentes.

Uma característica fundamental do filme de guerra consiste na importância que se atribui ao indivíduo, ao herói solitário que faz parte do mito americano, um homem por natureza, destemido, explorador, ousado e, acima de tudo, corajoso que actua por conta própria, sendo capaz de enfrentar qualquer situação, mesmo as mais temíveis e complexas e que actua por conta própria14.

O soldado da Guerra do Vietname é o herói do cinema na década de 1970. A filosofia subjacente à experiência americana, retomada em filmes como The Deer Hunter e Apolalypse Now, consiste na mobilidade social e física da personagem, concretizada, de modo exemplar, através de um percurso, no fim do qual o herói descobre a sua própria identidade. Esse itinerário quase sempre justificado por uma missão a cumprir, coloca o herói entre duas opções muito claras: a defesa dos valores americanos e o regresso à lei e à ordem, ou a identificação com o inimigo, e a dissolução no caos, pura e simplesmente, o aniquilamento15.

A década de 1970 foi um período complexo e confuso na vida dos americanos, pois a Guerra do Vietname deixara marcas profundas na sociedade que o poder político tentara silenciar, numa tentativa de erradicar da memória colectiva do seu povo as recordações traumáticas da mesma.

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Bons exemplos deste heróis surgem através de Martin Sheen em Apocalypse Now e Robert de Niro em The Deer Hunter.

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Em Apocalypse Now, o assassínio de Kurtz marca não só o fim da aventura como anuncia o crepúsculo da demência em que se transformou a guerra. O herói sobrevive, regressa às origens com a missão cumprida. Em Good Morning, Vietnam, a aproximação de Cronauer aos vietnamitas conduz à suspensão das suas funções.