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Excurso A economia lúdica do amor

Parte 2 Vida: aquém e além do dinheiro

5. Filosofia da arti como filosofia da vida

A flosofa simmeliana da arte éD como veremosD também uma flosofa da vida. Como dezesseis anos antesD no prefácio de Filosofa do dinheiroD Simmel expõe e defendeD em

RembrandeD um ponto de vista que se apresenta como flosófco – cujo objeto desta vez não é

o meio monetárioD mas a obra de arte ouD mais propriamenteD a experiência estética. E como na obra de 1900D mais uma vezD tal postura conduz à adoção de um ponto de vista específco em relação à vida.

Simmel se ocupa de início em apresentar a perspectiva epistemológica do livro. Em uma postura similar à apresentada na Filosofa do dinheiroD o autor distingue aqui dois modos de conhecimentoD duas maneiras de “interpretar e avaliar a obra de arte” (Rembr: 307). HáD de um ladoD as orientações analíeicasD que seguemD por assim dizerD “estrada abaixo” (Rembr: 307). Essa orientação éD por sua vezD cindida em duas: de um ladoD pode-se de pesquisar as

condições hiseóricas da inserção da obra no interior do desenvolvimento artístico; de outroD

trata-se de explorar os faeores específcos atuantes no interior dessa obra: “a rigidez ou lassidão da formaD o esquema da composiçãoD o uso das dimensões espaciaisD o coloridoD a seleção do material e muitos outros fatores” (Rembr: 307). Para SimmelD porémD nenhuma dessas orientações analíticas pode conduzir “ao entendimento da obra de arte como tal ou de seu efetivo signifcado anímico” (Rembr: 307)D precisamente porque abordam a obra de arte seja como algo que existe (em suas propriedades formais)D seja como algo que veio a ser (em um processo histórico particular); assim sendoD voltam-se somente para a existência (formal) ou o vir-a-ser (histórico) da obra de arte. Mas o signifcado e o valor artístico sãoD de um ladoD

pressuposeos de toda investigação histórica da arte: o fato de se tomar como objeto a obra de

RembrandtD e não a de “um diletante qualquer”D não tem suas razões na própria gênese histórica de sua obraD mas sim “nos sentimentos de valor que nós vinculamos a essa arteD de modo inteiramente independente das condições de seu surgimento” (Rembr: 307). Assim tambémD de outro ladoD o cerne dessa incapacidade de compreender a experiência artística em termos meramente analítico-formais está nas próprias características centrais dessa modalidade de conhecimento: pois mesmo que a análise estética tivesse dado conta completamente de cada componente de um quadroD ela não seria capaz de captar em sua inteireza nem o processo de criação nem a impressão da obra no receptor. Apesar de o

fenômeno artístico acabado poder “decerto ser estabelecido sob muitos pontos de vista formais e substanciaisD eD assimD decomposto em fatores de impressão mais puramente individuaisD ele não pode ser produzido nem entendido a partir de sua mera recomposição” – exatamente como não se pode recompor “um corpo vivo a partir dos seus membros cortados sobre a mesa de dissecação” (Rembr: 307-8). Nem a juseaposição de seus elementos individuaisD nem a sequência de seu desenvolvimento histórico equivaleriam ao signifcado e ao valor da obra de arte acabada. Desse modoD é

o maior dos auto-enganos querer conceber a essência da arte e a hierarquia de suas obras como a adição daquelas categorias. Tampouco se deve igualar a impressão da obra de arte às impressões somadas de todas as suas facetas e qualidades que a estética analítica destaca. AntesD aqui também o decisivo é algo totalmente unitárioD que se eleva a partir ou acima daquelas impressões singulares; e toda análise psicológica – de que modo esta ou aquela cor ou conjunto de cores atuaD o quão leve ou pesadamente nós apreendemos certas formasD quais associações se conectam a determinados dadosD e assuntos relacionados – deixa de fora o efeito anímico absolutamente centralD que constitui a vivência artística como tal (Rembr: 308).

Para SimmelD assimD mesmo no caso de tais análises contribuírem para o entendimento de componentes individuais de uma obraD isso não seria capaz de dar conta da obra de arte em termos nem de sua criaçãoD nem de sua recepção. Desse modoD seus elementos singulares e as etapas concretas de sua sequência histórica surgem somente como meios ou como a superfície tangívelD passíveis de descrição e análiseD da “unidade criativa” da obra (Rembr: 308). O decisivo aqui não são os elementos ou impressões singulares da obraD mas “algo unitário emergindo a partir ou acima” desses elementos ou impressões (Rembr: 308). O núcleo das investigações da flosofa simmeliana da arte proposta em Rembrande consiste assim no “efeito anímico absolutamente central [...] que constitui a experiência artística como tal” (Rembr: 308). Um dos problemas centrais dos últimos escritosD flosófco- vitaisD de Simmel é a compreensão da vivência imediataD que se ajusta mal às formas correntes de conhecimento científco e flosófco. Ela existe apenas como algo que é sentido de modo imediato – “e desse modo devemos deixá-laD por assim dizerD intocada” (Rembr:

308). A experiência imediata da arte – “a vivência da arteD o fato primárioD indivisívelD de que a obra está ali e exerce seu efeito imediato no receptor” (Rembr: 307) – é desse modo o ponto onde se cruzam e se separam duas orientações do conhecimento a respeito do fenômeno artístico. De um ladoD o tratamento analítico das determinações individuais da obra de arte e sua recepção – à frenee da “unidade vividaD criativa e receptiva” da experiência da arteD ocupando-se sobretudo da caracterização dos elementos singulares de que [constitutivos da] a criação da obra e [de] sua recepção se constituem. De outroD a abordagem flosófcaD tal como concebida pelo autorD se situa como que aerás da vivência imediata da obra de arte: ela “pressupõe o todo (Ganze) da obra de arteD como existência e experiênciaD e busca situar a obra de arte (ou o todo da obra de arte) em toda a amplitude dos movimentos da alma (seelische Bewegeheie)D na elevação da conceitualidadeD na profundidade das oposições da história mundial” (Rembr: 308).

Os fundamentos epistemológicos nos quais se baseiam as investigações dedicadas ao dinheiro (na Filosofa do dinheiro) e à arte (em Rembrande) sãoD como evidenciam seus respectivos prefáciosD concebidos de maneira muito similar. Tem-seD em ambosD modos de conhecimento que – como indicam já o título de um e o subtítulo de outro – se veem como flosófcos e não científcosD “estimativos” e não “exatos” ou “analíticos”.Em RembrandeD esse “ensaio de flosofa da arte”D como afrma seu subtítuloD o procedimento metodológico parece ser o mesmo da Filosofa do dinheiro: em um livro como em outroD trata-se de partir da “superfície da existência”D da “simples factualidade”D do “imediatamente singular”D do “simplesmente dado” para remeter uma sonda – “envolvida pela rede das linhas que medeiam sua vinculação ao reino das ideias” – até chegar às “últimas signifcações espirituais” (Rembr: 309).

Embora ambas sejam realizadas com base em fundamentos epistemológicos concebidos de maneira similarD seus objetos sãoD no entantoD radicalmente diferentes – em um casoD o dinheiro; no outroD a arte de Rembrandt ouD de maneira mais geralD a experiência artística –D e essa distinção entre os objeeos do conhecimento não pode deixar intocado o próprio modo do conhecimento. Na Filosofa do dinheiroD o objeto (o “meioD material ou exemplo para a apresentação das conexões entre os fenômenos mais externosD mais realistasD mais contingentes e as potencialidades mais ideais da existênciaD as correntes mais profundas da vida singular e da história” [PdG: 13]) era caracterizado por serD ele mesmoD a

indiferençaD “na medida em que sua fnalidade global não reside nele e sim em sua

capacidade de se converter em outros valores” (PdG: 12). No dinheiroD como vistoD “a oposição entre a exterioridade aparente e não-essencial e a substância interna da vida chega a sua tensão máxima”D encontrando aí também “sua mais efcaz conciliação”D dada “não apenas quando o detalhe se encadeia com o mundo espiritual em toda sua dimensãoD mas quando se revela como símbolo de suas principais formas de movimento” (PdG: 12). Em

RembrandeD por sua vezD o objeto é a experiência “imediata”D “primária”D “irracional” da

arte. Como ponto de partida das investigações flosófcas de Simmel – ambas visandoD em última instânciaD a “totalidade da vida” – está agoraD no lugar do dinheiroD “aquela experiência da obra de arte [...] indissoluvelmente primária” (Rembr: 309). Isso se traduz em uma mudança fundamental no que diz respeito ao estatuto concedidoD em cada casoD à “superfície da existência”D ao “imediatamente singular”D ao “simplesmente dado”. Ao passo que o dinheiro defne-se justamente por sua “capacidade de se converter em outros valores” (PdG: 12)D a experiência artísticaD por sua vezD na qualidade de algo imediato e indissoluvelmente primárioD “permanece tranquilamente em sua simples facticidade e sob suas leis imediatas” (Rembr: 309) – ela se mantémD por assim dizerD na “superfície da existência”D enquanto algo que ainda não foi “elevadoD como algo imediatoD à posição de nobreza” (Rembr: 309). Num casoD o dinheiro aparece como símbolo da vida; no outroD é a arte que surge como expressão da vida. Em um casoD tem-se uma flosofa que examina

relações ou mediações que constituem a “totalidade da existência”; na outraD uma que almeja

captar a imediaeidade da experiência. Embora do ponto de vista da forma o modo de conhecimento tenha se mantido o mesmo em ambos os casosD seus objetos são diferentes eD com issoD também a vida que emerge de cada uma das investigações se simboliza ou expressa de maneira distinta. O que indicaD enfmD como os modos de conhecimento mobilizados em cada caso sãoD ainda que formalmente o mesmoD fundamentalmente distintos: afnalD os recursos empregados na simbolização (por meio do dinheiro) da vida como mediação e na expressão (por meio da arte) da vida como imediatidade não poderiam ser os mesmos.

Reaparece tambémD no contexto da flosofa da arte exposta em RembrandeD a contraposição já introduzida no livro de 1900 entre o esforço flosófco praticado pelo autor e um modelo flosófco de tipo abstrato. Na Filosofa do dinheiroD uma flosofa que procede segundo o modelo da arte se contrapõeD como vimosD a uma que procede segundo “sistemas

flosófcos abstratos”. O prefácio de Rembrande rejeitaD de maneira similar ao livro sobre o dinheiroD uma flosofa que almeje a construção de sistemas abstratos universais: “O fato de que as linhas diretivas flosófcas assim extraídas teriam de se intersectar completamente em

um ponto mais externoD teriam portanto de se ordenar em um sistema flosófcoD é um

preconceito monista que contradiz a essência – muito mais funcional do que substancial – da flosofa” (Rembr: 310).

No livro sobre RembrandtD de maneira semelhante à posição adotada na Filosofa do

dinheiroD Simmel critica o isolamento dos conceitos flosófcos em relação à superfície da

existênciaD ao singular imediatoD ao simples dadoD de modo que tais conceitos permanecessem somente “em sua própria companhia” (Rembr: 309). Mas – num afastamento sutil em relação à posição adotada na Filosofa do dinheiro – ele rejeita igualmente uma relação entre conceito e dado que veja de antemão o “singular imediato” como já “elevado à posição de nobreza” dos conceitosD posição identifcada agora à flosofa de Hegel (Rembr: 309). Nesse sentidoD há um passo adiante da flosofa da arte exposta em

Rembrande em relação à concepção de flosofa defendida e exercida na Filosofa do dinheiro. A

passagem do dinheiro à experiência artística como objeto de exame – logoD de um objeto constituído por mediações para outro cuja característica principal é ser vivido como algo

imediaeo – resulta em uma modifcação considerável no estatuto do “simples dado”D da

“superfície da existência”: esta passa a ser vistaD ela mesmaD como primária e imediataD ao passo que o dinheiro como “simples dado” ainda podia ser visto como uma singularidade já

elevada “à posição de nobreza” dos conceitos – na medida em que o dinheiro já é mediação

abstrataD já éD ele mesmoD conceito.

Modifca-se no entantoD com issoD a noção mais fundamental de ambos os empreendimentos: a de vida. Deslindada a partir do dinheiroD a vida éD no livro de 1900D interação – isto é: ela já é mediadaD antes mesmo do procedimento flosófco (que consiste em estabelecer conexões). No livro de 1900D há entre vidaD dinheiro e flosofa uma relação de continuidade (ou de “analogia”). A flosofaD enquanto modo de conhecimento dedicado a conectar o singular e o geralD estabelece conexões por meio do dinheiro (ele mesmo defnido pela capacidade de estabelecer conexões entre as coisas) para deslindar a vida como conjunto de interações. No livro de 1916D a analogia já não possui o lugar central que mantinha na Filosofa do dinheiro. Em RembrandeD no qual ela é abordada a partir e por meio

da experiência artísticaD a vida aparece não como mediaçãoD masD pelo contrárioD como imediatidade. De um livro a outro – da vida como interação à vida como imediatidade –D a própria noção de vida adquiriu um destaque que antes não possuía. Daí a centralidade dessa noção nos últimos escritos de Simmel e sua importância para a compreensão da flosofa da arte exposta em Rembrande. AgoraD a flosofa se caracteriza como o empreendimento paradoxal ou contraditório de buscar compreender em conceitos aquilo que por defnição não se deixa captar por conceitos. O decisivo agoraD contudoD não se encontra na contradiçãoD mas ali onde a contradição deve parar; na própria suspensão (mais ou menos durávelD mas nunca permanente) das categorias lógicasD ou melhorD na

suspensão das formas. Se antes era justo em suas contradições que o dinheiro podia atuar

como símbolo da vidaD agora é na suspensão das categorias lógicas (e portantoD de toda contradição que possa se dar a partir delas) que a vida pode se manifestar mais claramente.

Os dois modos de conhecimento distinguidos no prefácio de Rembrande constituem desse modo não somente duas maneiras de interpretar e avaliar a obra de arte; eles também correspondem (para dizê-lo segundo uma expressão mais cara à Filosofa do dinheiro) a duas “imagens de mundo” distintas eD respectivamenteD a duas concepções de vida cuja distinção constitui o cerne do livro sobre Rembrandt. Aqui se encontra mais uma diferença entre os prefácios de 1900 e de 1916. Na Filosofa do dinheiroD o intuito era antes de tudo especifcar o modo de conhecimentoD a posição epistemológica particular assumida no livro; tratava-se de não confundir uma flosofa do dinheiro com uma ciência econômica do dinheiro. À flosofa do dinheiro cabia trabalhar onde a ciência econômica do dinheiro não tinha mais validade ou não podia alcançar (seja porque não tem como abordar os próprios pressupostos nos quais se apoiaD seja porque se trata de desenvolvimentos queD dentro dos limites do conhecimento científco exatoD ela não tem como atingir). AmbasD porémD são relativamente independentes com relação às imagens de mundo. No livro sobre RembrandtD é sustentada a mesma posição: não se trata de negar validade às orientações analíticas sobre a obra de arte. Ambas podem coexistir. PorémD a distinção entre tais modos de conhecimento agora se insere no âmbito de uma diferença mais fundamentalD concernente às imagens de mundo: a diferença entre dois modos de exprimir a vida. Essa distinção está de algum modo esboçada no prefácio de 1900 – na medida em que a flosofa advogada por Simmel opera segundo um modo areíseico, “estimativo”D e a ciência é caracterizada pela

exaeidão –D mas ela não era ainda exposta segundo o dualismo presente na investigação de

1916.A flosofa simmeliana não é externa à oposição entre as duas imagens de mundo: ela é parte de uma delasD pois procede segundo um modo viealisea. Às orientações analíticas pertencemD por sua vezD exatamente as características que Simmel identifcará à concepção clássicaD racionalistaD da obra de arte. Por issoD tal orientação não pode adequadamente compreender aquelas dimensões da experiência artística queD justamenteD a arte de Rembrandt é capaz de exprimir.