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PARTE I – A CAPOEIRA DO BERIMBAU

1.3 FILOSOFIA DE VIDA

capoeira é, acima de tudo, interagir com a identidade cultural de um povo, é vivenciar a expressão corporal, é ter a possibilidade de adquirir o espírito crítico reflexivo da sociedade em que se está inserido. É a certeza da contribuição para um elo harmônico corpo/mente, valorizando o talento, as potencialidades humanas e reconhecendo seus limites e oportunidades (MESTRE XARÉU, 2009, p.90, grifo meu).

Nesse sentido, a capoeira é uma arte que abrange o desenvolvimento físico, mental e espiritual dos praticantes. Ensina o respeito ao próximo, às tradições da capoeiragem e pela nação brasileira. É um meio de cooptação, de agregação entre as pessoas independentes de classes, cor ou cultura (SILVA, 2003). É uma prática integrada de luta, dança, canto, toque e forma de pensar o mundo (MUNIZ, 2002, p.22).

A capoeira não é uma manifestação religiosa, ela tem seu ritual com práticas tradicionais o que não quer dizer que a mesma seja uma manifestação religiosa, porém ela traz uma herança religiosa vinda da África que se misturou com a religiosidade que se constituía no Brasil. Tal religiosidade se manifesta ainda hoje, quando o capoeira se benze antes de iniciar o jogo, ou pede proteção às entidades nas quais acredita, ou então invoca a bravura e proteção dos seus ancestrais. Nesse sentido, a roda de capoeira é como um mundo simbólico que nos apresenta vários componentes que associam o mundo social, político, cultural e religioso (SILVA, 2003).

Capoeira transforma o corpo em uma arma para a defesa da vida; ao praticá-la, aprendemos vários golpes desequilibrantes, traumatizantes e mortais, e movimentos de defesa e de fuga. As outras características da capoeira como o jogo, a dança e a música complementam a primeira desde outrora, quando a capoeira como luta delas precisava para dissimular a prática da capoeiragem e garantir a vida do capoeira, já que a prática era proibida e combatida.

Devemos ressaltar que, ao ser institucionalizada como prática desportiva, a capoeira tornou-se também um eficiente meio de disciplina e integração social.

O jogo inicia na roda de capoeira19 ao pé do berimbau, quando os dois capoeiras se cumprimentam e começam o que será uma simulação de um combate real. O compasso do jogo deve obedecer ao ritmo do toque musical dado pelo berimbau e acompanhado pelos pandeiros. Os contendores se revezam, esperando sempre que os melhores façam suas exibições e que, assim, colaborem no adestramento dos menos destros. Tal treinamento não é feito tendo em vista estabelecer um vencedor. O jogo não os proclama ou esfria aqueles que, exaltados, tentam vencer. O segredo da roda é que os contendores, afinal, não se toquem, não se sujem, não se machuquem (LIMA e LIMA, 1991, p.175). A dança diz respeito à ginga20, aos movimentos que às vezes parecem coreografados e aos constantes improvisos. A ginga é marcada pelo compasso harmônico do som do berimbau.

A música na capoeira tem uma multiplicidade dentro do jogo, que passa desde o aprendizado dos praticantes no domínio do instrumental de percussão até o desabrochar de sua sensibilidade e intuição musical feita por meio da prática do cantar constante, na colocação e afinação das vozes em conjunto. Na roda de capoeira, não há discriminação entre afinado e desafinado, é apenas um conjunto de vozes se harmonizando que conta, e aos poucos vão se aperfeiçoando para manter a beleza do coral de vozes. Não existe estrelismo musical, cada um tem a oportunidade de desenvolver seu papel, alguns como solistas e outros como participantes do coro. Mas todos os participantes são conscientes de que o fundamental é manter a unidade musical da roda (ZEFERINO, 1997, p.27). Toda a orquestra da roda de capoeira, as palmas e o coro têm como objetivo fazer duas pessoas dançarem, jogarem, lutarem (LARRAÍN, 2005).

é muito importante que as pessoas sejam afinadas21, mas todo mundo deve cantar mesmo que

não sejam todos afinados porque todo mundo deve participar do ritual. Ou seja, é mais

19 “A roda é uma figura geométrica na qual se pressente circular uma grande quantidade de energia devido

ao somatório das energias presentes e ao seu movimento constituído pelos toques, cânticos e ritmos comandados pelo berimbau, que parece atrair forças da natureza cósmica, emanando uma vibração indescritível, a ponto de muitos capoeiras afirmarem entrar num estado de transcendência e liberdade.” (MESTRE XARÉU, 2009, p.43-44).

20 A ginga, “movimento de base, „preparatório‟ ou de „pausa‟/ „intervalo‟ entre movimentações que,

respectivamente, antecedem ou „acalmam‟ os ânimos, ensinada por Mestre Bimba (SANTOS, 2011, p.59), “compreende o movimento semicircular da região pélvica, havendo uma transferência de peso para que os pés não percam o contato com o chão. Os braços acompanham o balançar do corpo. Essa integração de balanço e movimento é relevante para o estudante de capoeira.” (ibidem, p.66).

21 Os capoeiras, geralmente, não possuem conhecimento técnico-acadêmico sobre canto, mesmo que um

ou mais integrantes do grupo tenha conhecimento técnico sobre canto esses não serão mais valorizados do que os que não possuem, pois o mais importante é a participação de todos. A liberdade para os cantadores é quase total, porém atitudes extremas como a de gritar ao invés de cantar são considerados como desafinação, o que é resolvido através de sutis aconselhamentos feitos por membros mais antigos do grupo ao malsoante.

interessante para a manifestação uma pessoa desafinada que canta durante toda a roda do que uma pessoa afinada que canta só algumas músicas (LARRAÍN, 2005, p.106).

Os cantos não são apenas a complementação dos ritmos criados pelo berimbau; neles estão contidos uma série de ensinamentos, um código de conduta e as premissas básicas de um código filosófico fundamentado na vivência dos velhos praticantes do jogo da capoeira (SOARES, 2001). Outro aspecto importante é que através dos cantos e das palmas o recém-chegado não só se incorpora à “corrente de vibrações” já existente, como também relaxa e descarrega as tensões que trouxe de seu dia-a-dia. A parte mais sutil, porém, refere-se à oxigenação: os participantes da roda são envolvidos por um ritmo de respiração tal que permita responder, em coro, aos cantos “puxados”. Ao terminar de jogar, muitas vezes cansado e ofegante, é nesse ritmo respiratório que o jogador vai rapidamente se recuperar (SOARES, 2001).

Na música da capoeira, o instrumento musical de maior importância é o berimbau, é ele quem comanda o ritual da roda de capoeira, é através dele que a violência não desencadeia e esse domínio das paixões mantém os integrantes da roda de capoeira numa “tensão” de nervos, empolgando a todos numa espécie de hipnotismo coletivo quase indescritível (ABREU, 2003). “Enquanto o berimbau permanecer associado ao jogo da capoeira e for respeitado como deve, não haverá lugar para a violência” (MESTRE BOLA SETE, 2003, p.134).