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Filosofia e Ensino Médio: análise sobre sua inserção no currículo

O currículo do Ensino Médio brasileiro está pautado atualmente pela LDB (BRASIL, 1996) e pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 2010; 2012a), e é constituído de modo a seguir os princípios previstos nas leis, os quais refletem a intencionalidade formadora que o Estado propõe aos estudantes. No caso do Rio Grande do Sul, o regimento do Ensino Médio Politécnico (RS/SEDUC, 2012) também orienta as escolas estaduais.

A partir disso, é possível perceber que as disciplinas que compõem o ensino médio devem trabalhar no sentido de preparar os educandos para a consolidação dos saberes aprendidos no Ensino Fundamental, preparação para o trabalho e para o exercício da cidadania, formação ética e estética, desenvolvimento da autonomia intelectual e desenvolvimento do pensamento crítico, entre outros. Neste âmbito, é atribuído também à Filosofia esse papel – assim como para as demais disciplinas. Porém, no Estado do Rio Grande do Sul, a delimitação da responsabilidade da disciplina de Filosofia se mostra mais estritamente identificada. Na Resolução 291/07 (RS/CEE, 2007b) é possível encontrar a ênfase que deve ser dada para o ensino de Filosofia no Ensino Médio:

Art. 2º - As propostas pedagógicas estruturadas por componentes curriculares ou que adotarem outra organização curricular devem incluir Filosofia e Sociologia, assegurando tratamento interdisciplinar e contextualizado que possibilite ao educando a “formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (...).

Esse registro tende a nortear o sentido para ser dado a essa disciplina, no trabalho que será desenvolvido nas escolas. Enquanto a Filosofia consegue se “desvencilhar” do jugo – determinado pela antiga redação da LDB de 1996 – de ter seu ensino voltado à formação para a cidadania, o Governo Estadual se movimenta para incutir outra responsabilidade sobre a disciplina, explicitando o motivo de ela estar presente no Ensino Médio. Tanto esse documento, como os demais parâmetros (BRASIL, 1999; 2002; 2006), procuram dar alguma definição para a

disciplina. Ao analisar essa intencionalidade legal, a partir de uma perspectiva filosófica do problema, considero como negativa essas definições. Afirmo isso ao retomar a história da Filosofia e perceber que

desde Aristóteles a filosofia se define como um fim em si mesmo, e não como um meio para atingir um objetivo determinado. Justificar um espaço para a filosofia nos currículos da educação básica apenas de modo instrumental – isto é, a filosofia a serviço de algo, como a cidadania – é, portanto, essencialmente antifilosófico. Considerando a argumentação presente nos PCNEM – que vê na filosofia uma preparação abrangente do indivíduo, fazendo parte de sua introdução no universo da cultura e das técnicas para aí transitar –, prefiro apostar no ensino de filosofia como um fim em si mesmo, para além de qualquer tutela, seja ela cidadã ou moral (GALLO, 2012b, p. 22).

Considero que a Filosofia não deve ser utilizada como um instrumento que leve a algum fim. Penso que a disciplina necessita de liberdade para que possa se desenvolver. A partir do momento em que se delega alguma responsabilidade sobre a mesma, a impregnação ideológica começa a se fazer presente e a Filosofia deixa de transitar sobre os diversos campos do saber que ela pode abordar. Por isso penso que é importante o enfrentamento da educação maior e a luta contra o enviesamento ideológico dessa disciplina. A Filosofia precisa ser livre, precisa ter o

fim em si mesmo para poder desenvolver-se em sua especificidade. Obviamente

não nego que exista intencionalidades no ensino da Filosofia, visto que a educação não é neutra (FREIRE, 2003a), mas nego que essa tenha que ser imposta por alguém de fora que, no presente caso, está representado pelo Estado.

Retomando a questão da obrigatoriedade imposta pela lei de 2008, verifico que a mesma continua apresentando no mínimo dois problemas para as instituições escolares (os quais já foram mencionados no início deste trabalho): o primeiro deles refere-se à reduzida carga horária semanal de aula, na qual as escolas tendem a conceder o espaço de um período semanal para a disciplina.

Embora a Resolução Estadual (RS/CEE, 2007b) recomende que a carga horária de Filosofia seja de no mínimo dois períodos semanais, pelo menos em um dos três anos, ambas as escolas investigadas não estão conseguindo atender a essa solicitação. Diante das reais condições que dizem respeito a esse curto espaço de tempo, percebo que o ensino de Filosofia termina por ficar prejudicado, pois os professores acabam não conseguindo trabalhar com filmes e debates aprofundados, entre outras atividades, visto que o tempo se esgota rapidamente. Muitas vezes é

preciso “invadir” o espaço de alguma outra disciplina para que seja possível concluir a atividade que estava sendo desenvolvida (DUTRA, 2010). No sexto capítulo desta Tese, apresentarei a visão dos estudantes, dos docentes e das supervisoras sobre a questão da carga horária.

O segundo problema que destaco é o de professores habilitados em outra área lecionarem Filosofia. Desde a pesquisa de Mestrado (DUTRA, 2010), esse fato foi destacado e atualmente, nas escolas investigadas, o problema continua a existir, visto que a maioria dos docentes que leciona Filosofia possui formação em outra licenciatura. Em conversa com uma das professoras que leciona a disciplina – logo nas primeiras visitas para apresentação da pesquisa na escola da região periférica – ela problematizou essa questão e disse que como já existe uma lei que exige a obrigatoriedade do ensino de Filosofia, poderia se propor uma nova lei exigindo que a docência deva ser exercida por pessoa habilitada nessa área. Ao investigar sobre a possibilidade da existência de alguma legislação que aborde o assunto, encontrei na própria Resolução 291/07 (RS/CEE, 2007b) dois artigos que definem o seguinte:

Art. 3º - Independente da organização curricular adotada pela instituição de ensino deve a mesma oferecer condições para a inclusão de Filosofia e Sociologia com professores habilitados para a docência desses componentes, bem como com acervo bibliográfico adequado.

Art. 4º - As mantenedoras têm prazo de até 05 (cinco) anos a contar da publicação desta Resolução para que os componentes curriculares sejam ministrados por professores licenciados em Filosofia e Sociologia ou Ciências Sociais, respectivamente.

Dessa forma, percebo que tal informação demonstra não estar muito divulgada no contexto escolar, considerando-se que o prazo para adaptação terminou no ano de 2012 e a respectiva docente não estava sabendo dessa determinação. Quanto ao âmbito do Governo Federal, verifico que existe uma preferência pela presença de um profissional habilitado, porém não encontrei algo que se definisse de modo regimental. É possível verificar isso no seguinte trecho expresso no documento das Orientações Curriculares para o Ensino Médio:

[...] boa parte dos professores tem formação em outras áreas (embora existam hoje bons cursos de graduação em Filosofia em número suficiente para a formação de profissionais devidamente qualificados para atuar em Filosofia no ensino médio), ou, sendo em Filosofia, não tem a oportunidade de promover a desejável formação contínua (sem a qual a simples inclusão da Filosofia no ensino médio pode ser ilusória e falha). Isso acarreta, em geral, um uso inadequado de material didático, mesmo quando, eventualmente, esse tenha qualidade. Dessa forma, o texto filosófico é,

então, interpretado à luz da formação do historiador, do pedagogo, do geógrafo, de modo que a falta de formação específica pode reduzir o tratamento dos temas filosóficos a um arsenal de lugares-comuns, a um pretenso aprendizado direto do filosofar que encobre, em verdade, bem intencionadas ou meramente demagógicas “práticas de ensino espontaneístas e muito pouco rigorosas, que acabam conduzindo à descaracterização tanto da Filosofia quanto da educação” (BRASIL, 2006, p. 36).

Diante do problema exposto e do contexto de sua realidade escolar, a docente comentou que teve que estudar o livro didático (CHAUÍ, 2012) escolhido pela professora que lecionava a disciplina anteriormente (que também era licenciada em Artes), para poder trabalhar a Filosofia com seus alunos. Esse fato tende a acarretar aquilo que destaca o documento (BRASIL, 2006) e que também foi alertado por Kohan (2012), no que diz respeito à má utilização do livro didático. Por outro lado, não vejo muitas alternativas para o problema que se coloca em questão, a não ser o contrato de algum profissional formado na área de atuação, o que parece muito difícil de acontecer neste momento.

Nesse sentido, acredito que o diálogo que foi estabelecido entre mim e os professores investigados poderá contribuir para se pensar a construção do currículo dessa disciplina, a fim de superar as adversidades que prejudicam o desenvolvimento do trabalho com a Filosofia, buscando trazê-la, cada vez mais, para o âmbito do leque filosófico.

Após realizar essa abordagem, percebo que a Filosofia está se inserindo em um Ensino Médio que visa, entre outros fins, a preparar para a cidadania. Acredito que tal formação cidadã não deva ser de aceitação pacífica do status quo, mas de problematização sobre a realidade e sobre a própria constituição da Filosofia como uma forma de saber que deve ter o seu fim em si mesmo, fim este que permite ao ser humano perceber a realidade a partir das possibilidades oferecidas pelo leque

filosófico.

A partir da fundamentação teórica que foi realizada ao longo deste trabalho, é possível pensar algumas das diversas possibilidades de se trabalhar com os conteúdos de Filosofia, atentando para o cuidado de não trabalhar os conteúdos de modo não-filosófico, conteúdos estes que escapam dos limites do leque filosófico e trabalham a serviço da antifilosofia (KOHAN, 2012). Lembrando ainda o caso das escolas estaduais do Rio Grande do Sul, que possuem o currículo do Ensino Médio politécnico (RS/SEDUC, 2012), a Filosofia poderá ser desenvolvida de modo interdisciplinar, nos Seminários Integrados, o que oferecerá novos suportes de

reflexão filosófica através do diálogo entre as diversas disciplinas e o contexto social dos estudantes.

Com isso concluo a reflexão referente às perspectivas curriculares que podem ser pensadas para o ensino de Filosofia. No próximo capítulo, apresentarei a metodologia que será utilizada para a realização desta investigação.

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