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Filosofia da mente e da linguagem

No documento Filosofia da linguagem : uma introdução (páginas 195-200)

A filosofia da linguagem depois de Wittgenstein (J Austin,

C. Filosofia da mente e da linguagem

Relativamente à filosofia da linguagem e da mente, a obra de Davidson deve ser vista a partir de dois fios condutores. Davidson propõe (1) uma teoria verocondicional do significado, que usa a teoria tarskiana da verdade como base para a proposta de uma teoria semântica da linguagem natural, (2) um conjunto de teses em torno de interpretação radical.

Para a compreensão de (1), o artigo Truth and Meaning (1967) é essencial. O problema é saber o que constitui uma teoria satisfatória do significado. Davi-

dson defende uma teoria verocondicional (truth-conditional) do significado. A ideia é que o significado deve ser compreendido via a noção de verdade. Esta é, pelo menos no âmbito das linguagens formais, clara (o artigo de Tar- ski, The Concept of Truth in Formalized Languages, teve um grande impacto sobre Davidson). É muito mais complicado obter uma noção clara de significado. Davidson pensa aliás que não se pode fazer directamente uma teoria do signi- ficado. Em Truth and Meaning Davidson considera então: (i) a adopção de uma teoria tarskiana da verdade como modelo para a semântica, (ii) dificuldades da adopção deste modelo para as línguas naturais, (iii) o problema da inter- pretação radical.

No artigo Radical Interpretation (1973) dá-se um primeiro passo numa ques- tão sobre a qual Davdison escreveu até ao fim da vida, a questão da interpreta- ção. ‘Interpretação radical´ é a expressão cunhada por Davidson e ligada, mas não assimilável, à tradução radical de Quine. Em ambos os casos se trata de traduzir uma linguagem desconhecida para uma linguagem conhecida. Um intérprete radical davidsoniano tenta atribuir um conteúdo semântico a uma enunciação de outrem tendo apenas como dados o conhecimento das correla- ções entre as circunstâncias extra-linguísticas de uma dada elocução e a frase ocasional proferida, que o interpretado toma como verdadeira (holds true).

O conceito de holding true faz desde logo a diferença entre Quine e Davidson. Em lugar de evocar, como Quine, apenas estímulos, assentimentos e dissentimen- tos, para conceber a situação da tradução radical, Davidson utiliza uma noção que não está aberta à observação. Há por isso um recuo de Davidson perante o beha- viorismo subjacentes às posições quineanas sobre interpretação radical.

Antes de mais, é preciso ter claro que ‘interpretar’ não é uma actividade que venha após a posse e entendimento de língua (embora a ambiguidade seja naturalmente gerada pelo facto de Quine e Davidson falarem quase sempre de um intérprete já na posse de uma língua). No entanto, se a noção for cor- rectamente entendida, interpretar é, como diz Davidson, para todos os efeitos, tanto um problema doméstico como estrangeiro: todo o entendimento da fala de outrém envolve interpretação radical.

A interpretação radical é uma proposta acerca do que é necessário para atribuirmos entendimento linguístico e pensamento a um dado ser, uma teo- ria acerca da forma de ‘chegar ao pensamento’ a partir do comportamento linguístico de um falante, sem qualquer conhecimento das crenças deste e dos significados das suas enunciações. O problema básico de que a interpretação radical trata é o facto de não podermos atribuir significado às enunciações dos falantes sem sabermos quais são as suas crenças e, ao mesmo tempo, não

podermos identificar as suas crenças sem sabermos o que as suas enunciações significam. É portanto necessário fornecer ao mesmo tempo uma teoria da crença

(mente) e uma teoria do significado (linguagem). É isto que se pretende com o

Princípio da Caridade. O Princípio da Caridade (de acordo com o qual que um agente sob interpretação tem crenças na sua maioria verdadeiras e faz inferências que são na sua maioria racionais) combina duas noções: (i) uma suposição holista de racionalidade nas crenças a que se chama coerência e (ii) uma suposição de relação causal entre as crenças (especialmente perceptivas) e os objectos das crenças – a que se chama correspondência. O Princípio david- soniano da Caridade é ao mesmo tempo um constrangimento e um primeiro princípio que possibilita toda e qualquer interpretação.

É útil olhar para as posições de Davidson como uma resposta à situação em que Quine deixou os filósofos da mente. Quine fez duas propostas incontorná- veis: a epistemologia naturalizada e a tradução radical. A conjugação das duas deixa os filósofos da mente com o seguinte problema na mão: como é que uma abordagem naturalizada do mental pode ser interpretativa? Ora, Davidson dá alguns passos na tentativa de responder a tal pergunta, e a Teoria Unificada do Pensamento, Significação e Acção é a certo momento da sua obra o lugar para procurar respostas. Ela representa um posicionamento perante a dificuldade herdada de Quine. Antes de mais, Davidson chama à teoria ‘unificada’ porque ela trata em conjunto questões anteriormente tratadas na teoria da acção e na teoria da significação. Basicamente, a Teoria Unificada é um desenvolvimento do anterior projecto da interpretação radical (ela própria sucessora da tradu- ção radical quineana) e tem como objectivo chegar à natureza do mental e da significação tomando como ponto de partida evidência explícita.

Tal como Quine, Davidson pretende em geral partir de evidência explícita, acontecimentos de linguagem, cá fora, públicos, comuns, para chegar ao men- tal. Tal como a interpretação radical de Quine, a Teoria Unificada atribui um determinado estatuto à racionalidade nesse empreendimento. Embora a Teoria Unificada de Davidson pretenda resolver o mesmo problema que a tradução radical de Quine, convém no entanto recordar que o contrário de Davidson, e da mesma forma que os psicólogos behavioristas, Quine parece ter pensado, pelo menos a certo momento, que se algum dia existisse uma ciência séria do comportamento dos humanos, ela seria uma ciência não mentalista, sem apelo a crenças, desejos, intenções. As ‘formas mentalistas’ de falarmos de nós próprios e dos outros seriam um obstáculo a formas mais efectivas de explicar o compor- tamento. É por pensar tal coisa que Quine se coloca eventualmente na posição complicada de querer explicar o comportamento linguístico em termos de dis-

posições. A ideia de Quine, que é um projecto de redução, era a seguinte: chega- remos ao mental abordando a linguagem, que é comportamento explícito. Olha- mos para a linguagem como um sistema de disposições para o comportamento verbal, olhamos para as disposições como estados físicos de sistemas e temos aí um caminho para a redução a que a ideia de naturalização parece obrigar. O problema é saber se, uma vez concebida a linguagem como disposições, isso é ou não redutível ao físico, ao fisiológico. Por vezes Quine fala como se fosse esse o caso, na medida em que disposições são recondutíveis às características físicas dos objectos, neste caso os corpos dos humanos. No entanto, em escritos mais recentes, e considerando a forma de lidarmos com estados mentais, Quine acaba por recomendar que se faça o melhor uso possível do monismo anómalo davidsoniano, aparentemente deixando cair a intenção de redução.

Ao contrário de Quine, Davidson nunca pensou que poderia haver uma ciên- cia séria, não mentalista, do comportamento humano, incluindo semelhante tentativa de redução do comportamento linguístico. É por isso que o diferendo entre ambos é especialmente relevante para pensar acerca do problema da neces- sidade ou não necessidade de idiomas mentalistas em ciência cognitiva. Quem conhece o pensamento de Davidson saberá que o seu anti-reducionismo quanto ao mental é devido a (i) normatividade (da interpretação), (ii) carácter causal de conceitos mentais como acções, para as quais os agentes têm razões, que as ‘explicam’, (iii) externalismo (o facto de propriedades mentais sobrevirem não apenas às propriedes físicas do agente mas também ao mundo exterior). Todas essas ‘condições do mental’ tornam impossível descobrir leis e prever e expli- car o comportamento de humanos somente com base em traços intrínsecos, que seriam por exemplo as disposições dos próprios corpos de que fala Quine. Mas se não podemos ter uma teoria dos corpos e das suas disposições, que nos permita compreender a linguagem e depois o mental, estaremos na impossi- bilidade de ter uma teoria que explique o comportamento dos humanos? De acordo com Davidson esse não é de todo o caso. Simplesmente, por não par- tilhar dos preconceitos anti-mentalistas de Quine, Davidson vê de uma forma totalmente diferente o projecto de partir da evidência explícita, nomeadamente o comportamento linguístico, para a compreensão da natureza do pensamento da significação e da acção.

O objectivo da Teoria Unificada é o mais ambicioso possível: trata-se de com- preender o que torna os humanos inteligíveis uns aos outros a partir de evidência unicamente comportamental, e portanto a partir dessa evidência compreender o que é para palavras significarem alguma coisa e para os humanos pensar e agir. Ora, Davidson assume que existe um caminho daquilo que observável (cá fora,

no mundo, entre nós) para a natureza da acção, pensamento e significação, mas pensa que esse caminho se percorre não reduzindo, mas relacionando, (anali- sando a partir ‘de um ponto equidistante’ a todos) os três conceitos básicos de crença, desejo e significação, ie tomando-os como elementos coordenados para a abordagem da evidência comportamental. Na terminologia de Davidson, a Teoria Unificada procura determinar três incógnitas (crença, desejo e signifi- cação) a partir do observável, e não apenas duas, como era o caso da teoria da decisão (que extrai crenças e desejos do comportamento explícito de preferência dos agentes) e da teoria da interpretação (que extrai significação e crença do comportamento explicito de enunciação dos agentes – na asserção manifesta- se o assentimento do falante, como na escolha se manifesta a preferência do agente). O que é que leva Davidson à Teoria Unificada? O facto de a teoria da decisão não dizer nada acerca de significação (mesmo se as preferências dos agentes são identificadas a partir de enunciações significativas) e de a teoria da interpretação não dizer nada acerca de preferência (o que se torna necessário quando além de frases de observação o intérprete visa frases teóricas e relações de sustentação entre frases teóricas e frases de observação). Davidson pensa por isso que elas (a teoria da decisão e a teoria da interpretação) foram feitas uma para a outra, e propõe-se, basicamente, com a Teoria Unificada ‘fazer entrar’ a teoria da decisão na teoria da interpretação. Noutras palavras, para chegar à significação, ao desejo e à crença a partir do comportamento linguístico o tomar como verdadeiro (hold true) não é evidência suficiente, há que considerar graus de confiança na verdade das frases e desejabilidades relativas atribuídas à ver- dade de frases. Daí que se a evidência para a tradução radical era o tomar como verdadeiro, a evidência de partida da Teoria Unificada é o preferir-verdadeiro (uma frase a outras) (prefer true).

Onde é que entra a racionalidade neste projecto? Encontraremos uma res- posta se reformularmos a pergunta da seguinte maneira: onde é a que a Teoria Unificada vai buscar aquilo que lhe permite determinar as incógnitas (crença, desejo, significação) a partir de evidência comportamental? A resposta é: à lógica, a uma teoria da verdade e à teoria da decisão e é por isso que a Teoria Unificada tem, de acordo com Davidson, muitas características de uma ciência (tais como oferecer uma estrutura abstracta, com propriedades que podem ser provadas e tornar a previsão – de acções intencionais – possível).

Mas isso significa que a própria possibilidade de teoria repousa, nas palavras de Davidson, em ‘estruturas ditadas pelo nosso conceito de racionalidade’. I. e., os componentes desta tentativa de chegar a crenças, desejos e significação são normativas e são inabdicáveis no programa da Teoria Unificada. Toda a

teoria assenta nas normas da racionalidade: foram estas normas que sugeriram a teoria e são elas que lhe conferem a estrutura que tem. Para Davidson, é este o tipo de teoria da mente, significação, acção, que podemos ter.

Mas será a Teoria Unificada - uma forma de abordar a natureza da signi- ficação, da acção e do pensamento que assenta em estruturas ditadas pelo nosso conceito de racionalidade – científica? O que diz Davidson? Antes de mais, Davidson pensa que a Teoria Unificada, embora pretenda ser uma teo- ria do que é pensar, comunicar, usar significativamente linguagem para seres como nós, e ser uma teoria psicológica, não pretende ser ciência natural nem competir com a ciência natural. Não pretende nomeadamente (embora Davi- dson frequentemente se lhe refira como uma ‘teoria do conhecimento que já possuímos’) ser um exercício de ciência cognitiva, e foi por isso que irritou pessoas como Chomsky (que afirmou por exemplo que o que Davidson diz acerca de linguagem não nos diz nada acerca da forma como se adquire uma linguagem, ou do que é ou não inato em termos de sintaxe das línguas natu- rais). Aliás, o programa davidsoniano foi mesmo acusada por pessoas como J. Fodor e N. Chomsky de ser simplesmente não científico.

Outros escritos importantes de Davidson sobre filosofia da mente: Thought

and Talk (1975), Rational Animals (1982) – Pensamento e racionalidade versus

meras crenças; First-Person Authority (1984); Knowing One’s Own Mind (1986).

D. Epistemologia

Relativamente aos escritos de Davidson sobre questões epistemológicas, eles não serão aqui considerados directamente. Uma das teses centrais, e que lhe pemite não levar a sério por exemplo o cepticismo, é que existem três varie- dades de conhecimento (subjectivo, objectivo, intersubjectivo) e que estes se entre-sustentam. Davidson rejeita ainda o terceiro dogma do empirismo (a separação esquema conceptual/conteúdo empírico), que ainda se encontraria na filosofia de Quine.

Artigos: A coherence theory of truth and knowledge (1973); On the very idea of a

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