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5.2 Neologismo por empréstimos sintáticos

5.2.1 Flexão

Definimos a flexão como um processo morfológico que consiste no emprego de diferentes afixos acrescentados aos radicais ou aos temas (nominais e verbais) das palavras variáveis para exprimir as categorias gramaticais (número, gênero, pessoa, caso e tempo). Assim, podemos caracterizar a flexão como variante das desinências dos nomes e dos verbos. No entanto, sabemos que cada uma das formas flexionadas de uma palavra seja ela (substantivo, pronome ou verbo) variam segundo o caso, o gênero, o número e a pessoa, dessa forma a flexão pode ser definida como o conjunto das formas flexionadas de uma palavra.

1. Apaga (Mateus 18:26), do português pagar. Nas versões bíblicas em português: (a) [pagarei]; (b) [pagarei]; (c) [pagarei].

Upe-ma ramo upe hembigwái heta eterei oreve va’e onhesNJ gwetypy’ã-rehe ojáry rovagwy-py. “Aníke nde poxy teƭ Xe-vy. Ãy ndikatúiry apaga nde-vy. Emoƭ katu xe-vy araka’e pa aju-ta apagapa hagwã nde-vy” he’i ojáry-pe.

(a) Por isso, o escravo prostrou-se e começou a prestar-lhe homenagem, dizendo: ‘Tem paciência comigo, e eu te pagarei tudo de volta’.

(b) Então aquele servo, prostrando-se, o reverenciava, dizendo: Senhor, sê generoso para comigo, e tudo te pagarei.

(c) Mas o empregado se ajoelhou diante do patrão e pediu: “Tenha paciência comigo, e eu pagarei tudo ao senhor!”

Bridgeman (2002) afirma que “o prefixo a- é definido como a primeira pessoa do singular, o pronome (eu)”. Verifica-se que o prefixo a- não é o responsável pela mudança

neológica no vocábulo em questão. A adaptação consiste na remoção do <r> do verbo “pagar” em português, cabendo ao prefixo a marcação de tempo do verbo (futuro do presente do indicativo): “pagarei”, da primeira pessoa do singular.

No entanto, observamos que {a-} marca número e pessoa, evidenciando o processo de neologismo por flexão (apaga = 1º pessoa do singular > adaptação sintática).

Segundo Cardoso (2008, p. 66), “a língua kaiwá, morfologicamente, flexiona o verbo por meio de prefixos e clíticos marcadores de número e pessoa”.

2. Japaga (Colossenses 1:14), do português pagamento/pagar. Nas versões bíblicas em português: (a)[resgate]; (b) [redenção]; (c) [liberta].

“Hesu Cristo Katu onheme’Ӂ va’ekwe nhande rekove-rehe, jaiko rei hagwã japaga e’ӻ reheve. Ha’e omboy ke va’e nhandé hegwi nhane rembiapo vaikwe”.

(a) Mediante quem temos o nosso livramento por meio de resgate, o perdão dos nossos pecados.

(b) Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a saber, a remissão dos pecados;

(c) É ele quem nos liberta, e é por meio dele que os nossos pecados são perdoados.

No kaiwá, não há uma palavra que represente a ideia de “pagamento”43. Diante disso, houve um empréstimo linguístico do verbo “pagar”, do português, para “paga”, em kaiwá. Trata-se do sujeito nós (pessoa pronominal), uma derivação, no português: pagar/ pagamento. Já no kaiwá, trata-se de uma flexão, ou seja, um neologismo por flexão de substantivo.Ressaltamos que não foi encontrada a palavra “paga” isoladamente; esta aparece sempre acompanhada por prefixos, sendo eles: a-, o-, ja- e mbo-, os quais são analisados ao longo desta breve descrição.

 

43

Afirmação justificada por uma “questão cultural”. A cultura do não índio influenciou a vida dos povos indígenas: antigamente os índios viviam à base de troca; não existia compra, venda, pagamento, etc., atualmente a integração cultural é considerada responsável pela miscigenação e mudança de comportamento dos indígenas.

No exemplo, ‘Japaga’, como já citado, o verbo “pagar”, do português, é adaptado para “paga”, em kaiwá, e este aparece acompanhado pelo prefixo ja-.

Bridgeman (2002) afirma que “o prefixo ja- indica o ‘sujeito nós (inclusivo) da primeira pessoa do plural’. Verifica-se, no exemplo, que o prefixo não é o responsável pela mudança neológica no vocábulo em questão. A adaptação pode ser explicada pela remoção do <r> do verbo “pagar”, em português, que resulta na palavra “paga”, em kaiwá. Cabe ao prefixo ja- a marcação de pessoa: “nós pagamos”.

Na versão bíblica kaiwá, a palavra “japaga” substitui as palavras “resgate”, “redenção” ou “liberta” nas versões em português, porém o contexto atribui à palavra “resgate” o sentido de “pagamento pelo pecado”. Assim, a adaptação não altera o sentido da palavra; apenas a forma.

Com base no dicionário Houaiss (2009), “resgate” significa: “ato ou efeito de resgatar(-se), mediante o pagamento de quantia determinada; a quantia paga por essa libertação; ato de libertar, de livrar; livramento, libertação; salvamento; extinção de um débito em consequência de pagamento” e “pagar” significa: “entregar ou restituir (uma quantia que se deve); cobrir despesa ou débito”. Essas definições nos remetem ao contexto de “efeito pelo instrumento” registrado por Ullmann (1964).

3. Ovende (Lucas 17:28), do português vender. Nas versões bíblicas em português: (a) [vendiam]; (b) [vendiam]; (c) [vendiam].

Upéixa ave ojehu araka’e myamyrƭ Sodoma tetã mygwa kwéry-pe. Oiko-ma jave Ló amyrƭ upe pygwa kwéry oiko rei ave araka’e. Okaru, oy’u rei, ojogwa omba’erã, ovende ave omba’ekwe, kokwe ojaty, gwogarã omopu’ã ave. Upéixa rei okwa araka’e.

(a) Igualmente, assim como ocorreu nos dias de Ló: comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam, construíam.

(b) Como também da mesma maneira aconteceu nos dias de Ló: comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e edificavam; (c) A mesma coisa aconteceu no tempo de Ló. Todos comiam e

Assim como ocorre com o verbo “pagar”, no kaiwá não há uma palavra que represente a ideia de “vender” 44. Diante disso, houve um empréstimo linguístico do verbo “vender”, do português, para “vende”, em kaiwá. Sendo ele um verbo, sempre deve ocorrer prefixado pela marca de pessoa, ou seja, trata-se também de um neologismo por flexão (ele/eles 3º pessoa pronominal). Também observamos que não foi encontrada a palavra “vende” isoladamente; esta aparece sempre acompanhada por prefixos; neste caso, observa-se a prefixação do morfema o-.

Bridgeman (2002) afirma que o prefixo o- indica “o sujeito ele, ela da terceira pessoa do singular e eles, elas da terceira pessoa do plural”. Verifica-se que o prefixo o- não é o único responsável pela mudança neológica no vocábulo em questão. É preciso dar atenção para a explicação linguística cultural: a prática da vendição não fazia parte da rotina de vida dos indígenas, contudo, para a sobrevivência, hoje em dia, esse artifício foi adaptado à cultura; logo essa adaptação justifica a nomeação da nova palavra, por meio de um empréstimo linguístico.