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1.7 O povo

1.7.3 Os problemas sociais

Entre os problemas sociais existentes na reserva indígena de Dourados, os mais graves são os que se referem à desintegração social e, consequentemente, à violência que afeta a comunidade, bem como o crítico estado de saúde da população.

A desintegração social vivida pelas aldeias guaranis já era, na década de 1970, proveniente de experiências aculturativas e da mestiçagem crescente, que rompera a primitiva homogeneidade étnica, conforme destaca Schaden (1974). Segundo o autor, a ruptura religiosa refletia-se nos constantes desentendimentos e nas inimizades surgidas no interior do grupo, o que dificultava a realização de cerimônias religiosas, das quais todos os membros deveriam participar, originando, assim, a desintegração social.

Outro fator que pode ser considerado com relação à desintegração é a problemática do confinamento da população indígena dentro das reservas. As aldeias têm demonstrado uma política desastrosa, além do crescimento demográfico excessivo, o que acarreta a superpopulação e a sobreposição de aldeias e chefias, bem como a problemática do desgaste dos recursos naturais. (CARDOSO, 2008, p. 13).

Com relação à saúde, em 1963 foi inaugurado, em Dourados, o Hospital e Maternidade Indígena Porta da Esperança, que atende, exclusiva e gratuitamente, a população indígena, os obreiros e funcionários da missão. Além disso, desde o ano de 2001, a missão mantém convênio com a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) para dar atendimento à população indígena de todo o estado de Mato Grosso do Sul.

É certo que há muitas barreiras no atendimento à saúde do povo kaiwá. Os próprios kaiwás interrompem o tratamento por não entenderem o que o profissional de saúde diz, ou por não terem suas crenças e costumes levados em conta na hora do tratamento. Para minimizar esses problemas, foi preciso inserir o serviço de intérprete e, de acordo com experiências contadas por profissionais da área de saúde que trabalham na FUNASA, há diversos casos de sucesso, seja pela interpretação das línguas, seja pela conciliação entre os costumes da etnia e a medicina tradicional não-indígena.

São altos os índices de desnutrição e mortalidade infantil; muitas crianças subnutridas ficam suscetíveis a várias doenças e morrem por falta de busca de atendimento. Casos de diarreia infantil, por exemplo, são muito comuns. Esses problemas já vêm sendo relatados desde a década de 1990 e permanecem até os dias atuais. Nota-se que o hospital é utilizado como última opção; o indígena apenas busca atendimento médico quando todos os recursos tradicionais da cultura de cada etnia já foram utilizados e não lograram êxito.

Já a questão da violência é bem apresentada por Espíndola (2002): constantemente os índios da RID estão no noticiário, geralmente em decorrência de crimes, suicídios e outras mazelas. Atualmente, projetos vêm sendo desenvolvidos com a intervenção do Poder Público, bem como com a ação dos missionários e voluntários, a fim de contornar esses problemas. Segundo a autora, “as mulheres são as maiores vítimas da violência dentro da Reserva. Sofrem agressão física de seus maridos constantemente, às vezes até em frente a estranhos, mas ninguém se envolve para ajudá-las ou afastar o marido raivoso”. (ESPÍNDOLA, 2002, p. 43). Isso decorre, geralmente, da ingestão exagerada de bebida alcoólica ou de ciúme. Outra forma de violência contra a mulher apontada pela pesquisadora é o abandono, pois muitas vezes os maridos saem para trabalhar e não voltam e, em alguns casos, constituem outra família em outro lugar. Na cidade de Dourados, há um orfanato onde é possível encontrar várias crianças indígenas que lá são abrigadas em consequência desse abandono familiar. Vale lembrar que, nesses abrigos, outra problemática vivenciada pelas crianças é a de ter sua cultura relegada, pois passam a conviver apenas com não índios.

Por fim, não podemos deixar de citar a violência existente contra os povos indígenas, especialmente aquelas praticadas contra o seu patrimônio, suas terras, que estão no centro das disputas políticas e econômicas. Essas disputas demonstram o interesse pelo desenvolvimento a qualquer custo, sem que os direitos indígenas sejam respeitados ou garantidos. A comunidade indígena kaiwá, em especial, precisa criar estratégias de sobrevivência e recriar o sentido da vida no limite de suas possibilidades.

A situação do povo kaiwá revela-se um ícone da violência, dada a recorrência do confinamento, das ações contrárias à demarcação de territórios para abrigar as comunidades, do preconceito, do descaso, entre outros problemas. Em face dessas condições, os kaiwás são conduzidos a uma enorme frustração, de que decorre um desinteresse total pela vida, o que faz com que se entreguem completamente a um círculo vicioso que inclui a cachaça, a mendicância, a violência, as drogas, a prostituição e o suicídio. Nessas situações, ocorre uma inversão: o atacado, que seria a vítima, é transformado em réu.

Na somatória de tudo isso e como um tipo de ápice, está o suicídio, que tem sido um problema sério nas aldeias de Dourados. Alguns estudiosos afirmam que, entre as reservas indígenas, a RID é a que apresenta o maior índice de suicídios do Brasil. O que leva o indígena dessa região de Dourados/MS a esse tipo de ato é um tema bastante debatido entre antropólogos, linguistas e indigenistas, tais como Brand (1997), Chamorro (2008), Espíndola (2002), Morgado (1991), Oliveira e Neto (2003), Santos (2007), Schaden (1962), Wenceslau (1990), entre outros.

Wenceslau (1990, p. 142) menciona que os suicídios provêm das agressões corporais, expulsões e repressões por meio de detenções sob as ordens do capitão. “Os índios repreendidos passam por uma fase de depressão e sua reação imediata é a de tirar a própria vida”. Já para Morgado (1991, p. 585), para explicar a epidemia do suicídio entre os indígenas guaranis-kaiwás, “propõe-se a hipótese do recuo impossível12, onde se verifica o esgotamento de qualquer possibilidade de recuar no espaço, diante da civilização ocidental, e simultaneamente, seus valores de dignidade humana são aviltados”. Por sua vez, Espíndola (2002, p. 41) relata que “a crença no místico e no sobrenatural faz com que muitos defendam a ideia de que o suicídio praticado, em sua maioria por adolescentes, seja influência de espíritos maus presentes na reserva, ou de feitiços que fizeram contra eles”. Percebe-se, no entanto, que são muitas as versões explicativas para a ocorrência do suicídio em aldeias indígenas.

A problemática do suicídio direciona-nos à falta de perspectiva de vida, superpopulação, situação de encurralamento, separação da terra-mãe, miséria, fome, falta de espaço, desnutrição, violência, vícios. Muitos indígenas afirmam que não há muito a ser feito diante de tantos problemas e, por isso, os suicídios acontecem mais facilmente. E, para uma suposta solução, ouvimos que é preciso uma reconstrução do “modo de ser e viver” desse povo.

 

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Não há, no entanto, dúvidas de que as dificuldades em alcançar o eixo da causa verdadeira também contribuem para o apego a pseudocausas, associadas no tempo e no espaço. Consideramos que a tragédia mencionada explique-se melhor pela hipótese do recuo impossível apresentada por Morgado (1991), porém apresentar a verdadeira causa que tem levado os guaranis e kaiwás a cometer o suicídio é já se comprometer com sua superação.