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CLEPUL – FLUL

No nome próprio da poeta; consagra-se a figura e o seu reconheci- mento comunitário: Florbela é identificação suficiente.

Na poesia que a constitui, confluem linhagens diversas que lhe aden- sam a identidade nacional estética. Nascida em 1894 e falecida em 1930, vive numa época conturbada da história nacional e europeia e começa a publicar na segunda década do século.

Observemos a moldura geral: as guerras mundiais (1914-18 e 1939- 45) e a (re)fundação nacional (1a República, 1910-33), já sem mencionar

outros factos, arrastando consigo a dor, a carência, a indecisão de hori- zontes, o medo do imediato, a agonia existencial, a lamentação da perda, em suma, toda uma vivência desorientada da crise humana, existencial, política, social, económica, ética e moral.

Na Europa, o século vive uma profunda transformação. Alguns sinais: a Interpretação dos Sonhos (1900), de Freud, o Parque Güell (Gaudi), em Barcelona, o “Die Brücke” (1905), em Dresden, a Teoria da Relatividade (1905), de Einstein, As Meninas de Avignon (1907), de Picasso, Orna-

mento e delito (1908), de Adolf Loos, Do espiritual na Arte (1912), de

Kandinsky, o Quadrado negro sobre fundo branco (1913), de Malevich, a revista De Stijl e os Poemas sonoros dadá (1917). . . entretanto, os Ma- nifestos do Futurismo (1909), de Marinetti, do Dadaísmo, de Hugo Ball (1916) e de Aragon (1920), do Surrealismo (1924), de Breton, a Exposi- ção Surrealista (1936). . . as duas Guerras Mundiais (1914-18 e 1939-45) e a bomba atómica, a Revolução Russa (1917) e a criação das Nações Unidas (1948), a Grande Depressão (1929 e ss.). . . o questionamento, a

veemência, a irreverência, a inovação, a revolução e a tragédia eram os ingredientes dessa profunda mudança de mentalidades de uma humani- dade que começa a viver ao ritmo e em função da televisão, do rádio, do telefone, dos aviões, dos aparelhos portáteis, do computador. . .

Em Portugal, o regicídio e a primeira (1910) e segunda (1926) Repú- blicas, e tudo o que envolveram, implicaram e arrastaram, como a subida ao poder de Salazar (1936), a Concordata (1940). . . as vanguardas artís- ticas. . . a travessia do Atlântico (1922). . . a ritmo incerto, entre pausas e convulsões, a paisagem também é de transformação, deixando para trás, já semi-fantasmizado, outro século que também fora tempo de mudança e de profundo questionamento identitário.

No plano estético, desde o final do séc. XIX, duas tendências se vão desenhando em contraponto: a de vocação estética e psicologista que inscrevia o individual e o nacional, humanizados, no universal e a de atenção e comprometimento sociais na res pública. Um olhar que perscruta a sua própria humanidade e a arte em que deseja configurá-la e um outro que observa e denuncia o visível evidenciado, chocante. A mítica e crística Pátria (1896) crucificada de Junqueiro envolta na névoa da manhã cuja ressurreição um ancião e uma criança vêm insinuar através da simbólica espada reerguida do campo de batalha, perdida a sua imagem convulsionada pela paixão e lamento bíblicos, vivida a estetização orphica, humaniza-se e banaliza-se no quotidiano de um tempo de (des)razões que uns querem organizar e que outros desejam sondar. Nas (de)cadências desses olhares cruzados, emergirá um outro, em fuga para um além e

aquém do real e da arte, surrealista.

Enfim, molduras. . .

Contrastando com poéticas que reclamam a clivagem entre o homem e a escrita, a racionalidade de uma construção intelectualizada, um verbo gerado na matriz do fingimento, Florbela Espanca (1894-1930) singulari- za-se, recuperando a vocalização romântica do poeta anelante de inspi- ração psicoifânica e de genialidade com laivos de reflexão psicanalista e combinando-a com as figurações mais pregnantes da cultura nacional: as de linhagem trovadoresca (meninas, donzelas, castelãs, castelos, natureza e cavaleiros andantes) e as de linhagem popular (romanceiro, contoário: princesas e toda a sua corte), evocando, por vezes, elementos da tradição mística (êxtase, dor, tortura íntima, visões, etc.).

Que voz vem no som das ondas Que não é a voz do mar?

Fernando Pessoa

Recordarei algumas configurações desse feminino cuja voz ecoa desde o ponto de fuga do tempo, deixando que a memória se exprima sem a disciplina da citação rigorosa, em jeito fragmentário e ao ritmo das suas ondas.

Ao fundo, a menina que na poesia trovadoresca vocaliza o seu canto magoado, dolente, saudoso de quem partiu, na agonia do vazio semi- esperançoso que apenas a natureza preenche e a que os elementos res- pondem ou não:

Ai flores, ai flores do verde pino,

se sabedes novas do meu amigo? Ai Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo,

se sabedes novas do meu amado? Ai Deus, e u é?1

Ou menina e moça que vive a dor e a perplexidade da perda pelo seu afastamento à beira-mágoa do espelho líquido de manso ribeiro, na companhia de um rouxinol cujo canto declina com ele e com as lágrimas juvenis:

Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. [. . . ] Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda.2

Ficando ou partindo, ela tem os olhos com a tristeza descrita por Roiz de Castel-Branco, em Cantiga sua partindo-se (séc. XV-XVI):

[. . . ] tão tristes [. . . ]

1D. Dinis. Cancioneiro, Lisboa, Editorial Teorema, 1997.

2Bernardim Ribeiro. Menina e Moça (1554), Edição de Teresa Amado, Lisboa, Edições Duarte Reis, 2002, p. 53.

que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém. Tão tristes, tão saudosos, tão doentes da partida, tão cansados, tão chorosos, da morte mais desejosos cem mil vezes que da vida. Partem tão tristes os tristes, tão fora d’ esperar bem, que nunca tão tristes vistes outros nenhuns por ninguém.

Olhos que Camilo Pessanha (Clepsidra) confessou “cansados” e “ar- didos” e Fernando Pessoa (Mensagem) e Eugénio de Andrade (“Os olhos rasos de água”, de As Palavras Interditas) continuam, como Camilo, An- tónio Nobre, António Patrício, Guerra Junqueiro, etc., a sentir “quentes” ou “rasos” de “ânsia” ou “água”. . . lágrimas movendo a clepsidra. . .

Em Florbela, os olhos são “fontes”, “cisternas”, “catedrais”, “cam- pas”. . . mas também “endoidados”, “assombrados”. . . espelhando da luz que os incendeia às sombras que os anoitecem. . . olhos que a lírica tematiza, universalizando (“espalham luz divina”, como diz Tomás António Gonzaga), e que a ficção tende a nacionalizar (os da garrettiana Joaninha, os da ca- moniana Leonor, etc.). . .

Os seus olhos são, também, flores. “Violetas”, flores imperiais, celebra- tórias, mas também anúncio dessa morte inesperada por uma paixão que arrastou Perséfone para o mundo subterrâneo, duplicidade abrangente, totalizadora, universalizante, “exaltante” (“Exaltação”):

Da vida tenho o mel e tenho os travos No lago dos meus olhos de violetas, Nos meus beijos estáticos, pagãos!. . . Trago na boca o coração dos cravos!3

Violetas, assim, evocam as que Botticelli pinta aos pés das Graças d’A Primavera (1477-1482). E recordam a personagem a que dão o nome 3 Obras Completas de Florbela Espanca (recolha, leitura e notas de Rui Guedes), vol. II, Poesia (1918-1930), Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1985, p. 157.

em La traviata (1852), insinuando-lhe a queda "A mulher caída", ópera de Giuseppe Verdi com libreto de Francesco Maria Piave baseada n’ A Dama das Camélias (1848), de Alexandre Dumas Filho4. Se Garrett as evoca em

Camões e em D. Branca, Camilo já a observa no rosto dolorido da mulher

ou enfeitando-lhe o chapéu; Gomes Leal vê-a “mística” ou “esfolhada” a chorar o amor (Claridades do Sul); Guerra Junqueiro admira-as ou lamenta-as “esmagadas”; António Nobre vê-as cair atiradas aos molhos à Bem Amada; António Patrício observa-a, “num vazio de hipnose”, em vitral ensanguentado (“vitral que fulgura, intumescido de sol, violeta e sangue”, em Pedro, o Cru, 1913); Camilo Pessanha evoca-a em matinal “eflúvio de violetas” (Clepsidra), Augusto Gil considera-a “a flor da gente portuguesa”, um “modo de dizer saudade” (Sombra de Fumo, 1915); Júlio Dinis considerará que “só o cheiro da violeta me faz cismar, deste cismar que os Franceses chamam rêverie e que nós não sei bem que nome lhe damos” (Inéditos e Esparsos) e Mário de Sá Carneiro tingirá com ela ficcionais “episódio” e “lembrança” (Céu em Fogo). Poderíamos continuar em vertigem de evocação. . .

E as violetas são anunciadas pelos crisântemos, nimbados de oriental solaridade e perfeição na sua origem, marcados pela dramaticidade (Ma-

dame Chrysanthème, 1887, de Pierre Loti), ritmados pela música operática

(Madame Chrysanthème, 1893, de André Messager, Madame Butterfly, 1904, de Puccini)5, assinalando em si a passagem do tempo (“crisântemos

roxos que descoram. . . ”, do poema “Fumo”) e da dor da Poeta (“A sombra dos meus olhos, a escurecer. . . / Veste de roxo e negro os crisântemos”, 4 Obra que teve a adaptação teatral feita pelo seu autor e encenada em 1852, com vasta filmografia: em 1907, por Vigo Larsen, em 1909, por Ugo Faleria, em 1912, por Henri Pouctal, com Sarah Bernhardt, em 1915, por Baladassarre Negroni e Gustavo Serena, em 1921, por Ray C. Samllwood, com Alla Nazimova e Rodolfo Valentino, em 1934, por Abel Gance e Fernand Rivers, com Yvonne Printemps e Pierre Fresnay, em 1936, por George Cukor, com Greta Garbo e Robert Taylor, em 1953, por Raymon Bernard, com Micheline Presle e Gino Cervi, em 1980, por Mauro Bolognini, com Isabelle Huppert e Gian Maria Volontè, etc..

5 Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, tem libretto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa com base no conto "Madame Butterfly"(1898), de John Luther Long, dramatizado por David Belasco (Madame Butterfly: A tragédia do Japão, 1900), ambos inspirados, por sua vez, em Madame Chrysanthème (1887), de Pierre Loti. O tema foi largamente glosado na arte finissecular.

no poema “Esquecimento”) perdida no jogo de espelhos onde realidade e sonho se confundem:

Esse de quem eu era e que era meu, Que foi um sonho e foi realidade Que me vestiu a alma de saudade, Para sempre de mim desapar’ceu. Tudo em redor então escureceu, E foi longínqua toda a claridade!

Ceguei,. . . tacteio sombras. . . Que ansiedade! Apalpo cinzas porque tudo ardeu!6

Violetas que se oferecem em requiem no “caixão dolente” do “Sonho Morto” (poema):

Nosso sonho morreu. Devagarinho, Rezemos uma prece doce e triste Por alma desse sonho! Vá. . . baixinho. . . Por esse sonho, amor, que não existe! Vamos encher-lhe o seu caixão dolente De roxas violetas; triste cor!

Triste como ele, nascido ao sol poente, O nosso sonho. . . ai!. . . reza baixo. . . amor. . . Violetas em cuja prece se inscreve a esperança: Nosso sonho morreu. . . Reza mansinho. . . Ai, talvez que rezando, docemente, O nosso sonho acorde. . . mais baixinho. . .7

Violetas que são a alma dos poetas, inscritas na terra e no infinito celeste, telúricas e aéreas, às vezes, cadentes como a estrela que é “Flor fugida/ Ao ramalhete atado no infinito”8:

Ai as almas dos poetas Não as entende ninguém; 6Florbela Espanca. op. cit., p. 257

7Florbela Espanca. op. cit., v. I (1903-1917), p. 229. 8Florbela Espanca. op. cit., v. I (1903-1917), p. 248.

São almas de violetas Que são poetas também. Andam perdidas na vida, Como as estrelas no ar; Sentem o vento gemer Ouvem as rosas chorar! 9

Violetas que as pálpebras velam com a “Languidez” sentida em “Tardes da minha terra, doce encanto,/ Tardes duma pureza de açucenas, /Tardes de sonho, as tardes de novenas,/ Tardes de Portugal, as tardes de Anto”, “Languidez” que intitula um poema:

Fecho as pálpebras roxas, quase pretas, Que poisam sobre duas violetas, Asas levas cansadas de voar. . .10

Violetas que também são a “sombra” (poema), debruçando-se e reflec- tindo-se nos olhos líquidos, lagos de alma e memória convocando os “Noc- turnos” de Chopin:

De olheiras roxas, roxas, quase pretas, De olhos límpidos, doces, languescentes, Lagos em calma, pálidos, dormentes Onde se debruçassem violetas. . .11

Enfim, nesses olhos nascidos com “vastos céus”, seus e das que a precedem e lhe sucedem, centra-se o retrato de uma “Princesa” da poesia e do contoário. “Era uma vez. . . ”. Sob o signo da perda: perda dos seus “fantásticos castelos” e das suas insígnias heráldicas (“Perdi a minha

taça, o meu anel,/ A minha cota de aço, o meu corcel, / Perdi meu elmo de ouro e pedrarias. . . ”), perda de amor e ilusões. Sob o signo do “assombro” e da “assombração”:

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas. . . Sobre o meu coração pesam montanhas. . . Olho assombrada as minhas mãos vazias. . . 9Florbela Espanca. op. cit., v. II, p. 88.

10Florbela Espanca. op. cit., v. II, p. 86. 11Florbela Espanca. op. cit., v. II, p. 153.

E é esse signo, destino ou fado, que transformam a “Princesa” en- cantada, de “Conto de Fadas”, em “Princesa Desalento” e “Soror” desen- cantada e saudosa cujo olhar exprime a ânsia de passado-que-desejaria- futuro num livro especial, seu e de pregnante e amado ausente, livro exigindo um protocolo de leitura especial e intimista:

Livro do meu amor, do teu amor, Livro do nosso amor, do nosso peito. . . Abre-lhe as folhas devagar, com jeito, Como se fossem pétalas de flor.

Nesse protocolo, ecoa o ritual nobreano do “missal dum torturado” dirigido ao grupo:

Abri-o! Orai com devoção sincera! E, à leitura final duma oração, vereis cair no solo uma quimera: moços do país! Vereis então

o que é esta vida, o que é que vos espera. . . Toda uma Sexta-feira de Paixão!

Afinal, na configuração do Poeta, não há lugar para a diferenciação de género nem outra, apenas para a sua singularização pelo excesso que o eleva da turba:

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja

Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor! É ter fome, é ter sede de infinito!

Por elmo, as manhãs de ouro e de cetim. . . É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente. . . É seres alma e sangue e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente!12

Os olhos de um tal Poeta exprimem-se numa voz onde a anterioridade ecoa, devolvida, também pelo espelho das ondas, refractada, ritmada de pranto colectivo:

Quando o sol vai caindo sob as águas Num nervoso delíquio d’ouro intenso, Donde vem essa voz cheia de mágoas Com que falas à terra, ó mar imenso? Tu falas de festins, e cavalgadas De cavaleiros errantes ao luar? Falas de caravelas encantadas Que dormem em teu seio a soluçar? Tens cantos d’epopéias? Tens anseios D’amarguras? Tu tens também receios, Ó mar cheio de esperança e majestade?! Donde vem essa voz, ó mar amigo?. . . . . . Talvez a voz do Portugal antigo, Chamando por Camões numa saudade!13

Suspendo o curso da memória que deixarei prosseguir noutro lugar. Nos olhos de Florbela, ouvimos a desventura da mágoa que atravessa a cultura nacional e a que lhe timbra o(s) livro(s), mesclando a tragédia lírica de tragédia crística, fundindo retratos e modelos, adensando de volumetria e polifonia o traço e a voz, reconfigurando-se entre a violeta e o crisântemo, o verbo e a vida, o amor e a morte. . . Florbela. Flor onde o

seu feminino e o arquétipo masculino do outro confluem.

12Florbela Espanca. op. cit., v. II, p. 186.

13Florbela Espanca. A mensageira das violetas: antologia. Seleção e edição de Sergio Faraco. Porto Alegre, L&PM, 1999, pp. 2-3.

Exatidão: reconhecimento de si e busca