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Feiticeiras (2006) é uma obra poética que foi musicada por Antó-

nio Chagas Rosa, compositor português, e encenada na França em 2006, seguindo-se para Portugal em 2007 e, no mesmo ano, também no Brasil. A obra é dividida em partes que caracterizam uma ópera, sendo elas “Pró- logo”, “Ária da Feiticeira”, “Sabat”, “Feitiço”, “Belzebu”, “Refrão Mascu- lino”, “Santo Ofício”, “Exorcismo”, “Refrão Feminino”, “Ária do Inquisidor”, “Sacrifício”, “Canto da Ressurreição” e novamente “Refrão Masculino” e “Refrão Feminino”. Dos versos polifônicos de Feiticeiras gritam as vo- zes da igreja, dos homens, do diabo e de mulheres, as quais, desde a Idade Média, sofrem pelo sentimento de não pertença a uma sociedade, no caso a Ocidental, determinada por leis patriarcais de cunho religioso cristão. Ao ler os versos de Horta, é possível perceber convergências entre sua obra e A Feiticeira, de Jules Michelet, historiador francês. O livro foi publicado pela primeira vez em 1862 e contou com uma edição portuguesa em 1974, na qual figuram comentários sobre a obra, sendo um destes textos de autoria de Horta. Jules Michelet realizou uma in- vestigação acerca da origem do sujeito histórico feiticeira. A ausência de explicações coerentes motivou o historiador a uma pesquisa cuidadosa e inovadora, considerando sua época e os trabalhos realizados até então. Em sua abordagem sobre a temática da origem da feiticeira, Michelet, assim como Maria Teresa Horta em sua poesia, torna a voz da mulher presente e significativa, dando ênfase ao horror vivido pelo ser feminino 1 Maria Teresa Horta, in Jules Michelet, A Feiticeira, trad. Manuel João Gomes, Lisboa, Afrodite, 1974.

desde a Idade Média, algo que ainda não havia sido feito. Desta forma, a primeira indicação da gênese da “Esposa do Diabo”, na obra A Feiticeira, é a de que ela seria o crime da Igreja Católica.

A configuração da feiticeira, da bruxa, ainda hoje tão envolta por mis- térios, e símbolo do mal, teve início na Idade Média, seguindo-se ao Renascimento, junto à imposição de um novo sistema econômico em que a Igreja e o Estado uniram-se para estabelecer um sistema de domínio mo- ral e financeiro, no qual qualquer espécie de resistência era punida com tortura e morte; tratava-se da Santa Inquisição. Mulheres independentes, sábias e libertas sexualmente foram as grandes vítimas deste sistema. A voz poética hortiana apresenta, no “Prólogo”, essas mulheres:

Prólogo

Fê-las a natureza irmãs beira com beira

entre a vida e a morte [. . . ]

Recolhidas sem pressa na urdidura da teia lívidas, felinas e vibrantes

no veludo da veia Delas tem medo

quem as persegue e as perde: Os amantes no desejo Os padres na sua febre Os juízes que as acusam de ódio enquanto as despem no gosto com que as torturam [. . . ]

Escondem elas ao que vêm Desnudam os seios na cama Tomam almas no desvão carmesim e lima pura

Seduzem os inocentes fiam os elementos colhem as ervas da cura2

Estas filhas da natureza enfrentaram a ordem religiosa patriarcal e passaram a significar a força e o sustento de comunidades camponesas fragilizadas. Dentre seus dons estava o profundo conhecimento acerca das substâncias oferecidas pela natureza, de como manipular ervas a fim de criar remédios naturais; eram grandes conhecedoras do universo botânico. Foram, como menciona Michelet, “o único médico do povo durante mil anos”3. Por amor ao próximo e sem o interesse dos religiosos e senhores,

que vislumbravam cada vez mais riqueza às custas do trabalho incessante dos servos, eram as mulheres camponesas, fortes e inteligentes, as quais passaram a ser acusadas de estarem possuídas por demônios em função de enfrentarem o Estado e a Igreja, que encontraram na natureza a cura das suas angústias e também a cura para flagelos da Idade Média, os quais atingiam os mais frágeis e negligenciados pela igreja:

As doenças da Idade Média, tanto quanto se pôde aperceber, em- bora indefinidas, foram, principalmente, a fome, a inanição e a de- pauperação sanguínea. [. . . ] O sangue era um líquido claro, trans- parente, os delírios deveriam ser constantes. Exceto pelo médico árabe ou Judeu, pago a peso de ouro pelos soberanos, a medicina só era praticada nos umbrais das igrejas e às vezes nos batistérios. Aos domingos, depois da missa, corriam multidões implorando so- corro, e eram acolhidos com as seguintes palavras: “Tendes pecado e Deus vos castiga. Agradecei, é um peso a menos que carregais para a vida futura. Resignai-vos, sofrei, morrei. A Igreja reza por seus mortos”. [. . . ] A lepra é o último estágio e o apogeu do flagelo [. . . ] fez-se então o que o instinto de conservação ainda não ousara, desafiou-se às proibições, abandonou-se a velha medicina eclesiás- tica e as inúteis bênçãos. Recorreu-se à feitiçaria. Por hábito e por receio ia-se diariamente à igreja, mas a verdadeira igreja sempre esteve em sua casa, no campo, na floresta, no deserto.4

2Maria Teresa Horta, Poesia Reunida, Lisboa, Dom Quixote, 2009, pp. 826-827. 3 Jules Michelet, A Feiticeira, trad. Ronaldo Werneck, São Paulo, Círculo do Livro, 1974, p. 7.

4 Jules Michelet, A Feiticeira, trad. Ronaldo Werneck, São Paulo, Círculo do Livro, 1974, pp. 94-95.

A feiticeira, médica do povo, foi, especialmente, a curadora de mulhe- res que sofriam de diversos males relacionados não somente às doenças da pele, que eram comuns, como também sofrimento e angústia ligados à maternidade e ao casamento. Jamais poderiam as mulheres falar sobre suas aflições, pois pesava sobre elas a moral eclesiástica e patriarcal. Só contavam mesmo com outras mulheres, aquelas que conseguiram superar as leis da igreja e, nas palavras de Horta, “desataram os nódulos do cha- mamento”5, as feiticeiras. A elas clamavam a “jovem, banhada em pranto,

pedindo um aborto [. . . ], a madrasta a queixar-se [. . . ], a esposa triste, tantas vezes engravidada, que só concebia filhos para vê-los morrer”6.

Aquela que nasceu fada e detinha os segredos da floresta, aquela que foi o único médico do povo durante mil anos nos tempos do paganismo, na Idade Média passa a ser “caçada, perseguida como uma besta selvagem, perseguida pelos campos, desonrada, apedrejada, colocada nas chamas da fogueira!. . . ”7, pelas mãos do clero. E, através do poder e dos interesses

eclesiásticos, forma-se no imaginário comum a figura da feiticeira como uma mulher perigosa que possui poderes sobrenaturais e que simboliza a maldade, como vê-se ainda hoje em meios como a literatura e o cinema. Não só o clero, mas o povo passa a repudiá-la, os homens a querem nas chamas da morte, como cantam os versos hortianos:

Refrão Masculino [. . . ]

Ei! Feiticeiras daninhas! Deus protege e acarinha as mãos de quem exorciza Havemos de vos queimar e das flores

sereis cinza8

5Maria Teresa Horta, Poesia Reunida, Lisboa, Dom Quixote, 2009, p. 824.

6 Jules Michelet, A Feiticeira, trad. Ronaldo Werneck, São Paulo, Círculo do Livro, 1974, p. 104.

7 Jules Michelet, A Feiticeira, trad. Ronaldo Werneck, São Paulo, Círculo do Livro, 1974, p. 6.

A feitiçaria, da qual as mulheres foram acusadas e pela qual chegou-se à conclusão de que era resultado de uma suposta relação dessas mulhe- res com Satã, e que por isso precisavam de mãos abençoadas por Deus para exorcizá-las, como expressa a voz poética de Horta, foi instaurada pela misoginia vigente na época. Misoginia esta que foi intensificada e, pode-se dizer que, institucionalizada pela escrita dos inquisidores Hein- rich Kraemer e James Sprenger em O Martelo das Feiticeiras (1487), um exaustivo manual de caça às bruxas. Com o terror eclesiástico instaurado, as próprias mulheres, por vezes, acreditavam estar possuídas por Satã e acabavam por assumir crimes não cometidos. Segundo Jules Michelet,

O processo era simples. Torturar, intimidá-las pelo medo e pela dor [...] Por exemplo, uma feiticeira confessou o roubo, num cemitério, do corpo de uma criança morta com a finalidade de usar o cadáver nas suas composições mágicas. Disse-lhes o marido “Vá ao cemitério. A criança está lá”. Foram ao túmulo, desenterraram a criança e encontraram-na perfeita no seu ataúde. O juiz, porém, decidiu-se pela confissão da mulher, por julgar o fato que estava diante dos seus olhos uma ilusão do Diabo. A mulher foi queimada.9

O que houve durante a Inquisição, vigente do século XVI até o século XIX, foi um verdadeiro feminicídio em que milhões de mulheres, na Europa e na América de colonização portuguesa e espanhola, foram torturadas física e moralmente e queimadas em fogueiras. O horror tomava conta de tudo e de todos durante a “Santa” Inquisição, e as mulheres, como pontua Horta, referindo-se ao olhar sobre elas, “donas de maléficos poderes e pactos ocultos com o mal... o pecado original”10, não tinham a quem

recorrer e, então, evocavam o Diabo, para que fosse seu aliado e protetor contra a violência do clero:

Feitiço [. . . ]

9 Jules Michelet, A Feiticeira, trad. Ronaldo Werneck, São Paulo, Círculo do Livro, 1974, p. 154.

10 Maria Teresa Horta, in Jules Michelet, A Feiticeira, trad. Manuel João Gomes, Lisboa, Afrodite, 1974.

Te invoco Belzebu na quebrandura do risco

da chama que me queimou. Sus! Para cá bicho preto que róis a alma por dentro. Ata os nós que desataste no corpo do pensamento. Sobre ti debruço o vento Daninho lenho cuspido. Inferno deste tormento! Te evoco Belzebu na fervedura das ervas Vem negrume engastado! Vem coisa ruim! Dá-me o poder desaurado destinado para mim11

Nos versos hortianos, a mulher transformada em bruxa, violentada e fragilizada, através de seu “Feitiço”, “na fervedura das ervas”, evoca as forças do mal, do diabo, a quem ela é relacionada, para reconquistar seu poder de mulher sábia, independente e livre. Ela o chama: “Para cá bicho preto”, “negrume engastado! ”, “coisa ruim! ”, aquele que rói a alma e põe a mulher em desalinho, em descontrole; ela pede para que lhe devolva a serenidade e a frieza do raciocínio ao clamar para que Belzebu “ate os nós do corpo do pensamento” novamente. No último verso, a mulher reclama para si o poder que lhe foi conferido e que de fato não tinha - a feitiçaria, o pacto com Satã, a possessão - ideias estas criadas e incutidas na concepção de toda uma sociedade pelo poder misógino da Igreja Católica.

Michelet, com um tom romântico e ficcional característico de sua es- crita, faz menção à união entre Satã e a Feiticeira, apresentando a voz de Belzebu, a quem a mulher evocou na poesia hortiana:

Desde teu nascimento foste minha, pela malícia que trazias, por teu diabólico encanto. Fui teu amante, teu marido, pois o outro te fechou a porta. Eu não faço isso, recebo-te em meus domínios, em meus livres campos, em minhas florestas. . .

Não é verdade que há muito tempo estavas à minha disposição? Não foste invadida, possuída, dominada por minha chama? Mudei, transformei teu sangue. Não há uma só veia de teu corpo em que eu não circule. [...] sejamos um para sempre!12

11Maria Teresa Horta, Poesia Reunida Lisboa, Dom Quixote, 2009, p. 833.

12 Jules Michelet, A Feiticeira, trad. Ronaldo Werneck, São Paulo, Círculo do Livro, 1974, p. 72.

A união é consumada e Satã passa a fazer parte da sociedade como se fosse real e como se detivesse um poder devasso e lascivo sobre as mulheres, que sofriam cada vez mais acusações. A única “salvação” para elas era a igreja, o exorcismo através das mãos santas dos religiosos, em nome de Jesus Cristo e dos Evangelhos, como cantam os versos de Teresa Horta:

Exorcismo

Pela face de Jesus, hóstia de corpo bento

Evangelhos dos apóstolos, te exorciza a minha mão Peçonhenta e alcatruz, bruxa e heresia

Sobre ti teço e lanço sentença de maldição Vade retro bicho imundo! Rameloso, anticristo Maldita sejas mulher, dona da perdição Animal do pecado, sopro do imprevisto [...]13

Não somente as mulheres desde o princípio consideradas hereges, “anticristo” e “donas na perdição”, “animais do pecado” e “sopro do im- previsto” ou as mulheres independentes e livres sexualmente, eram violen- tadas. Muitas religiosas enclausuradas foram vítimas de violência moral e sexual a partir do momento em que, supostamente, Satã teria invadido os conventos. Em tal estado de êxtase demoníaco, somente os padres, seus confessores, podiam salvá-las, tornando-se assim seus donos. Ressalta- se o caso da frágil Catherine Cadière, menina de dezessete anos, e seu confessor, o poderoso e influente padre Girard, em 1730, na sombria e pequena cidade de Tonlon, na França, especialmente pontuado por Mi- chelet (1974). Cadière, inocente e extremamente religiosa, aceita Girard como seu único diretor espiritual, como menciona Michelet, deixando para trás sua família ao se entregar ao claustro. Girard passou a ser seu dono, violando-a moral e sexualmente, em nome de Deus, alegando que ela pas- sava por possessões e que somente ele, como seu confessor, poderia lhe ajudar. Segundo Michelet:

A pobre moça por mais doente que estivesse, nem por isso fazia subir menos à cabeça de Girard uma embriaguez incontrolável. Certa vez, despertando, ela se encontrou numa posição ridiculamente inde- cente; outra vez, surpreendeu-o a acariciá-la. Enrubesceu, gemeu, queixou-se. Mas ele lhe disse, impudente: “Eu sou vosso mestre, vosso Deus... Vós deveis suportar tudo em nome da obediência”. No Natal, na grande festa, ele perdeu as últimas reservas. Ao acor- dar, ela exclamou: “Meu Deus, como sofri! ”

“Eu o creio, pobre criança”, disse ele, com um tom compadecido.14 Após muitas atrocidades contra Chaterine Cadière, incluindo ferimen- tos pelo corpo, especialmente nos seios, gravidez forçada, aborto e quase morte, instaurou-se um processo para investigar se havia a possibilidade de Girard também sofrer do mal das possessões demoníacas, sendo, por- tanto, ele um feiticeiro, o que o condenaria. Em decorrência de suas influências políticas, Girard foi absolvido e Cadière acusada de enfeitiçá- lo. Como na França do século XVIII, dita mais humanizada, condenar as mulheres à fogueira já não era mais bem visto, Catherine Cadière foi presa e esquecida em um calabouço, chamado de in-pace, até a morte.

Maria Teresa Horta, voz poética do século XXI, evoca a voz de Cathe- rine Cadière, assim como a voz de milhões de mulheres vítimas da Inqui- sição, e responde, enfrentando o inquisidor:

Refrão Feminino Combato-te inquisidor de crueldade

mastim

Faço a cruz e teço a luz

nada podes contra mim Te exorcizo lobo negro

em noites de lua alta

14 Jules Michelet, A Feiticeira, trad. Ronaldo Werneck, São Paulo, Círculo do Livro, 1974, p. 246.

Nefando encapuzado

Desafio os teus poderes alcandorados

no medo

Guardo todo o meu segredo Eu danço nua no vento15

A voz poética hortiana se mostra forte no enfrentamento e constrói a imagem da mulher que também tem suas crenças, “faz a cruz”, mas, ao contrário da maldade que emana das mãos do inquisidor, cruel e tirano, perverso escondido sob a sombra de seu capuz e de seus poderes elevados baseados no medo, do gesto dessa mulher emana a luz, a paz, a justiça. Tal poder que ilumina é decorrente, como sugere a terceira estrofe do poema, da relação da feiticeira, da mulher, com a lua, que, segundo Chevalier e Gheerbrant (1991), é o princípio feminino em relação ao sol e símbolo dos ritmos biológicos:

Astro que cresce, decresce e desaparece, cuja vida depende da lei universal do vir-a-ser, do nascimento, e da morte..., mas sua morte nunca é definitiva.... Este eterno retorno às suas formas iniciais, esta periodicidade sem fim, faz com que a lua seja por excelência o astro dos ritmos da vida. [...] A Lua é um símbolo do tempo vivo, do qual ela é a medida, por suas fases sucessivas e regulares. [...] é instrumento de medida universal. O mesmo simbolismo liga entre si a Lua, as Águas, as Chuvas, a fecundidade das mulheres [...]16

Tal relação, revestida de mistérios, de segredos, entre a Lua e o ser feminino, sugere uma eterna regeneração, um eterno renascer. Horta versa, em sua poesia, que as mulheres de hoje são as mesmas feiticeiras renascidas. E que libertas, voam, “dançando nua (s) no vento”. A mesma relação de ciclo, de resistência e de (re) existência que se estabelece entre a mulher e a Lua está presente também no poema “Canto da ressurreição”, através do sangue feminino, do mênstruo.

15Maria Teresa Horta, Poesia Reunida, Lisboa, Dom Quixote, 2009, p. 838.

Canto da Ressurreição Vinda de onde sou eu torno sempre Parida De minha própria afeição Derrubo o escuro Renascida

Sou fénix do meu mênstruo Orquídea da minha vida Sou mulher Sou feiticeira Sou bruxa No meu abraço Desobedeço e invento Insubordino o que faço17

A mulher, bruxa e feiticeira, símbolo da insubordinação, da transgres- são, coloca-se: “Sou fénix do meu mênstruo”. Renascida a partir dela mesma e de sua própria força, a feiticeira é retirada de seu lugar de es- quecimento e eternizada, através da poesia hortiana, em cada uma das mulheres.