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Universidade Federal do Rio Grande (FURG)

Ventos suaves sobram ritmados, uma música se expande em meio ao desolado de árvores da antiga floresta, onde, esquiva, uma figura humana se esconde, pensando ser apenas sombra. Resto de lembrança ou invenção de si ou de alguém. Pouco a pouco...

Contar uma boa história é uma arte. Fazê-lo, tanto de modo oral como de modo escrito, exige engenho, seja para convencer, para pôr sob sus- peita, ou, simplesmente, para encantar. As histórias, sejam elas reais ou ficcionais, tornam ávido o nosso mundo imaginário, e, não raro, os efeitos em nós produzidos por elas encontram modos de repercutirem e de se re- configurarem em nossa vida real. Histórias, personagens, tudo é feito de atenção, observação e detalhes. Compor uma personagem requer esmero, visto que “a personagem [...] representa a possibilidade de adesão afe- tiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transferência, etc. A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos”1. As personagens Joana de Perto do Coração Selvagem, romance

de Clarice Lispector; D. Glória de O retorno, romance de Dulce Maria Cardoso; e a protagonista sem nome do romance A manta do soldado, de Lídia Jorge, vivenciam situações que irão compor a sua “identidade”: a

perda dos pais, a descoberta de um segredo de família e a mudança para outro país. Assim, a proposta deste trabalho é examinar – considerando alguns estudos acerca da composição da personagem de ficção – os ele- mentos presentes na tessitura ficcional que constroem e revelam ao leitor essas personagens. Observando as possíveis evocações e revelações que elas permitem vislumbrar sobre a formação de uma identidade feminina e as relações existentes entre o comportamento de uma sociedade e a rede de influência que se estabelece no conjunto literário.

Mas o que pode uma boa história? O que e quanto pode movimentar uma personagem? Todo enredo traz uma, duas ou várias personagens. Elas são o corpo dinâmico que torna possível a projeção, a realização e a incidência dos movimentos que proporcionam a ação dramática, logo a ação narrativa. Mas o que é uma personagem? Personagem é uma (re)configuração de traços fundamentais de pessoa ou pessoas, traços se- lecionados pelo escritor segundo seus próprios critérios. Mas quais seriam esses critérios? De que tecido será feito o caráter e o pensamento de uma personagem?

Em geral, os textos apresenta-nos tais aspectos mediante os quais se constitui o objeto. Contudo, a preparação especial de seleciona- dos aspectos esquemáticos é de importância fundamental na obra ficcional – particularmente quando de certo nível estético – já que desta forma é solicitada a imaginação concretizadora do apreciador. Tais aspectos esquemáticos, ligados à seleção cuidadosa e precisa da palavra certa com suas conotações peculiares, podem referir-se à aparência física ou a processos psíquicos de um objeto ou persona- gem (ou de ambientes ou pessoas históricas, etc.), podem salientar momentos visuais, táteis, auditivos, etc.2

É do conjunto articulado da língua e da seleção feita pelo autor que se forma o mundo imaginário da obra, o qual, quando elaborado com pre- cisão, apresenta um conjunto de informações específicas e selecionadas que, combinadas, formam a “personalidade” da personagem (e não só, mas também todo o contexto da obra). Segundo Anatol Rosenfeld, essa per- sonalidade, quando constituída com a palavra mais “justa”, precisa, causa 2 Antonio Candido et al., A personagem de ficção, São Paulo, Perspectiva, 2011, p. 14.

protagonista de Lídia Jorge 185 a ilusão de algo completo, visto que provoca no leitor o preenchimento coerente às lacunas existentes. As orações que estão, pouco a pouco, constituindo e produzindo a personagem, parecem, ao contrário, apenas “revelar” pormenores de um ser autônomo, graças à associação do escrito ao não escrito. “À base das orações, o leitor atribui a Mário uma vida anterior à sua criação pelas orações; coloca a máquina sobre uma mesa (não mencionada) e o rapaz sobre uma cadeira; o conjunto num quarto, este numa casa, esta numa cidade – embora nada disso tenha sido men- cionado.”3

Rosenfeld prossegue comentando sobre a maneira como as estruturas da língua constituem “este mundo fictício ou mimético, que frequentemente reflete momentos selecionados e transfigurados da realidade empírica ex- terior à obra, (e que) torna-se, portanto, representativo para algo além dele, principalmente além da realidade empírica, mas imanente à obra”4.

Para o autor, embora todo o conjunto do texto vise “dar aparência real à situação imaginária” é sobretudo a “personagem que com maior nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza”5 e isso se deve, em parte, a uma espécie de identificação

que ocorre com a personagem, levando o leitor, sutilmente, a viver a experiência dela. “Em todas as artes literárias e nas que exprimem, narram ou representam um estado ou estória, a personagem realmente constitui a ficção.”6

Em A personagem do romance, Antonio Candido também destaca a importância fundamental desse elemento estrutural do romance: a perso- nagem. Segundo Candido, a verdade da ficção depende da organização coerente entre o enredo, a personagem e as “ideias” que formam a estru- tura interna da narrativa, “no fim de contas a construção estrutural é a maior responsável pela força e eficácia de um romance”7.

A invenção é o ponto principal da arte. Mas de onde parte a invenção de uma personagem? O material para a criação pode ter origem em várias

3Ibidem, p. 17.

4 Antonio Candido et al., A personagem de ficção, São Paulo, Perspectiva, 2011, p. 19.

5Ibidem, p. 21. 6Ibidem, p. 31. 7Ibidem, p. 55.

fontes, desde a transposição fiel de modelos (que nunca será absoluta – visto que a nossa percepção das pessoas é sempre fragmentária) até uma invenção totalmente imaginária,

o que se dá é um trabalho criador, em que a memória, a observação e a imaginação se combinam em graus variáveis, sob a égide das concepções intelectuais e morais. O próprio autor seria incapaz de determinar a proporção exata de cada elemento, pois esse trabalho se passa em boa parte nas esferas do inconsciente e aflora à cons- ciência sob formas que podem iludir. O que é possível dizer, para finalizar, é que a natureza da personagem depende em parte da concepção que preside no romance e das intenções do romancista.8 Candido ressalta em seu texto um conjunto de tipos de personagens como, por exemplo: personagens de costumes, personagens de natureza, ou – considerando os estudos de Forster – personagens planas e perso-

nagens esféricas. Seja qual for o “tipo” de personagem existente em um

texto (aliás, existem outras além das mencionadas por Candido), o autor destaca a importância da verosimilhança, pois será essa a responsável pela adesão do leitor ao texto:

Quando, lendo um romance, dizemos que um fato, um ato, um pensa- mento, são inverosímeis, em geral queremos dizer que na vida seria impossível ocorrer coisa semelhante. [...] O que julgamos inverosí- mil, segundo padrões da vida corrente, é na verdade, incoerente em face da estrutura do livro. [...] Assim a verosimilhança propriamente dita [...] acaba dependendo da organização estética do material, que apenas graças a ela se torna plenamente verosímil.9

Ser fictício, a personagem é, de modo geral, inventada, mas “esta invenção mantém vínculos necessários com uma realidade matriz, seja a realidade individual do romancista, seja a do mundo que o cerca”10, e,

quando bem elaborada, parece aos leitores um ser “real”, embora não tenhamos sobre ela mais que alguns dados que combinados e/ou repe- tidos, evocados nos mais variados contextos, nos permitem formar uma

8Ibidem, p. 74. 9Ibidem, p. 76. 10Ibidem, p. 69.

protagonista de Lídia Jorge 187 ideia completa, suficiente e convincente sobre este “ser”, pois o número de elementos que o caracterizam é limitado (e se temos uma variedade de concretizações, isso se deve à variedade dos leitores chamados a preen- cher as indeterminações da obra no processo de concretização). Isso não ocorre na vida real em relação às pessoas, pois a nossa visão da realidade e, em particular, das pessoas é extremamente fragmentária e limitada. Di- ferente do processo que pode ocorrer a uma personagem – no qual temos acesso aos seus pensamentos, memórias e sentimentos mais profundos, por exemplo –, na vida, a interpretação que compomos de uma pessoa pode ser sempre diferente, se considerarmos a infinitude de aspectos que formam as pessoas, os seres humanos reais. Essa constatação nos leva ao que Candido aponta como uma das funções capitais da ficção “que é a de nos dar um conhecimento mais completo, mais coerente do que o conhe- cimento decepcionante e fragmentário que temos dos seres”11. Também

Rosenfeld observa que a arte exerce, embora seja domínio de expressiva liberdade, uma função social:

A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, através de personagens variadas, a pleni- tude da sua condição, e em que se torna transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria situação.12

Podemos, pois, dizer que a personagem estabelece vínculos inegáveis com a realidade social e que possui em sua essência, dado as conside- rações mencionadas, uma possibilidade, talvez possamos mesmo dizer um poder de transformação. A matéria-prima da ficção são, e sempre foram, as emoções, as convicções, os valores humanos; e o que constitui a sua matéria é igualmente o material sobre o qual, através do leitor, ela possui a possibilidade de interferir.

Embora no contexto atual todos os sujeitos possam ser vistos, em certa medida, como seres susceptíveis a uma realidade que coloca a problemá-

11Ibidem, p. 64. 12Ibidem, p. 48.

tica de uma identidade em questão, dadas as mais diversas condições culturais e sociais, em relação às mulheres as implicações parecem am- pliadas, visto um contexto histórico que há pouco lhes negava/restringia o acesso, por exemplo, a questões materiais e aos espaços públicos, entre outros, como nos faz lembrar Virginia Woolf em seu ensaio Um teto todo

seu. As mulheres foram – e, muitas vezes, ainda são – silenciadas, restrin-

gidas e negligenciadas na dignidade que cabe a uma figura humana. O que nos leva a refletir sobre a forma como as mulheres são posicionadas e representadas no contexto atual, visto que, mesmo após grandes mu- danças sociais (a conquista de novos espaços, do direito à propriedade e ao voto), elas continuam a enfrentar um mundo hostil onde a conquista do espaço profissional, de uma situação econômica compatível e a adminis- tração dos afetos, dos amores, continuam a constituir desafios. Que, não raro, esbarram em preconceito. Infelizmente as mulheres, por vezes, são vistas ainda como as frágeis damas de vestidos não aptas, por exemplo, a administrar grandes empresas ou a pilotar helicópteros – embora algumas o façam. Quem lê Um teto todo seu pode se surpreender ao perceber como aquele texto, escrito há quase cem anos, aborda questões que ainda hoje não foram superadas. Discutir as questões referentes à representação feminina não se trata de discutir sua fragilidade ou sua propensão para a moda, mas de buscar desfazer um estereótipo de mulher que pode ser pernicioso e que pode dificultar a possibilidade de viver plenamente a sua condição de ser humano.

Quem somos? Onde estamos? As perguntas e respostas a essas questões, por certo, perpassam-se... Ser complexo, o ser humano constrói sua identidade na soma de muitos rios: carga genética e demais aspectos biológicos, aspectos psíquicos, relações pessoais e com o meio, a cultura que o cerca; e tudo constrói, tudo reflete: o que e quem ele é, as escolhas que possui e as que faz.

As ruas pelas quais caminhamos, os cheiros que sentimos, as crenças que nos cercam, nossos desejos e necessidades, o passado e o presente (bem como as esperanças de um futuro) desenham juntos a “personagem” na qual nos configuramos e o potencial de energia que temos e que se desdobrará, sempre em conjunto com os elementos já mencionados, num futuro pessoal e social.

protagonista de Lídia Jorge 189 para uma imagem e comportamento do indivíduo. Sem dúvida, a arte é um desses sopros, desses ventos, que põem diante de seus olhos um passado e mesmo um estado de coisas atuais e perspectivas futuras, que devem ser vistas e exploradas, na medida das reflexões e sensações que despertam. É sob a roupagem do lúdico (que não deixa de ser provocativa e desafiadora) que, muitas vezes, descobrimos o exterior e um interior ainda oculto; é no domínio da arte, e em especial da literatura, que se podem encontrar os fios que, junto a outros, engendram a tessitura do que se pode chamar de alma, ou espírito humano. Não se pretende com isso restringir a arte a um aspecto de formação social; sem dúvida, as esferas sobre as quais se desenrola ultrapassam esse ponto de vista. Pretende- se, no entanto, afirmar que ela se liga, mesmo que inconscientemente, a toda massa formadora do indivíduo – pela presença ou ausência que exerça no meio em que ele vive. Pois, conforme aponta Eduard Said, por exemplo, há conexão entre “a longa e sórdida crueldade de práticas como a escravidão, a opressão racial e colonialista, o domínio imperial e, [...] a poesia, a ficção e a filosofia da sociedade que adota tais práticas”13. Logo,

pode-se dizer que se soma à identidade do ser, literalmente, o conjunto de textos que o cercam. Aquele aos quais ele tem acesso. Ele é, dessa forma, feito um pouco, também, de tinta e de papel. Mas que tinta e que papel?

Bem, de que palavras, sonhos e “realidades” são feitas as persona- gens Joana de Perto do Coração Selvagem, romance de Clarice Lispector; D. Glória de O retorno, romance de Dulce Maria Cardoso; e a protago- nista sem nome do romance A manta do soldado, de Lídia Jorge? Nes- sas obras essas personagens vivenciam situações que irão compor a sua “identidade”: a perda dos pais, a descoberta de um segredo de família, a mudança para outro país e, sempre, um desejo pulsante pela vida.

O texto de Clarice Lispector é uma expressão pulsante tanto de situa- ções existenciais como sociais, em que figuram personagens femininas que transitam num espaço de busca, de descoberta, mas também de recusa. O romance Perto do coração selvagem (1944) foi a primeira obra publicada da autora que, além de romances, escreveu contos, ensaios e artigos para revistas e jornais. Ao longo da trama acompanhamos a trajetória de Jo- 13Edward Said, Cultura e imperialismo, São Paulo, Companhia das letras, 1999, p. 14.

ana, uma menina observadora e imaginativa que gosta “de se colocar no papel principal”14 durante as brincadeiras; séria e calada são adjetivos

que, também, a descrevem. A mãe de Joana morre cedo, e, criada pelo pai que se mostra afetuoso, a menina vive uma infância aparentemente tran- quila, tem medo do escuro como qualquer criança, mas sua curiosidade sobre questões como: “O que é que se consegue quando se fica feliz?” e “Ser feliz é para conseguir o quê?” ou ainda a afirmação “Não gosto de me divertir”15 demonstram que Joana é atenta, questionadora e dona de

uma dura sinceridade. Com a morte do pai ela é levada para morar com a tia, situação de terrível desapontamento e sofrimento para a menina que, depois de algum tempo, descobre que não é bem-vinda na casa da tia.

A tia de Joana é descrita como uma mulher de seios fartos, perfume adocicado, casada e que tem entre as suas principais preocupações a casa e a filha Amanda, uma jovem já casada, de quem ela se orgulha; Joana, no entanto, é vista pela tia como uma ameaça à tranquilidade de sua casa. Para ela, aquela criança, que roubava e era capaz de confessar o erro e não sentir culpa, porque acreditava que “Não faz mal nenhum”16

pois sua ação não era acompanhada de medo, era assustadora. Assim, a pequena dizendo “Mas se eu estou dizendo que posso tudo, que...”17

aterrorizava a mulher que não a compreendia e considerava-a “Como um pequeno demônio”18de quem ela não poderia mais cuidar. A tia de Joana

é uma personagem constituída basicamente de alguns traços físicos e de um comportamento social e moral bastante convencional. Para a tia, Joana é a figura que põe em questão suas crenças, Joana representa um perigo ao mundo em que ela vive e acredita.

As indagações de Joana conduzem a personagem a uma amizade com um de seus professores, e em uma visita a casa desse professor ela en- contra a esposa dele. A personagem da esposa do professor é construída a partir de uma aparência física e que parece, em sua delicadeza de gestos, dissimular seus verdadeiros pensamentos. Joana compara a sua 14Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 13.

15Ibidem, pp. 30-31. 16Ibidem, p. 52. 17Ibidem, p. 52. 18Ibidem, p. 52.

protagonista de Lídia Jorge 191 aparência, a sua magreza, o seu corpo ainda em desenvolvimento e a sua cabeleira grossa e desajeitada com as belas formas da mulher do profes- sor, julgando-se feia. A esposa do professor é uma personagem feminina, a seu modo, que, como a tia de Joana, também representa um modelo estereotipado de mulher.

Joana vai para um internato e nesse espaço percebe que seu corpo modifica-se e cresce. Ela torna-se uma mulher. Sabemos que trabalha pois relata um episódio do trabalho para Otávio, personagem com quem a protagonista casa-se. E, através do marido, surge Lídia na vida da protagonista.

Lídia era noiva de Otávio. A personagem Lídia é mais uma visão da mulher como a figura destinada ao casamento, à maternidade e às lidas do lar. Quando se torna amante de Otávio, e portanto uma transgressora de um modelo supostamente ideal, procede, ainda, em defesa do projeto de ser esposa e mãe. Grávida de Otávio, Lídia confronta Joana, questiona-a sobre o casamento e Joana precipita-se em reflexões sobre o amor e a maternidade.

Ao longo do romance as figuras femininas que surgem, em geral, re- presentam um modelo feminino estereotipado que evidencia ainda mais o caráter diferente de Joana. Independente, mas também frágil, a protago- nista se movimenta ao longo da trama na busca da sua identidade, foge a modelos, questiona-se constantemente e busca desvendar o seu interior, as suas emoções, medos e desejos mais profundos. A personagem é cons- truída principalmente por traços que revelam o seu mundo interior e a sua capacidade de desdobrar-se em algo que nunca é definitivo, o desejo de encontrar sua própria voz, a possibilidade de poder saber e poder ser o que é em sua essência:

O que nela se elevava não era a coragem, ela era substância apenas, menos que humana, como poderia ser herói e desejar vencer as coisas? Não era mulher, ela existia e o que havia dentro dela eram movimentos erguendo-a sempre em transição. [...] Tropas de quentes pensamentos brotavam e alastravam-se pelo seu corpo assustado e o que neles valia é que encobriam um impulso vital, o que neles valia é que no instante mesmo de seu nascimento havia a substância cega e verdadeira criando-se, erguendo-se salientando como uma bolha

de ar a superfície da água, quase rompendo-a. . .19

Ela não cabe em estereótipos e mostra-se indiferente a eles.

Na obra A manta do soldado (1998), a menina inominada de Lídia Jorge é uma personagem construída principalmente de traços que se re- velam ao leitor através da vida interior da protagonista. São seus pensa- mentos, suas lembranças e a tentativa incessante de reviver na lembrança uma noite de chuva em que Walter, seu pai, visita seu quarto, que pouco a pouco apresentam a filha de Maria Ema. São aspectos relevantes para a construção da identidade desta personagem os objetos que a cercam, o revólver do pai – que ela guarda sob os forros que formam a cama em que ela dorme e que possuía “o poder de extermínio do escuro e do mal”20.

Assim, a arma, os desenhos de pássaros feitos por Walter e velhas foto- grafias aliadas à sua imaginação, pois sobre Walter “ela não sabia o que tinham dito, porque sempre havia transformado o que escutava”21, ajudam

a menina a desvendar o mundo em que ela vive.

Filha de Maria Ema – personagem construída principalmente através de traços exteriores como a aparência física e as roupas que usa, Maria Ema é o estereótipo da mulher que cumpre com as obrigações da vida so- cial e doméstica, mesmo quando isso fere suas paixões –, que é esposa de Custódio, a protagonista busca encontrar-se em meio de uma atmosfera,