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6.2 A análise de acordo com as categorias analíticas

6.2.6 O foco no desvio do foco

O foco das reportagens se volta realmente sobre o escândalo, sobre o espetáculo, sobre as questões pessoais. De fato, parece que esse foco é determinado por fatores econômicos, afinal as reportagens são produtos e sua função não é somente informar, mas também divertir para vender, e esse divertir inclui também o desvio da consciência. O “divertir” desvia o foco da consciência das questões de valor ético. Ao ler como espetáculo repetidas vezes os escândalos de corrupção, os leitores vão se acostumando – às vezes rindo – com algumas expressões cristalizadas que ecoam na sociedade e que têm alto poder de formação de opinião. Temos no quadro a seguir algumas dessas expressões empregadas frequentemente pelas reportagens dos escândalos:

Quadro 12 - Expressões cristalizadas de tom cômico que naturalizam a corrupção

Propina, taxa de sucesso, azeitar a máquina pública, esquema de lobby, aparelhamento do Estado

Fonte: Produção da própria autora

As narrativas de escândalos de corrupção se apresentam como verdadeiras novelas, que, ao mesmo tempo em que aproximam o leitor comum das autoridades públicas, distanciam o leitor/agente social das instituições e, portanto, de um processo emancipatório. Essas reportagens podem induzir o leitor/agente social a pensar que não tem nenhuma relação com o que está sendo apresentado e representado. Segundo Thompson, a naturalização é uma

estratégia de construção simbólica que permite o modo de reprodução da ideologia chamado de reificação. De acordo com Thompson, a naturalização ocorre quando uma criação social e histórica é tratada como um evento natural ou como um acontecimento inevitável de características naturais. Apresento, a seguir um quadro com asserções contidas nas reportagens, que contém estratégias simbólicas que favorecem a reificação e a dissimulação. Quadro 13 - Estratégias de construção simbólica que servem à reificação e à dissimulação

Veja (a) Filho de Erenice Guerra comanda esquema de lobby no Planalto Folha de S. Paulo (b) Filho de braço direito de Dilma fez lobby, diz revista.

Folha de S. Paulo (c) Contrato feito sem licitação tem privilégios Folha de S. Paulo (d) Ministra se envolveu em escândalos Ministra facilitou esquema, que envolveu pagamento de propina. Todos os encontros, afirma a revista, aconteceram fora da Casa Civil, sempre com a participação do filho de Erenice.

Ele confirmou à Folha que a empresa dos filhos de Erenice atuou para agilizar na Anac a renovação da concessão da MTA.

Blindada pelo

Governo, nunca teve que dar explicações ao Congresso.

Fonte: Produção da própria autora

No trecho da reportagem da revista Veja, a metáfora da corrupção feita com os itens lexicais “facilitou esquema” e “pagamento de propina” banalizam a questão do desvio de verbas públicas, com uma estratégia realizada com uma deflexão para o lado humorístico, o que acaba enfraquecendo a gravidade do que está sendo representado; também podemos ver que, por meio da sinédoque, as reportagens identificam o servidor público com um agente que “facilita esquema”, que “agiliza renovação de concessão”, que é “blindada”, porque os atores sociais que estão ligados a esses processos verbais (facilitar, agilizar, blindar) são atores públicos e é razoável supor que eles representam os funcionários públicos de modo geral. Esse tropo, sinédoque, serve ao modo de operação da ideologia, chamado de dissimulação. De acordo com Thompson, “Relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas por meio da ocultação, negação ou obscurecimento, ou sendo representadas de uma maneira que escamoteia ou se desvia a atenção de relações ou processos existentes” (THOMPSON, 1990, p. 62, tradução nossa.)

No trecho da Folha de S.Paulo (b), a circunstância “sempre com a participação do filho de Erenice” traz um advérbio totalizante (sempre), que indica uma ação continuada, repetida e sem origem; traz uma nominalização (participação), que atenua a responsabilidade do agente social e traz um agente social classificado e não nomeado (filho de Erenice). Essa classificação via grau de parentesco pode levar a uma “espetacularização” da reportagem.

No trecho da Folha de S.Paulo (c), o processo material “agilizar”, embora eivado semanticamente de aspectos negativos, deixa encoberto e vago o ato do agente social. No trecho da Folha de S.Paulo (d), a expressão “blindada pelo Governo” é uma passivização com uma metáfora de guerra, que é vaga e serve para camuflar (já que a metáfora é de guerra) os atos dos agentes públicos. O processo material blindar carrega uma carga semântica bélica. Lakoff diz que metáforas de guerra são muito comuns em nosso sistema de pensamento. Segundo Lakoff, “A essência da metáfora é entender e experienciar um tipo de coisa em termos de outra” (Lakoff e Johnson, 2003, p.5, tradução nossa). Penso que o sentido do processo “experienciar” é muito importante. O verbo experienciar é a realização de um processo mental e Lakoff mostra, com isso, que uma construção simbólica realizada com a metáfora provoca uma experiência mental no leitor, o que significa que nenhum leitor ou ouvinte é inatingível por uma metáfora. E algumas metáforas estão muito arraigadas em nossa cultura a ponto de não ser mais possível reconhecê-las como metáforas.

Podemos agora compor um quadro ilustrativo dessas estratégias de construção simbólica:

Quadro 14 - Escolhas de recursos semióticos com o favorecimento do trânsito das ideologias

PROCESSOS VERBAIS CONSTRUÇÕES SIMBÓLICAS

EFEITO DE SENTIDO

IDEOLÓGICO

Comanda esquema Metáfora de corrupção Banalização pela deflexão humorística.

Construção negativa, por sinédoque, da imagem do servidor público

Facilitou esquema Metáfora da corrupção Reificação pelo sentido vago do processo verbal.

Construção negativa da imagem do servidor público, por sinédoque. (tomar a parte pelo todo)

Envolveu pagamento de Metáfora da corrupção com Reificação pelo significado vago do processo material,

propina nominalização. no qual os agentes responsáveis pelo pagamento são apagados.

Fez lobby Metáfora da corrupção Construção ideológica com avaliação negativa da palavra lobby.

Atuou para agilizar Metáfora da corrupção Pelo sentido vago dos processos (atuou, agilizar), existe apenas uma insinuação do que foi feito, legitimando a conduta não ética de agentes públicos.

Se envolveu em escândalos Metáfora da corrupção Envolver é um processo cujo papel do agente está no limite do papel ativo e passivo, entre ser ator ou ‘aquele que se comporta’ no processo. O processo está entre um processo material e um comportamental.

Blindada Metáfora bélica para referenciar conduta não ética

Com essa passivização tem- se o apagamento parcial dos atores que blindaram, devido à presença do agente “pelo Governo”. Governo é uma forma metonímica que apaga o agente institucional responsável.

Fonte: Produção da própria autora

Podemos também pensar no fato de que, em uma prática de apropriação indevida da coisa pública, por meio de licitações não éticas, existem dois lados, que são os agentes públicos e os agentes privados (empresários). Nesse caso, observa-se em todas as reportagens uma tendência a associar sempre o crime de corrupção a um lado só, o lado público, de certa forma “poupando” os empresários. Israel Guerra é representado por uma classificação (filho de Erenice); com nomeações como Israel e Israel Guerra nas quatro reportagens. As referências aos laços de parentesco é um recurso semiótico, porque podemos ver que o agente ou é representado pelo nome e sobrenome, o que o liga ao nome da mãe, ou é classificado como filho, na maioria das reportagens.

O tipo de representação pode indicar os vários tipos de discursos que estão por trás do conjunto de afirmações no texto. Podemos perceber nessas estratégias de construções simbólicas das reportagens o discurso que quer representar o brasileiro como aquele que

“gosta de levar vantagem em tudo”; ou o discurso do “todo servidor público é corrupto e ineficiente”; ou o discurso que faz uma identificação do Estado brasileiro com “uma máquina pública emperrada”, que não serve para nada a não ser para ser palco de licitações fraudulentas.