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O segundo momento da escrita de Derrida que gostaríamos de examinar diz respeito ao artigo em que o autor verifica a estrutura no discurso das ciências humanas,90 assinalando que a idéia de centro tem como função não apenas orientar e equilibrar, organizar a estrutura, mas também levar o princípio de organização da estrutura a limitar o que ele denomina de “jogo da estrutura”. O centro é o ponto em que a substituição dos conteúdos, dos elementos, já não é possível, sendo proibida a permuta ou sua transformação.

Sempre se pensou, de acordo com Derrida, que o centro, por definição único, constituía, numa estrutura, aquilo que, comandando a estrutura, escapasse à estruturalidade.

87 O autor refere-se às Cartas de Freud a Fliess (1892-1899) e Além do Princípio do Prazer (1920). DERRIDA.

Freud e a Cena da Escritura (2002), p.219.

88 DERRIDA. Freud e a Cena da Escritura (2002), p.219-220. 89 DERRIDA. Freud e a Cena da Escritura (2002), p.223.

90 DERRIDA. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas (2002), p.229-249. Devemos à

Profª Dra. Evelina Hoisel a menção a este artigo de Derrida, durante o Exame de Qualificação realizado em 16 de setembro de 2005, em apoio ao nosso argumento.

Entre aqueles cuja produção se manteve próxima da formulação mais radical da noção de descentramento como pensamento da estruturalidade da estrutura, Derrida inclui Nietzsche, Freud e Heidegger, com seus discursos destruidores.

Eis por que (sic), para um pensamento clássico da estrutura, o centro pode ser dito, paradoxalmente, na estrutura e fora da estrutura. Está no centro da totalidade e, contudo, dado que o centro não lhe pertence, a totalidade tem o

seu centro noutro lugar. 91

Derrida lembra Lévi-Strauss que, em suas oposições natureza/cultura, traz a proibição do incesto como exemplo que quebra as fronteiras entre uma e outra, concluindo que a linguagem carrega em si a necessidade da sua própria crítica. 92 Retoma ainda a definição de

bricoleur como sendo aquele que utiliza os instrumentos que encontra à disposição, mas que

não foram concebidos para a operação, e em relação aos quais não hesitamos em trocar cada vez que julgamos necessário. O bricoleur se opõe à figura do engenheiro, que deveria construir a totalidade da sua linguagem, sintaxe e léxico.

Considera de mais sedutor na pesquisa crítica de Lévi-Strauss sobre os mitos — autor que propõe uma ciência estrutural dos mitos — o abandono declarado de toda referência a um centro, a um sujeito, a uma referência privilegiada, a uma origem ou a uma arquia absoluta. Com relação à Abertura de Le Cru et le Cuit, de Lévi-Strauss, Derrida assinala algumas passagens, entre as quais recortamos a seguinte.

Se novos textos vierem enriquecer o discurso mítico, será a ocasião de controlar ou de modificar a maneira como certas leis gramaticais foram formuladas, de renunciar a algumas delas, e de descobrir outras novas. Mas em nenhum caso nos poderiam exigir um discurso mítico total. Pois acabamos de ver que esta exigência não tem sentido. 93

A esse respeito, Derrida conclui: “A totalização é portanto definida ora como inútil, ora como impossível”. 94 O autor estabelece duas formas de pensar o limite da totalização. De

91 DERRIDA. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas (2002), p.230. 92 DERRIDA. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas (2002), p.237.

93 LÉVI-STRAUSS. Le Cru et le Cuit apud DERRIDA. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências

humanas (2002), p.244.

um lado, pode-se considerar a totalização impossível no estilo clássico, evocando-se o esforço empírico de um sujeito ou de um discurso finito correndo em vão atrás de uma riqueza infinita que jamais poderá dominar. De outro, pode-se determinar a não-totalização, não mais sob o conceito de finitude como afirmação 95da empiricidade, mas sob o conceito de “jogo”.

Se então a totalização não tem mais sentido, não é porque a infinidade (sic) de um campo não pode ser coberta por um olhar ou um discurso finitos, mas porque a natureza do campo — a saber a linguagem e uma linguagem finita — exclui a totalização: este campo é com efeito o de um jogo, isto é, de substituições infinitas no fechamento de um conjunto finito. 96

Isto é possível, segundo Derrida, porquanto o campo, ao invés de ser inesgotável ou demasiado grande, como na hipótese clássica, apresenta-se em falta, ou seja, falta-lhe um centro que detenha e fundamente o jogo das substituições. Para exprimir essa noção, o autor recorre à palavra “suplementaridade”, que dá conta do movimento do jogo permitido pela falta, pela ausência de centro ou de origem.

Não se pode determinar o centro e esgotar a totalização porque o signo que substitui o centro, que o supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse signo acrescenta-se, vem a mais, como suplemento. O movimento da significação acrescenta alguma coisa, o que faz que sempre haja mais, mas esta adição é flutuante porque vem substituir, suprir uma falta do lado do significado. 97

Lévi-Strauss emprega a palavra suplementar em dois momentos: ao considerar sua noção de “superabundância de significante” em relação aos significados, afirma que o homem, no seu esforço para compreender o mundo, dispõe sempre de um excesso de significação, que distribui sob a forma de uma “ração suplementar”, necessária para que o

95 Mais uma vez, protestamos quanto à tradução de Derrida na edição brasileira. Nesta passagem, a tradutora se

serve do termo “assignação”, não dicionarizado, provavelmente para fazer corresponder a “assignation”, termo do direito financeiro que denota o ato de consignar alguma coisa a alguém, e que julgamos mais pertinente equivaler a “afirmação”. LE PETIT ROBERT 1. Dictionnaire de la langue française (1988), p.115 e DERRIDA. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas (2002), p.244.

96 DERRIDA. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas (2002), p.244. 97 DERRIDA. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas (2002), p.245.

significante disponível e o significado capturado estabeleçam entre si uma relação de complementaridade, própria do pensamento simbólico.98

Num segundo momento, a propósito de fenômenos analisados por Mauss como a mana, 99 Lévi-Strauss verifica que no sistema de símbolos isso corresponde a um valor simbólico zero, ou seja, trata-se de um signo que marca a necessidade de um conteúdo simbólico suplementar. Derrida conclui que a superabundância do significante, o seu caráter suplementar, resulta, portanto, de uma finitude, ou seja, de uma falta que deve ser suprida. Encontramos, no registro da psicanálise com Lacan, esta mesma operação em torno da definição lacaniana de gozo, em particular do gozo da mulher, ao afirmar:

Nem por isso deixa de acontecer que se ela [a mulher] está excluída pela natureza das coisas, é justamente pelo fato de que, por ser não-toda, ela tem, em relação ao que designa de gozo a função fálica, um gozo suplementar. Vocês notarão que eu disse suplementar. Se estivesse (sic) dito

complementar, aonde é que estaríamos! Recairíamos no todo. 100

Para finalizar esta Introdução, interessa-nos voltar a Blanchot, 101 ao assinalar que a

proposta de René Char é de uma linguagem em que nos sintamos inteiramente engajados, que compreendamos mentalmente na medida em que ela nos compreende, fisicamente. Ou seja, uma linguagem capaz de nos enunciar a nós mesmos. Neste sentido, aproxima-o de Heráclito, cujo estilo de aforismo revela a concisão das fórmulas e uma consciência oracular.

De acordo com Sérgio Andrade, 102o aforismo, por sua economia retórica, abriga à excelência a natureza do fragmento, de tal sorte que pode torná-lo muitas vezes mais resistente que qualquer sistema. Afirma que o pensamento fragmentado constitui, por assim dizer, uma forma de fidelidade aos escombros, concepção certamente inspirada em Blanchot,

98 LÉVI-STRAUSS. Introduction à l’oeuvre de Mauss apud DERRIDA. A estrutura, o signo e o jogo no

discurso das ciências humanas (2002), p.245-246.

99 “Mana”, de acordo com o Novo Dicionário da Língua Portuguesa (1975) de Aurélio, p.880, é palavra

melanésia, e refere-se ao conjunto de forças sobrenaturais provenientes dos espíritos e que operam num objeto ou numa pessoa. Quanto a Marcel Mauss, autor de um dos livros considerados centrais das humanidades na segunda metade do século XX, Sociologia e Antropologia, analisou, entre outros objetos da teoria sociológica, a mana, o dom, o potlatch e o hau. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Marcel_Mauss. Acesso em 11.mar.2006. E também http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u42210.shtml. Acesso em 11.mar.2006.

100 LACAN. O Seminário; livro 20, mais, ainda (1985), p.99. 101 BLANCHOT. A Parte do Fogo (1997), p.108.

a quem nomeia de passagem, ao reconhecer que a ruína é nossa cicatriz mais moderna, mas, ao mesmo tempo, a melhor forma de revelar que, se estamos tão marcados, é por algo além da morte.

Para Blanchot, a literatura se edifica sobre ruínas, e a poesia, pela ruptura que produz, pela tensão insustentável que cria, só pode desejar a ruína da linguagem. Daí porque não há linguagem verdadeira sem uma denúncia da linguagem por ela mesma, sem um tormento da não-linguagem, uma obsessão de ausência de linguagem da qual todo homem que fala sabe o sentido do que diz.

A linguagem como totalidade é a linguagem substituindo tudo, posando a ausência de tudo e ao mesmo tempo a ausência da linguagem. É nesse sentido primeiro que a linguagem é morta, presença em nós de uma morte que nenhuma morte particular satisfaz. 103