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A obra erigida por Sigmund Freud é sem dúvida grandiosa e sua importância ultrapassa o interesse dos estudiosos da psicanálise, oferecendo-se, ao longo desses cento e vinte anos de divulgação, aos mais variados leitores e interpretações. Uma investigação sobre a recepção dessa obra por si só justificaria uma tese, escolha em relação à qual, contudo, nos distanciamos. É plausível, no entanto, palmilhar em seus escritos um sem-número de referências a obras de arte e literatura, em especial da dramaturgia, campos onde um homem de seu tempo certamente buscaria interlocuções. Desse modo, mais que uma aproximação com a ciência psicológica, a obra freudiana estabelece diálogo estreito e fecundo com a arte poética, justificando nossa estratégia metodológica de reunir o drama e a psicanálise.

Desse modo, podemos estabelecer, brevemente, algumas correlações freudianas entre a criação poética e algumas das principais manifestações da vida mental, quais sejam: o brincar infantil72; o simbolismo nos sonhos 73; a exaltação poética das parapraxias 74; as fantasias histéricas 75; o método de interpretação de sonhos76, para assinalar alguns dos mais salientes.

O artista, como o neurótico, se afastara de uma realidade insatisfatória para esse mundo da imaginação; mas, diferentemente do neurótico, sabia encontrar o caminho de volta daquela e mais uma vez conseguir um firme apoio na realidade. Suas criações, obras de arte, eram as satisfações imaginárias de desejos inconscientes, da mesma forma que os sonhos; e, como estes, eram da natureza de conciliações, visto que também eram forçados a evitar qualquer conflito aberto com as forças de repressão. Mas diferiam dos produtos a-sociais, narcísicos do sonhar, na medida em que eram calculados para despertar interesse compreensivo em outras pessoas, e eram capazes de evocar e satisfazer aos mesmos impulsos inconscientes repletos de desejos também nelas. Além disso, faziam uso do prazer

72 FREUD. Escritores criativos e devaneios (1908[1907]), v.IX.

73 FREUD. Conferência X Simbolismo nos Sonhos (1916[1915-16]), v.XV. 74 FREUD. Conferência III Parapraxias (1916 [1915]), v.XV.

75 FREUD. Primeira Lição (1910[1909]), v.XI.

perceptual da beleza formal como o que chamei de um ‘abono de incentivo’.77

Esta é uma das muitas passagens em que Freud situa o fazer poético em relação às manifestações do inconsciente, expressando a grande vantagem da arte poética, porquanto suas criações afetam particularmente o outro, despertando nele as mesmas pulsões repletas de desejos que estiveram na origem da criação, ou seja, o artista. Salienta, em quase todos os artigos em que trata da criação poética, o trabalho notável do artista em desvelar o inconsciente, através de suas maravilhosas criações, antecipando-se aos feitos da ciência.

Cremos que todas essas construções freudianas constituem não apenas um recurso à metaforicidade, cara ao sistema simbólico do pensamento do autor, mas também um suporte lógico para descrever o funcionamento da mente, em especial do sistema inconsciente, em tudo equivalente a uma linguagem. E, como veremos a seguir, uma linguagem escrita, e de uma espécie literária.

Dentre os artigos de sua autoria em que avulta esta aproximação entre o inconsciente e a escrita, selecionamos para comentar Uma Nota sobre o ‘Bloco Mágico’78. Nele, o autor avalia as limitações impostas pela memória humana e de alguns procedimentos de registro escrito vigentes à sua época, como os de escrever em papel ou numa lousa. Como vantagem da técnica de anotação numa folha de papel, Freud inclui o ‘traço de memória permanente’, ausente na segunda forma. Entre as desvantagens de ambos, a capacidade receptiva limitada, bem como a necessidade de destruir ou apagar as notas, tão logo percam o interesse.

O interesse de Freud, que não se arrefeceu ou apagou até o fim dos seus dias, era encontrar um aparato com as seguintes características, que vinham sendo desenhadas desde os seus primeiros escritos: um sistema com capacidade receptiva ilimitada para novas percepções e uma forma de registro permanente, com traços de memória não inalteráveis. Este segundo aspecto chama particular atenção, principalmente se levarmos em consideração os esforços humanos para criar sistemas mnemônicos que permitam registrar dados sem que estes se alterem, no curso do tempo.

77 FREUD. Um estudo autobiográfico (1925[1924]), v.XX.

No sistema freudiano, estas duas funções — capacidade receptiva ilimitada e traços mnêmicos permanentes — estiveram sempre em territórios separados, mas inter-relacionados, intimamente, de sorte que o funcionamento de um só pode ser compreendido a partir da existência do outro. Desde cedo, o autor concebeu o sistema Pcpt-Cs, 79 destinado a receber percepções, embora destituído da capacidade de reter quaisquer traços permanentes delas, podendo reagir como uma folha em branco a cada nova percepção. Freud reitera que a consciência — fenômeno que julga inexplicável — “(...) surge no sistema perceptual em lugar dos traços permanentes”. 80 Desse modo, o registro da consciência, que ele equipara a um bruxuleio — uma oscilação frouxa, um tremeluzir, é de fato um epifenômeno, cuja presença ou ausência não altera o fenômeno da percepção.

Do outro lado, ou melhor, detrás deste sistema perceptual, Freud idealizou vários sistemas Mnem.81, nos quais uma única excitação deixa fixada uma variedade de registros diferentes. Alguns desses sistemas registram associações por simultaneidade no tempo, ao passo que outros procedem por relações de similaridade, prevalecendo neles o caráter eminentemente inconsciente das lembranças.

Com o aparecimento de um pequeno brinquedo infantil, Wunderblock — cujo correspondente em inglês é o poético Mystic Writing Pad —, Freud atinge um patamar mais satisfatório de representação plástica do seu aparelho psíquico hipotético. Tratava-se, à época, de uma prancha de escrever que permitia apagar, mantendo a superfície receptiva sempre pronta a novos dados, com a capacidade de reter traços permanentes das notas que se lhe apusessem.

Este brinquedo era feito de uma prancha de resina marrom escura ou de cera, com uma borda de papel e, sobre a prancha, uma folha fina e transparente, composta de duas camadas, sendo a superior feita de celulóide e a inferior de papel encerado fino e transparente. Esta folha ficava presa à prancha na parte superior, ao passo que na parte inferior era solta. Para escrever sobre esta superfície, um estilete à feição de lápis ou de giz era calcado sobre a folha de cobertura, de modo que os sulcos se tornavam visíveis como escrita preta sobre a superfície esbranquiçada do celulóide.

79 Trata-se do sistema perceptual-consciente. FREUD. A Interpretação dos Sonhos (1900-1901), vs. IV e V. 80 FREUD. Uma Nota sobre o ‘Bloco Mágico’ (1925[1924]), v. XIX.

Para apagar o que se escreveu, era bastante levantar a folha de cobertura dupla da prancha, interrompendo-se o contato entre o papel encerado e a prancha. Curiosamente, o engenho permitia que, ao se realizar este movimento, os traços da escrita se revelassem na prancha, de modo indelével: “No entanto, é fácil descobrir que o traço permanente do que foi escrito está retido sobre a própria prancha de cera e, sob luz apropriada, é legível”. 82 Esta luz apropriada corresponde, no aparelho psíquico, ao trabalho de análise. Todas as analogias têm suas limitações, e não pretendemos nos estender nesta mais longe do que foi Freud, mas considerar, a partir daí, o campo da escrita como campo privilegiado do inconsciente.

O caráter descontínuo do aparelho psíquico sustenta-se, pois, nas constantes interrupções da corrente de inervação e na não-excitabilidade periódica do sistema perceptual, de tal modo que uma outra dimensão se implica, nesta construção — o tempo: “Tive ainda a suspeita de que esse método descontínuo de funcionamento do sistema Pcpt-Cs jaz no fundo da origem do conceito de tempo”.83 Ao finalizar o artigo, Freud afirma que, tal como acontece com o Bloco Mágico, em que uma mão escreve sobre a superfície do brinquedo, enquanto a outra eleva, periodicamente, sua folha de cobertura, apagando o escrito, assim também se passa com o aparelho psíquico. Reconhece-se, assim, um duplo movimento no sistema, de tal modo que cada palavra escrita é simultaneamente apagada, tão logo é memorizada.

Em um artigo de grande fôlego, o filósofo Jacques Derrida examina este texto freudiano, reconhecendo a necessidade de um trabalho de desconstrução dos conceitos. Seu objetivo é reconhecer alguns pontos de apoio e isolar aquilo que se deixa conter no que ele chama de fechamento logocêntrico. Para ele, não se trata de perguntar se um aparelho de escrita como o acima descrito é uma boa metáfora para representar o funcionamento do psiquismo, mas de indagar que aparelho é preciso criar para representar a estrutura psíquica, e

82 FREUD. Uma Nota sobre o ‘Bloco Mágico’ (1925 [1924]), v. XIX. Em sua apresentação à obra Woyzeck, de

Büchner, o tradutor Tércio Redondo comenta que o irmão do escritor, trinta e oito anos após sua morte, envia os manuscritos ilegíveis da referida peça ao jovem escritor Karl Emil Franzos que, com o auxílio de um preparado químico, fez realçar a tinta esmaecida do manuscrito, legando à posteridade um texto que é referência na dramaturgia contemporânea. Tal como o Bloco Mágico de Freud, que retém o traço permanente do que foi escrito, o manuscrito de Büchner pôde revelar o traço indelével da criação do artista. Ver BÜCHNER. Woyzeck (2003), p.7-17.

o que significa a imitação projetada e liberada numa máquina de algo como a escritura psíquica.84

O percurso do autor pela obra de Freud é quase exegético, explorando desde os primeiros escritos pré-analíticos, as cartas a Fliess, o Projeto para uma Psicologia Científica — cuja publicação jamais recebeu autorização do autor — e a obra sobre os sonhos, entre outros. A propósito da escritura onírica em Freud, Derrida assinala que a sonoridade da expressão verbal no sonho não se apaga perante o significado, não se deixa atravessar e transgredir como o faz no discurso consciente, agindo com a eficácia que Artaud lhe destinava na cena da crueldade. 85

Trata-se de uma escritura não transcritiva, para o autor, daí o perigo da metáfora de tradução, posto que não há um texto escrito e presente noutro lugar, que dê ocasião a um trabalho e a uma temporalização exteriores a ele. O texto inconsciente, segundo Derrida, já está tecido de traços puros, de diferenças em que se unem o sentido e a força, constituído por arquivos que já são sempre transcrições, “estampas originárias”. 86

Com relação ao bloco mágico, Derrida aponta três analogias presentes no texto freudiano: a primeira, a que liga o psiquismo a um aparelho e o escrito a uma peça extraída e materializada desse aparelho. Quanto à segunda, refere-se à recepção, à abertura da superfície da prancha à incisão do estilete, que dá conta da escrita como traço. A terceira e última analogia, ele a identifica ao tempo da escritura, lembrando a propósito os três modos kantianos do tempo nas analogias da experiência: a permanência, a sucessão e a simultaneidade.

Freud, reconstruindo uma operação, não pode reduzir nem o tempo nem a multiplicidade de camadas sensíveis. E vai ligar um conceito descontinuísta

84 DERRIDA. Freud e a Cena da Escritura (2002), p.179-227. A tradução aqui utilizada encontra dificuldades,

em especial para um leitor acostumado à linguagem psicanalítica; o conceito de “facilitação” (na versão brasileira da Imago) aparece na obra em francês de Derrida como “frayage”, termo que o autor faz corresponder ao alemão “Bahnung”, empregado por Freud. O tradutor da versão brasileira optou pelo termo “exploração”, que em absoluto dá a dimensão exigida pelo conceito freudiano. Ver DERRIDA. Freud et la scène de l’écriture (1967) e FREUD. Projeto para uma Psicologia Científica (1950[1895]), v.I. Ver também a propósito LAPLANCHE, PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise (2001), p.165.

85 DERRIDA. Freud e a Cena da Escritura (2002), p.198. 86 DERRIDA. Freud e a Cena da Escritura (2002), p.200.

do tempo, como periodicidade e espaçamento da escritura, com toda uma cadeia de hipóteses que vão das Lettres à Fliess a Au-delà ... 87

Para o autor, a temporalidade como espaçamento — por espaçamento, entende um devir-espaço do tempo — não é somente a descontinuidade horizontal na cadeia dos signos, mas a escritura como interrupção e restabelecimento do contato entre as diversas profundidades das camadas psíquicas: “Não encontramos aí nem a continuidade da linha nem a homogeneidade do volume; mas a duração e a profundidade diferenciadas de uma cena, o seu espaçamento”. 88

Tal como se concebe, em Freud, o aparelho do inconsciente, a conseqüência que Derrida aponta é que o sujeito da escritura vem a ser um sistema de relações entre as camadas: o bloco mágico, do psíquico, da sociedade, do mundo. Contudo, a máquina não anda sozinha, na representação freudiana: são necessárias pelo menos duas mãos para fazê-la funcionar, e um sistema de gestos, uma multiplicidade de iniciativas. Pelo limite que encontra, a máquina de Freud “(...) é a morte e a finitude no psíquico”.89 É desse modo, para o autor, que Freud nos apresenta a cena da escritura, na cena do mundo.