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Ao ceder o passo para examinar o infantil no sonho, Freud faz um emprego abundante do termo “cena”, que aparece quase sempre ligado a expressões que denotam a “cena infantil” ou “cena de infância”. Na edição de referência para o nosso estudo encontram-se vinte e oito ocorrências, 58 que correspondem, na edição alemã, a vinte e seis. 59 O cotejo das ocorrências das palavras “cena” e Szene praticamente se superpõe, em termos contextuais. Encontramos passagens em que a correspondência, contudo, não se faz termo a termo, o que merece atenção de nossa parte.

Na primeira delas, o termo “cena” corresponde, na edição alemã, a Situation, num trecho em que Freud descreve as partes de um sonho que teve uma senhora idosa: “Die erste Situation des Traumes ist offenbar von dem Anblick eines gestürtzen Pferdes hergenommen (...). 60 Em outro trecho, entretanto, a escolha recai no termo “situação” para fazer corresponder ao alemão Situation: “A primeira situação do sonho era um amálgama de várias cenas que posso isolar”. 61

Uma segunda ocorrência de “cena” encontra, na edição alemã, o termo Anstand [decoro], 62 num contexto em que Freud, ao descrever uma situação de sua infância, verifica ter desprezado as normas de decoro, urinando na cama dos seus pais e recebendo, do pai, uma reprimenda por isso. Um terceiro registro encontra a palavra “episódio”, 63 para fazer

58 FREUD. O Material Infantil como Fonte dos Sonhos (1900), v.IV. 59 FREUD. Das Infantile als Traumquelle (1999), p.199-227.

60 FREUD. Das Infantile als Traumquelle (1999), p.212. Encontramos na edição brasileira: “A primeira cena do

sonho derivava, evidentemente, da visão de um cavalo caído (...)”. FREUD. O Material Infantil como Fonte dos Sonhos (1900), v.IV.

61 FREUD. O Material Infantil como Fonte dos Sonhos (1900), v.IV. Encontramos na edição alemã: “Die erste Situation des Traumes ist aus mehreren Szenen zusammengebraut, in die ich sie zerlegen kann”. FREUD. Das

Infantile als Traumquelle (1999), p.220.

62 FREUD. Das Infantile als Traumquelle (1999), p.224.

corresponder ao alemão Szene. 64 Por fim, encontra-se uma ocorrência do termo “cena” na edição brasileira 65 onde, no original alemão, 66 por questões estilísticas, evitou-se a repetição da palavra.

Podemos considerar, a partir desses achados, não ser uma mera coincidência a reunião dos termos “cena”, “situação” e “episódio” nos contextos em que o alemão oferece Szene,

Situation e Anstand, palavras que pertencem todas ao campo semântico do teatro, conforme

assinala Pavis. 67 Considera-se situação um conjunto de dados textuais e cênicos indispensáveis à compreensão do texto e da ação, que se mantém até que um acontecimento o modifique, podendo comportar várias cenas.

O decoro, ou bom-tom, que no alemão encontra o equivalente Anstand, é um termo da dramaturgia clássica e significa adequação às convenções literárias, artísticas e morais de uma época ou de um público. O episódio, por sua vez, compreendia, na tragédia grega, as partes dialogadas, situadas entre as intervenções cantadas do coro, podendo aplicar-se também, em narratologia, a uma ação secundária, ligada indiretamente à ação principal.

O trabalho de transformação no sonho pode encontrar equivalente na linguagem da encenação, que permite, por seu turno, presentificar em ato as determinações últimas que possibilitaram o ato criativo do escritor. Entre o texto escrito e sua representação, é falso supor uma equivalência semântica, como afirma Ubersfeld. 68 O conjunto de signos visuais, auditivos, musicais criados pelas diferentes funções constitui uma pluralidade de sentidos mais além do conjunto textual.

Na infinidade de estruturas virtuais e reais da mensagem poética do texto literário, muitas delas desaparecem, passam despercebidas ou são apagadas pelo sistema de representação. Com isso, pode-se assinalar um certo sistema de perdas e ganhos, na transposição de um conjunto de signos a outro. Desse modo, para não ver reduzido o texto a simples prática escritural dependente de uma leitura literária, ou ainda a teatralidade sem o

64 FREUD. Das Infantile als Traumquelle (1999), p.223.

65 FREUD. O material infantil como fonte dos sonhos. (1900), v.IV. 66 FREUD. Das Infantile als Traumquelle (1999), p.224.

67 PAVIS. Dicionário de Teatro (2001), p.33, 42, 131 e 363-364, respectivamente em relação a “bom-

tom”[decoro], “cena”, “episódio” e “situação dramática”.

texto, a autora propõe uma série de possibilidades, entre as quais a leitura de texto de teatro como não-teatro, romanceando-o, ou, inversamente, teatralizando um romance. 69

Procede-se, desse modo, a um trabalho de transformação textual, de transmodalização, como dissemos a propósito do sonho, análogo e inverso ao que se executa ao construir a fábula da peça narrativa romanesca, fazendo abstração da teatralidade. O pressuposto de Ubersfeld é que existem no interior do texto do teatro matrizes textuais de “representatividade”,70 podendo-se analisá-lo segundo procedimentos específicos que revelam os núcleos de teatralidade. Por representatividade, podemos conceber, com Cleise Mendes, 71

a dimensão cênica do texto dramático.

Tais concepções parecem colidir com aquelas apontadas por Artaud, 72 em que o autor, em diversos momentos, critica a supremacia da palavra no teatro ocidental, excessivamente marcado pelo psicologismo, como também toda e qualquer concepção de encenação como simples refração de um texto sobre a cena, e não como ponto de partida de toda criação teatral. Sua concepção de cena como lugar físico e concreto que deve ser preenchido supõe um certo vazio de estrutura, exigindo uma linguagem concreta para que possa falar. Essa linguagem, destinada aos sentidos e independente da palavra, só é verdadeiramente teatral para Artaud na medida em que os pensamentos que expressa escapem à linguagem articulada.

Não se trata de suprimir o discurso articulado, mas de dar às palavras mais ou menos a importância que elas têm nos sonhos.

(...)

No que diz respeito aos objetos comuns, ou mesmo ao corpo humano, elevados à dignidade de signos, é evidente que se pode buscar inspiração nos caracteres hieroglíficos, não apenas para anotar esses signos de uma maneira legível e que permita sua reprodução conforme a vontade, mas também para compor em cena símbolos precisos e legíveis diretamente. 73

69 UBERSFELD. Lire le Théâtre I (1996), p.16. 70 UBERSFELD. Lire le Théâtre I (1996), p.16-17. 71 MENDES. As Estratégias do Drama (1995), p.30 e s.

72 ARTAUD. O Teatro e seu Duplo (1999), p.75 e s., 86 e s., e 104 e s. 73 ARTAUD. O Teatro e seu Duplo (1999), p.107.

Isso nos remete de volta a Freud, ao propor que os pensamentos oníricos têm linguagem pictográfica, ao modo do rébus, que entre nós se desenvolve ainda hoje sob a forma da carta enigmática: “O sonho é um quebra-cabeça pictográfico desse tipo, e nossos antecessores no campo da interpretação dos sonhos cometeram o erro de tratar o rébus como uma composição pictórica, e como tal, ela lhes pareceu absurda e sem valor”.74

Para compor a linguagem da cena, Artaud propõe um conjunto formidável de signos, entre os quais algumas das principais formações do Inconsciente isoladas por Freud, notadamente os sonhos, atos falhos, lapsos do espírito e da língua, através dos quais se manifesta o que Artaud denomina de impotências da palavra.

Além disso, os gestos simbólicos, as máscaras, as atitudes, os movimentos particulares ou de conjunto (…) serão multiplicados por espécies de gestos e atitudes reflexos, constituídos pelo acúmulo de todos os gestos impulsivos, de todas as atitudes falhas, de todos os lapsos do espírito e da língua através dos quais se manifesta aquilo que se poderia chamar de impotências da palavra, e existe nisso uma prodigiosa riqueza de expressão, à qual não deixaremos de recorrer ocasionalmente. 75

Propõe Artaud a volta do teatro à idéia mágica, aproximando-o da psicanálise moderna, em que se procede à cura de um doente fazendo-o adotar a atitude exterior do estado a que se quer conduzi-lo.76 Certamente, aqui o autor faz referência ao método de tratamento da histeria preconizado por Freud, em que ele provocava, por assim dizer, no paciente, as cenas e idéias, de modo a reconduzi-lo à via do sintoma, cujo surgimento era aparentemente espontâneo. Em outras palavras, o método levava o paciente a reencenar a partir das indicações cênicas que o texto do sintoma permitia ler, tal como no texto teatral o fazem, infinitamente, as indicações de cena. Visava-se, com isso, a que o sintoma histérico perdesse sua força traumática pela dramatização, pela encenação. A encenação histérica e o ato obsessivo, neste sentido, realizariam um simulacro da encenação teatral que, por sua vez, é um simulacro lúdico, como assinala Esslin. 77

74 FREUD. O trabalho do sonho (1900), v. IV. 75 ARTAUD. O Teatro e seu Duplo (1999), p.108. 76 ARTAUD. O Teatro e seu Duplo (1999), p.90.

77 O autor destaca que a platéia jamais pensa que o que vê não pretende produzir uma ilusão de realidade, mas,

ao contrário, que ela está apenas olhando algumas pessoas que estão tentando mostrar-lhe algo por meio de um simulacro lúdico. ESSLIN. Uma Anatomia do Drama (1986), p.101.

Não são poucas as referências à psicanálise e às formações do inconsciente feitas por Artaud nesta obra, algumas das quais virão à luz nesta investigação, com o fito de aproximar os dois campos de saber envolvidos, Teatro e Psicanálise. Retomemos sua definição do teatro, segundo a qual este “(...) é feito para permitir que nossos recalques adquiram vida (...)”. 78 Ou, como quer Freud, o teatro, ao tempo em que libera o sujeito, consolida nossas defesas, de tal sorte que o espectador não se deixa arrastar, como o neurótico, na repetição. Adiante, selecionamos uma das muitas passagens em que o autor convoca um conceito psicanalítico para sua apreensão do teatro.

Proponho a renúncia ao empirismo das imagens que o inconsciente carrega ao acaso e que também lançamos ao acaso chamando-as de imagens poéticas, portanto herméticas, como se essa espécie de transe que a poesia suscita não repercutisse em toda a sensibilidade, em todos os nervos, e como se a poesia fosse uma força vaga e que não varia seus movimentos. 79

Com relação a esta passagem, Derrida, num artigo em que discute o teatro da crueldade, 80 postula que a recusa de Artaud ao empirismo das imagens do inconsciente obriga-o a produzir ou reproduzir a lei do sonho, afastando-o de toda e qualquer possibilidade de um teatro psicanalítico, bem como condenando veementemente o teatro psicológico da tradição ocidental. Pode-se até entender com Derrida a recusa de Artaud à figura do psicanalista enquanto intérprete, comentador ou hermeneuta, conquanto se preservem os traços que aproximam o teatro da linguagem do inconsciente, necessários, segundo o autor, para a arquitetura da cena. O sonho, a via régia do inconsciente para Freud, é o lugar de assentamento primordial deste novo teatro de Artaud, o teatro essencial.

Assim como nossos sonhos agem sobre nós e a realidade age sobre nossos sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia com um sonho, que será eficaz na medida em que será lançado com a violência necessária. E o público acreditará nos sonhos do teatro sob a condição de que ele os considere de fato como sonhos e não como um decalque da realidade; sob a condição de que eles lhe permitam liberar a liberdade

78 ARTAUD. O Teatro e seu Duplo (1999), p.3. 79 ARTAUD. O Teatro e seu Duplo (1999), p.90.

mágica do sonho, que ele só pode reconhecer enquanto marcada pelo terror e pela crueldade. 81

Esta forma de encontrar o teatro — no sonho — servirá de suporte para muitas outras analogias em Artaud, uma das quais identifica a gênese do teatro a partir do advento da peste, com todas as implicações que um evento dessa magnitude acarreta. Esta metáfora será expandida na concepção do teatro essencial, que se aproxima da peste não por ser contagioso, mas por ser revelação, exteriorização de um fundo de crueldade latente, através do qual todas as possibilidades perversas do espírito de um indivíduo ou de um povo podem ser localizadas.

O teatro, como a peste, é feito à imagem dessa carnificina, dessa essencial separação. Desenreda conflitos, libera forças, desencadeia possibilidades, e se essas possibilidades e essas forças são negras a culpa não é da peste ou do teatro, mas da vida.

Não consideramos que a vida tal como é e tal como a fizeram para nós seja razão para exaltações. Parece que através da peste, e coletivamente, um gigantesco abscesso, tanto moral quanto social, é vazado; e, assim como a peste, o teatro existe para vazar abscessos coletivamente. 82

Numa aproximação primeira, poderíamos tornar a evocar, aqui, o artigo de Nelson Rodrigues escrito para a revista Dionysos e publicado pelo Serviço Nacional de Teatro em outubro de 1949, em que expõe suas idéias e experiências cênicas. Nele, o autor afirma que conheceu o sucesso com Vestido de Noiva, e que, a partir de Álbum de Família,perdeu para sempre toda e qualquer possibilidade de reconhecimento: “Numa palavra, estou fazendo um teatro desagradável, peças desagradáveis”.83

Em suas confissões, Rodrigues retorna ao tema do teatro desagradável, numa crônica que tem o saboroso título de Quase Enforcaram o Autor como um Ladrão de Cavalos. Trata- se de episódio que cerca a estréia de Perdoa-me por me traíres, em junho de 1957, no Teatro Municipal, em que o autor faz-se também ator, e finda a qual certo vereador puxa um revólver, num gesto que Nelson Rodrigues qualificou como tentativa de assassinato de um texto, por fuzilamento.

81 ARTAUD. O Teatro e seu Duplo (1999), p.97. 82 ARTAUD. O Teatro e seu Duplo (1999), p.28.

O ‘teatro desagradável’ ofende e humilha e com o sofrimento está criada a relação mágica. Não há distância. O espectador subiu ao palco e não tem a noção da própria identidade. Está ali como o homem. E, depois, quando acaba tudo, e só então, é que se faz a ‘distância crítica’. A grande vida da boa peça só começa quando baixa o pano. É o momento de fazer nossa meditação sobre o amor e sobre a morte. 84

Trata-se de um trecho significativo no conjunto das reflexões que faz Nelson acerca de sua própria dramaturgia, e evidência de que o autor não se encontrava tão afastado das teorias teatrais correntes como apregoava, tal como manifesta a alusão ao teatro brechtiano. Também aqui o autor parece aproximar-se da visão postulada por Artaud, para quem o teatro só é válido se tiver uma ligação mágica, atroz, com a realidade e o perigo: “Importa é que, através de meios seguros, a sensibilidade seja colocada num estado de percepção mais aprofundada e mais apurada, é esse o objetivo da magia e dos ritos, dos quais o teatro é apenas um reflexo”.85

No mesmo ensaio sobre o Teatro da Crueldade em Artaud, Jacques Derrida assinala sua característica fundamentalmente onírica, mas de um onirismo cruel, ou seja, necessário e determinado, de um sonho calculado e dirigido, em oposição ao que Artaud julgava ser a desordem empírica do sonho espontâneo. 86