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O FRAGMENTO EM NELSON RODRIGUES: UMA POÉTICA

Neste capítulo procuraremos demonstrar como se exerce, em Nelson Rodrigues, a poética do fragmento, cuja delimitação conceitual foi desenvolvida na seção precedente, intitulada Introdução. Para tanto, realizaremos um recorte no conjunto da obra dramatúrgica deste autor, tomando como matrizes de análise duas peças — Dorotéia 1 e Boca de Ouro — 2

com o fim de inventariar as características do que designamos modo dramático do fragmento. Desde nossa primeira aproximação à dramaturgia rodrigueana, víamo-nos inclinadas a nos afastar de toda concepção psicologizante ou mesmo psicanalisante da obra, leitura que sempre nos pareceu reducionista, preferindo manter os saberes em seus respectivos campos, livres para dialogar e questionar um ao outro. Do mesmo modo, afiguráva-se-nos uma empreitada difícil tomar como ponto de partida o sistema classificatório proposto por Magaldi, em que a psicologia é estatuída a operador de leitura e de interpretação. 3

O repertório de obras em que se debatem temas literários e temas psicanalíticos excede os limites de nossa investigação, razão pela qual seremos econômicas em referenciar apenas aquelas que mais de perto servem aos nossos propósitos e interesses. Contudo, um breve olhar sobre François Regnault, 4 que se ocupou em examinar a arte em Lacan, possibilita-nos reencontrar Freud, em seu magistral estudo sobre Leonardo da Vinci.

Os instintos e suas transformações constituem o limite do que a psicanálise pode discernir; daí em diante cede lugar à investigação da biologia. Somos obrigados a procurar a fonte da tendência à repressão e a capacidade para a sublimação nos fundamentos orgânicos do caráter, sobre o qual se vem erigir posteriormente a estrutura mental. Já que o talento artístico e a capacidade

1 RODRIGUES. Dorotéia (1994), p.625-670. 2 RODRIGUES. Boca de Ouro (1994), p.879-939.

3 O autor organiza o conjunto da obra dramática de Nelson Rodrigues em três vertentes: Peças Psicológicas,

Peças Míticas e Tragédias Cariocas. Ver MAGALDI. Prefácio. In: RODRIGUES. Teatro completo (1994).

4 Regnault é dramaturgo ligado à Companhia Teatro da Comuna de Aubervilliers, conforme assinala Ryngaert

estão intimamente ligados à sublimação, temos de admitir que a natureza da função artística também não pode ser explicada através da psicanálise.5

Depreendemos desta passagem uma concepção, certamente apropriada, segundo a qual o mistério da obra de arte não é acessível à psicanálise, remetendo-o Freud às leis da biologia ou aos avatares do nascimento. No ensaio sobre Leonardo, contudo, ele penetra fundo na psicologia do artista, posição em relação à qual, contudo, estamos advertidas em manter distância, privilegiando, em contrapartida, a manutenção dos dois saberes, psicanálise e arte, em contínuo diálogo, em detrimento de interpretações sobre a psicologia da personagem e do seu criador.

Imbuídas desse espírito, deparamo-nos certa feita com um comentário — não por acaso de um psicanalista — a respeito de uma peça de Nelson Rodrigues, em que o comentarista, sem maiores pretensões, encontrava uma fronteira de demarcação no interior da obra dramatúrgica, estabelecendo, desse modo, um certo sistema de referências, mais que um princípio classificatório. Trata-se de um artigo de Hélio Pellegrino, psicanalista e amigo de Nelson, em que o autor propõe dois movimentos para a obra rodrigueana: o primeiro, que ele designa mitológico, e no qual se incluem todas as peças do ciclo inaugural, genesíaco, voltado para as raízes mais profundas do seu inconsciente.

Amor e ódio, nascimento e morte, incesto e ciúme, gênese e apocalipse — tais são as massas incandescentes que giram no universo dramático de Nelson Rodrigues, na primeira fase do seu teatro, sem nenhum compromisso com a verossimilhança e sem pretender qualquer transcrição realista do mundo objetivo. 6

A segunda vertente, ou se quisermos, o segundo movimento da obra rodrigueana, parece a Pellegrino ter sido encontrada a partir dos temas fundamentais de sua primeira fase, em que já não é o homem imortal que aparece, mas o homem que morre.

‘Esse bicho da terra tão pequeno’, mergulhado na sua ecologia específica, morador do subúrbio, crivado de contradições, envenenado de banalidade, mas vivo, vivo na sua condição trágica de ser marcado pelo pecado e pela

5 FREUD. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910), v. XI. 6 PELLEGRINO. A Obra e O Beijo no Asfalto (1994), p.155-156.

morte, tal será o barro a partir do qual Nelson Rodrigues, após A falecida, passará a esculpir a sua obra teatral. 7

Embora o autor do comentário não tenha tido a preocupação de designar esta fase ou movimento, tal como o fez em relação ao primeiro, sentimo-nos, contudo, impelidas à nomeação, não obstante guardarmos distância de toda e qualquer pretensão classificatória. Para tanto, recorremos a uma palavra empregada pelo autor do artigo, denominando o segundo movimento de “ecológico”, no sentido etimológico do termo, advertidas, entretanto, da dimensão que ele adquiriu, mais recentemente, ao abrigar uma disciplina e um campo de saber já estabelecido. 8

Grandes temas como amor e ódio, nascimento e morte, gênese e apocalipse ainda compõem a rede temática desta segunda fase, embora marcados pelo selo da finitude, da cotidianidade e da miséria, através de uma galeria de tipos. Contudo, assinala Pellegrino, a grande novidade deste segundo movimento rodrigueano reside na linguagem que afirma a prosa, quando antes a poesia imperava; ela é plástica, coloquial, simples, sem solenidade, à diferença da anterior, hierática, solene.

Esta classificação despretensiosa nos deu a chave para uma seleção criteriosa da obra rodrigueana, acabando por fixar dois dos movimentos: um, mitológico, em que se inclui

Dorotéia, e outro, ecológico, que compreende Boca de Ouro. No decurso da pesquisa

verificamos que nossa escolha se revestia de caráter cronotópico, aspecto sobre o qual iremos nos deter, em particular no Capítulo IV, quando procuraremos desenhar Uma Cronotopia Possível do Drama Rodrigueano.

Para a tarefa que nos propusemos, neste capítulo, impõem-se-nos, desde já, algumas,

soi-disants, marcações. Trata-se, em primeiro lugar, de não isolar esta ou aquela peça como

7 PELLEGRINO. A Obra e O Beijo no Asfalto (1994), p.157. Deve-se ressaltar que o sintagma “esse bicho da

terra tão pequeno” encontra-se no artigo referido entre aspas, sem, contudo, identificar-se sua autoria. A Profª Dra. Cleise Mendes, em reunião de trabalho de 3 de março de 2006, lembrou-nos muito acertadamente que essa frase é o primeiro verso de um poema de Carlos Drummond de Andrade, chamado “O homem; as viagens”. O verso é: “O homem, bicho da Terra tão pequeno”. Ver DRUMMOND de ANDRADE. As Impurezas do Branco (1974), p.20-22. Até onde apuramos, esta coletânea foi publicada, inicialmente, em 1973. Chama-nos a atenção o fato de que o artigo de Pellegrino, segundo Sábato Magaldi, consta da edição de Teatro quase completo pelas Edições Tempo Brasileiro Ltda., de 1965. MAGALDI. Fortuna crítica. In: RODRIGUES. Teatro completo (1994), p.133.

8 A palavra “ecologia” foi criada em 1866 pelo naturalista Ernst Haeckel, ao combinar as palavras gregas oikos,

que significa “casa ou família”, e logos, que designa “conhecimento”. BURNE. Fique por dentro da Ecologia (2001).

paradigma, o que poderia se configurar uma aporia, considerando-se que a escrita dramática do fragmento pressupõe a ausência de modelos, mas antes encontrar, no conjunto da obra rodrigueana, modos de enunciação do que se pretende poética do fragmento, suas características e efeitos, bem como as regras de enunciação desta modalidade de escrita.

Para tanto, procuraremos inventariar os procedimentos de que faz uso o dramaturgo Nelson Rodrigues em suas peças, seja na arquitetura dramática ou no desenvolvimento da ação, seja no especial uso da linguagem, através dos diálogos e composição de caracteres, com o fim de encontrarmos o modo do fragmento na escrita dramática rodrigueana. Vimos, na Introdução a esta Tese, que o emprego de certos recursos dramáticos, tais como a sucessão descontínua de cenas sem encadeamento causal; a quebra da perspectiva temporal; diálogos que se dissolvem em monólogos paralelos; alogicidade e forte teor onírico, entre outros procedimentos, oscila entre o Expressionismo, Dadaísmo e Surrealismo, constituindo, a nosso ver, uma parte do ilimitado repertório de possibilidades encontráveis na obra rodrigueana.

Abrimos o item “Da totalidade ao fragmento” (Introdução) recortando uma passagem em que Nelson Rodrigues vê em Vestido de Noiva toda a estrutura de um soneto antigo, revelando sua compreensão do drama como uma arte poética. É justo que nos perguntemos acerca do impacto da encenação desta peça, em 1943, no Brasil. Sem dúvida, há aí uma surpresa, uma virada em relação à expectativa geral de peças com começo, meio e fim, como rezava a tradição, em que pese às discussões, infindáveis, acerca do que se considera pioneiro do teatro moderno no Brasil. 9

Tragédia em três atos, Vestido de Noiva 10 apresenta, como característica principal, um

cenário dividido em três planos. No primeiro, a alucinação; no segundo, a memória, e, no terceiro plano, a realidade. Essa inovação não encontra precedente em nenhuma peça produzida anteriormente, ou que o dramaturgo tivesse conhecimento, como afirma Sábato

9 Ver, a propósito, debate que sustenta Iná Camargo Costa em Sinta o drama (1998), p.37 e s. De nossa parte,

cremos que a conjunção de fatores — Nelson Rodrigues, Os Comediantes e Z. Ziembinski — promoveu o impacto. Em apoio à nossa postulação, veja-se, entre outros: o comentário de Sebastião Milaré, em que o autor atribui as assertivas tipo “Nelson Rodrigues criou o teatro brasileiro” ou “Ziembinski o pai do nosso teatro” à ansiedade pelo encontro de um criador, quando em realidade a cultura dramática já refletia a nossa sociedade, na sua busca civilizatória; o comentário de Fred Clark, que considera um feliz encontro entre o dramaturgo, o diretor, o cenógrafo Santa Rosa e o competente grupo teatral. Ver MILARÉ, “Nelson Rodrigues e o Melodrama Brasileiro” (1994), p.16 e CLARK, “Relações Impermanentes: Texto e Espectador no Teatro de Oswald de Andrade e Nelson Rodrigues” (1994), p.106.

Magaldi. 11 Conspirava a favor da ousadia, segundo o crítico, o desconhecimento da tradição teatral, por parte do autor, deixando-o livre para vôos dessa natureza.

Fiz Vestido de Noiva com outro ânimo. Esta peça pode não ter alcançado um resultado estético apreciável, mas era, cumpre-me confessá-lo, uma obra ambiciosa. A começar pelo seu processo. Eu me propus a uma tentativa que, há muito, me fascinava: contar uma história, sem lhe dar uma ordem cronológica. Deixava de existir o tempo dos relógios e das folhinhas. As coisas aconteciam simultaneamente (...) 12

Tal arquitetura de planos e dimensões, presente na obra dramática de Nelson Rodrigues, constitui uma tendência que Ryngaert 13 aponta nas obras contemporâneas, marcadas pela escrita dramática descontínua e gosto pelo fragmento. A dramaturgia rodrigueana pode, legitimamente, aspirar a um estatuto de ruptura com a tradição do teatro no Brasil, e toda a fortuna crítica recolhida por Sábato Magaldi 14 a reconhece, sem favores ou concessões.

O inventário das características do modo de escrita dramática no texto de Nelson Rodrigues possibilitará desenhar aquilo que Ryngaert define como dramaturgia do fragmento, e que aqui apontamos como poética do fragmento, aproximando, por este recorte, a obra rodrigueana de outras escritas dramáticas da contemporaneidade. Ressaltemos que o fragmento — a não-totalidade — em Nelson conhece dois sentidos, tanto na contramão da obra bem-feita, que exige, para sua totalidade, uma intriga com princípio, meio e fim, quanto na mistura de gêneros, contrariando o princípio clássico ao invadir a tragédia com homens comuns e com uma linguagem feita de platitudes.