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Os fatos graves estão fora do tempo, seja porque neles o passado imediato fica como que separado do futuro, seja porque não parecem consecutivas as partes que os formam. 56

O tempo cênico pode ser definido, segundo Pavis, 57 como a modalidade temporal em que a representação propriamente dita transcorre, e que se diferencia do tempo dramático, aquele dos acontecimentos relatados. O tempo cênico é aquele vivido pelo espectador confrontado ao acontecimento teatral, é um tempo eventual, ligado à enunciação, ao desenrolar do espetáculo, e que se desenvolve num presente contínuo.58

Quanto ao tempo dramático, não é próprio do teatro, mas de todo discurso narrativo que fixa uma temporalidade, remete a uma outra cena ou dá a ilusão referencial de um outro mundo, parecendo estruturado como o tempo do calendário. Entre as duas temporalidades, Pavis verifica algumas possibilidades de relacionamento, entrevendo categorias como o tempo social, o tempo iniciático, o tempo mítico e o tempo histórico.

As observações de Pavis a respeito da categoria do tempo 59 parecem prender-se não apenas às distinções entre o chamado tempo cênico e tempo extracênico (ou dramático), como

54 De acordo com Isidro Pereira, Até — Άτη — corresponde a peste, açoite, desastre, castigo, crime, desgraça,

ruína, fatalidade. PEREIRA. Dicionário Grego-Português e Português-Grego (1984), p.90.

55 LACAN. O Seminário; livro 7; a ética da psicanálise (1988), p.318. 56 BORGES. Emma Zunz (2001), p.70.

57 PAVIS. A Análise dos Espetáculos: Teatro, Mímica, Dança-Teatro; Cinema (2003), p.147. 58 PAVIS. Dicionário de Teatro (2001), p.400-403.

a verificar as projeções de um sobre o outro, na transposição dos signos lingüísticos da escritura dramática para a multiplicidade sígnica da escritura cênica, em diversos momentos da história do teatro. Nossa investigação, que se pretende um recorte na dramaturgia de Nelson Rodrigues com o fim de isolar os possíveis constituintes da escrita dramática descontínua, dos quais um vetor fundamental é o tempo, faz-nos, contudo, voltar o olhar para outro ponto, também mencionado por Pavis.

Em teatro, afirma o autor, nota-se o caráter sempre presente da representação e a necessidade de conduzir toda a ficção à enunciação presente da representação. 60 Dessa

forma, o tempo cênico porta um conjunto de marcas indiciais que atestam sua inserção no espaço e nas personagens, em outras palavras, signos dêiticos, em torno dos quais personagens exibem a “palavra em cena”. Entre os signos dêiticos no teatro, Pavis inclui a cena, que só existe enquanto espaço sempre vivenciado como presente e submetido ao ato perceptivo do público.

(...) o que ocorre ali (o que é ali ‘performado’), só existe por causa da simples ação de enunciação. Por uma convenção implícita, o discurso da personagem significa e representa (...) aquilo de que ele está falando. Da mesma forma que um ato performático (...), o discurso teatral é ‘ação falada’. 61

Em relação ao “ato performático”, convocamos Benveniste e sua definição de enunciado performativo, salientando o autor que este tipo de enunciado é um ato, e tem a propriedade de ser único, só podendo ser efetuado em circunstâncias particulares, numa data e num lugar definidos. É acontecimento, diz o autor, porque cria o acontecimento. 62 Um dos domínios em que os enunciados performativos se produzem é o dos atos de autoridade, entendendo-se enquanto tais as enunciações proferidas por aqueles a quem pertence o direito de enunciá-los. Se postularmos que os atores são, assumidamente, aqueles que, através da fala ou do gesto, indicam (mostram) de onde estão falando, e em torno dos quais tempo e espaço se organizam, podemos deduzir, com justeza, a natureza performativa do ato cênico.

60 PAVIS. Dicionário de Teatro (2001), p.401. 61 PAVIS. Dicionário de Teatro (2001), p.88.

O acontecimento ou evento é correlativo, consubstancial e co-extensivo ao tempo e ao espaço, tal como assinalamos em Domingues, no início deste capítulo. Isso quer dizer que os acontecimentos afetam o tempo/espaço e são também afetados por estes; não há acontecimento sem tempo/espaço, na medida em que todos partilham a mesma natureza; tempo, espaço e acontecimento não se recobrem nem são idênticos. Uma outra particularidade do acontecimento é que ele tem o poder de criar o tempo e o espaço, de modalizá-los, ou seja, dar-lhes forma, de maneira tal que, ao ser apropriado pelos agentes históricos, pode sofrer alterações. Em outras palavras, a tripla dimensão acontecimento/tempo/espaço somente se completa quando se lhe integra o elemento de subjetividade que dela tenta se apropriar, ainda que de modo incompleto, como salientou Freud.

Desse modo, encontramos múltiplas possibilidades de combinações entre os sujeitos, os acontecimentos, o tempo e o espaço. Numa sucessão temporal, como vimos, o tempo pode ser figurado como um intervalo, envolvendo um antes, um agora e um depois. No presente, esta relação pode sofrer um encavalamento, ou seja, uma superposição em que os limites entre o antes, o agora e o depois ficam eliminados. Com relação ao passado e ao futuro, este mesmo encavalamento se processa entre o antes e o depois, subvertendo a relação temporal.

No plano da dramaturgia, o acontecimento ou evento é atuado, o que pressupõe o gesto e a fala, contemporâneos de toda ação, e correlativos e co-extensivos ao espaço e ao tempo. Podemos asseverar que, no drama, evento, espaço e tempo se correlacionam e coexistem, numa unidade que é a da ação, o que nos autoriza a pensar o tempo cênico como tempo da ação, propriamente. O presente da representação, da encenação, é a unidade que define o tempo/espaço, a partir do qual são geradas as temporalidades do antes e do depois, em sucessão linear ou encavalada.

Em Nelson Rodrigues, vamos encontrar traços da superposição temporal em muitas de suas obras, nomeadamente em Vestido de Noiva, 63 estruturada em três planos, designados alucinação, memória e realidade. De início, os planos se apresentam de forma sucessiva, alternando-se dentro de limites precisos, mas, à medida que a ação progride, se superpõem, segundo a modalidade de encavalamento.

Em Valsa nº 6, 64 peça em dois atos do mesmo autor, toda a ação ambientada em clima onírico se passa num presente que é, ao mesmo tempo, rememoração do passado e projeção do futuro previamente anunciado — a morte da protagonista Sônia, assassinada aos 15 anos, posta em cena para lembrar-se do que ocorreu. A personagem, única, desdobra-se em todas as demais que entram na composição do enredo, através da rememoração: Dr. Junqueira, a mãe, o pai, Paulo, o namorado, além dela própria, reconstituindo-se a cena do assassinato em todos os detalhes.

A passagem para o segundo ato marca a transposição para o passado remoto, em que a personagem rememora sua vida infantil, em seguida salta novamente para o futuro, reencontrando-se como jovem aos 15 anos para, finalmente, testemunhar o próprio desaparecimento. Seu desejo de perenidade marca a última fala na peça: “Sempre! Sempre!”.

65 Novamente, os planos de realidade, memória e alucinação aí comparecem, sob a forma de

evocação do discurso de Sônia, reiterando a tênue fronteira entre os espaços da lembrança e do delírio, por um lado, bem como realizando a proeza da fragmentação temporal, posto que é uma morta que fala sobre o passado, anterior ao seu assassinato, e antevê o futuro, que se apresenta como um agora: “Sônia está aqui, ali, em toda parte!”.66 À fragmentação temporal, acrescenta-se a ubiqüidade espacial, porquanto a personagem se apresenta em toda parte, estando onipresente na cena. 67

Em Boca de Ouro, nos relatos sucessivos de Guigui encontramos um verdadeiro encavalamento temporal e espacial, ou seja, uma superveniência de tempo, espaço e ação de tal modo que nenhum dos relatos pode ser estabelecido como referência da verdade histórica. Isso implica, a nosso ver, em recalque do próprio acontecimento, em esvaziamento do tempo e abolição do devir.

Este é o regime memorialista que se impõe a Nelson Rodrigues: “Tenho mortos e vivos mais urgentes. Por outro lado, minhas lembranças não terão nenhuma ordem

64 RODRIGUES. Valsa nº 6 (1994), p.395-430.

65 RODRIGUES. Valsa nº 6 (1994), Segundo Ato, p.430. 66 RODRIGUES. Valsa nº 6 (1994), Primeiro Ato, p.397.

67 Com relação a este aspecto, veja-se o comentário de Ryngaert, em que o autor aponta a ubiqüidade narrativa

como uma característica da modalidade de escrita descontínua contemporânea. RYNGAERT. Ler o teatro

contemporâneo (1998), p.133. Veja-se também o comentário de Magaldi em relação a Senhora dos Afogados,

em que o coro espectral de vizinhos tem o dom da ubiqüidade — está em todos os lugares, ao mesmo tempo. MAGALDI. Prefácio. In: RODRIGUES. Teatro completo (1994), p.55.

cronológica (...) O que eu quero dizer é que estas são memórias do passado, do presente, do futuro e de várias alucinações”. 68

Se o tempo histórico é marcado pela continuidade (linha) e descontinuidade (ponto) e a cadeia de sucessões comporta nós e hiatos, bem como pontos de sutura e de cisão, autorizamo-nos a aproximar esse funcionamento do de duas outras modalidades temporais: a primeira, relativa à estrutura do aparelho psíquico concebido por Freud, em suas várias instâncias; e uma outra, relativa à escrita dramática do fragmento, tal como aqui procuramos delimitar, particularmente na obra dramatúrgica de Nelson Rodrigues.

Esta arquitetura de planos e dimensões, como salientamos em algumas passagens da Introdução e também no Capítulo I, é uma tendência das obras contemporâneas, como assinala Ryngaert, marcadas pela escrita dramática descontínua, em que o dramaturgo conjuga em todos os tempos os fragmentos de uma realidade complexa, e também em que as personagens, “invadidas pela ubiqüidade”, viajam no espaço por intermédio do sonho ou pelo trabalho da memória.69

Nosso interesse pela escrita dramática descontínua em Nelson Rodrigues encontra paralelo no trabalho desenvolvido por Ryngaert a respeito do teatro contemporâneo de expressão francesa. Seu ponto de partida foram os anos 50, em razão da radicalidade do movimento que alterou os padrões da escrita e da arte dramática, opondo-se aos ideais estéticos da antiga dramaturgia.

A dramaturgia do fragmento corresponde a uma escritura fragmentada, não totalizadora, que confere privilégio às partes, em detrimento do todo, e à descontinuidade, em prejuízo do encadeamento. Para examinar as obras contemporâneas na perspectiva da escrita dramática descontínua, Ryngaert pressupõe a reflexão sobre as formas de organização do diálogo, a fragmentação do tempo e do espaço, a evolução da noção de personagem e as diversas inovações de linguagem.

O espaço e o tempo fundam a representação teatral, que se desenrola ‘aqui e agora’, dando conta de um ‘alhures, outrora’, ou seja, acontece num espaço e tempo cênicos aquilo

68 RODRIGUES. A menina sem estrela: memórias (1999), p.11. 69 RYNGAERT. Ler o teatro contemporâneo (1998), p.132.

que se imagina num espaço e tempo dramáticos. Muitos autores combinam espaço e tempo fugindo dos modelos da tradição, para falar de um mundo em que as percepções do espaço e do tempo evoluíram radicalmente.

A vanguarda dos anos 1950, de acordo com Ryngaert, opôs-se às convenções teatrais que marcam, tradicionalmente, o espaço e o tempo na passagem à representação. Para ilustrar o desregramento do tempo, o autor evoca Ionesco, em que as rubricas indicam que “o relógio de pêndulo inglês bate dezessete badaladas inglesas”, enquanto uma personagem inicia sua fala dizendo “Veja só, são nove horas”.70

Um outro exemplo ilustrativo do desregramento do tempo é Beckett. 71 As rubricas do início do segundo ato descrevem uma árvore com algumas folhas, e, ao fazer entrar em cena Vladimir, a personagem pára e olha-a por um longo tempo, fazendo o espectador deduzir que as folhas da árvore cresceram em uma noite. Beckett desregra o tempo cênico e ao mesmo tempo o faz com a memória das personagens e de toda sua relação com o tempo que passa.

Práticas de rituais e cerimônias, no entender de Ryngaert, tendem a fazer coincidir o presente da ação e o presente da representação, aparecendo seja nas formas de teatro do

happening (literalmente, o que está acontecendo), cujo objetivo é exercer uma forte influência

emocional sobre o espectador, seja quando a escrita faz menção de parar o curso da ação, expondo e denunciando as convenções da representação, por procedimentos que retomam as tradições do teatro no teatro.

O trabalho de René Kalisky também se inscreve na lista de autores e obras que operam com a descontinuidade temporal. Na filmagem de uma cena de A paixão segundo Pier Paolo

Pasolini, Kalisky combinou as ameaças que pesaram sobre a vida de Cristo com a

reconstituição do assassinato de Pasolini, no momento anterior ao fato. O presente é o da filmagem que recorre ao passado — a morte de Cristo — e a um futuro — Pasolini filmando sua própria morte.72

70 IONESCO. A cantora careca (1950) apud RYNGAERT. Ler o teatro contemporâneo (1998), p.107. 71 BECKETT. Esperando Godot. (1952) apud RYNGAERT. Ler o teatro contemporâneo (1998), p.108. 72 RYNGAERT. Ler o teatro contemporâneo (1998), p.120-121.

Outro exemplo trazido por Ryngaert que ilustra o modo do fragmento espaço-temporal é Sarrazac, em que o autor coloca duas personagens em um espaço/tempo após a morte. A amizade de uma velha senhora judia e de um rapaz que cuida de suas flores chega ao fim quando este último mata brutalmente a primeira, e os dois se reencontram, após o drama, para dialogar e reviver momentos do passado.73 A memória é coadjuvante neste processo, na medida em que a velha senhora interroga o rapaz, tentando compreender os motivos do assassinato.

Uma dramaturgia em que o espaço/tempo gera simultaneamente várias dimensões e épocas para dar conta do homem perpetuamente criado recebe de Armand Gatti a designação de ‘teatro das possibilidades’. De acordo com Ryngaert, Gatti escreve teatro “fragmentado” ao tomar consciência da impossibilidade do teatro burguês em dar conta dos dramas do homem contemporâneo. A partir da experiência da deportação, o dramaturgo propõe um novo espaço teatral: “O fato de criar um tempo-possibilidade levou quase obrigatoriamente a um

espaço-possibilidade, isto quer dizer que há um espaço dado que cria todos os espaços

possíveis”. 74

A fragmentação, como somos levadas a concluir, não é uma palavra de ordem de cunho modernista, mas expressão de um questionamento sobre a verdade dos fatos e seus desdobramentos, justificando a afirmação segundo a qual “(...) o demônio do efêmero e da fragmentação, que é, talvez, o espírito mesmo do teatro, continua vigilante”. 75

Neste capítulo, realizamos algumas considerações acerca das categorias tempo e espaço, tendo em vista sua importância capital na arquitetura dramática do fragmento, apoiando-nos em considerações de estudiosos da questão, verificando, em seguida, o que chamamos de modalidades temporais freudianas, ou, em outras palavras, os modos de arranjo espacial e temporal do aparelho psíquico proposto por Freud.

Entre as noções temporais mais proeminentes, selecionamos a modalidade do kairós, ou tempo da ação, para aproximar as linguagens da psicanálise e do teatro, através do exame

73 SARRAZAC. A paixão do jardineiro (1989) apud RYNGAERT. Ler o teatro contemporâneo (1998), p.123-

124.

74 GATTI. Entrevista para Lettres Françaises (1965) apud RYNGAERT. Ler o teatro contemporâneo (1998),

p.127-129.

75 DORT. Préface a SARRAZAC. L’ Avenir du drame: écritures dramatiques contemporaines (1999), p.11

do conceito de repetição em Freud e Lacan, o que nos levou a localizar o imprevisto em

Dorotéia. Por último, trouxemos para debate a noção segundo a qual o tempo cênico é o

tempo da ação, por excelência. Se o sonho é a via régia do inconsciente, como asseverou Freud e como reafirmamos em diversos momentos, encontramo-nos diante de uma máxima em tudo equivalente: o teatro é a via régia do imprevisto, do cálculo inconsciente.

No capítulo que se segue, para concluirmos nossa investigação, pretendemos continuar o debate acerca da temporalidade e da espacialidade no drama seguindo os passos de Mikail Bakhtin em sua concepção do cronotopo. Em vista de que o autor procede ao exame das formas de tempo e do cronotopo romanesco, procuraremos, com apoio em autor de ensaios sobre o drama, realizar uma aplicação do cronotopo nas peças Dorotéia e Boca de Ouro, estendendo similitudes e contrastes às demais peças de autoria de Nelson Rodrigues.

A noção de cronotopo — que amalgama as noções de acontecimento, tempo e espaço — é indissociável da imagem do homem e da linguagem de seu tempo, ou seja, do elemento de subjetividade que deles procura se apropriar, daí porque nosso horizonte buscará alcançar o “homo rodriguianus” e sua linguagem de farrapos e de fragmentos, linguagem estilhaçada, conjunto que conforma uma poética do fragmento.