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CAPÍTULO 01 BRÁS E BOM RETIRO: DAS CHÁCARAS AO CIRCUITO ESPACIAL DO VESTUÁRIO

1.1. A FORMAÇÃO DA ESPECIALIZAÇÃO PRODUTIVA DO RAMO DO VESTUÁRIO

A cidade, segundo Maria E. B. Sposito (1999), é expressão do processo de urbanização. Deriva simultaneamente dos papéis urbanos desempenhados no decorrer do tempo histórico, e condiciona as práticas sociais, de diferentes naturezas, que se realizam, por meio do cotidiano. A autora ressalta que os papéis urbanos se tornaram mais diversos e complexos. No entanto, a concentração continua sendo uma marca das cidades, pois as formas de centralização econômica e de gestão política e financeira se realizam nas cidades. As mudanças ocorreram no plano territorial, havendo um rompimento da continuidade do tecido urbano e a acentuação do processo de periferização.

O Brás e o Bom Retiro nasceram como chácaras e tornaram-se bairros tradicionais importantes por terem sido abrigo da primeira fase da industrialização da cidade. A metropolização de São Paulo, baseada na expansão da área urbana, promoveu o processo de “deterioração” do meio construído no Brás e Bom Retiro. Contudo, esses bairros criaram na obsolescência a possibilidade profícua de abrigo de uma forte especialização produtiva, ou seja, novos papéis urbanos foram assumidos por esse fragmento da cidade. A “deterioração” do meio construído é parte do próprio fenômeno de modernização e expansão da cidade, pois, a modernização das atividades econômicas exige novos sistemas técnicos, juntamente a esse processo, agem os atores da especulação imobiliária, explicando o movimento intenso de obsolescência e abandono dos bairros na cidade de São Paulo. Inclusive Montenegro (2006, 2009) ressalta que o circuito inferior na cidade de São Paulo tem no meio construído deteriorado e na grande quantidade de fluxos das áreas centrais uma verdadeira economia de aglomeração para o desenvolvimento das suas atividades.

Adriana M. B. da Silva (2001) indica para a cidade de São Paulo três recortes espaço- temporais chaves para a formação e afirmação de sua centralidade como metrópole informacional no território brasileiro. O primeiro período compreende o final do século XIX até 1945; o segundo período vai de 1945 a 1970/80 e o recente, compreendendo década de 1980 ao período atual, cujo conteúdo confere o caráter de metrópole informacional. A autora destaca que não há grandes rupturas desses “momentos histórico-territoriais” e estes têm como base os três

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elementos definidores da vida de relações8 na metrópole no território nacional: o comércio, a indústria e a informação (SANTOS, 2009b).

A migração dos “centros” da cidade de São Paulo revela o processo de valorização e desvalorização das áreas nos diferentes momentos geográficos. Primeiramente a área central (Sé e República) exerce a centralidade das atividades econômicas na cidade, período em que o café motiva a vida de relações; posteriormente, década de 1940 a 1970/80 a Avenida Paulista exerce o papel de símbolo da metrópole industrial e recentemente a Avenida Luis Carlos Berrini e arredores (“vetor Sudoeste”) expressa o papel de São Paulo como centro dos objetos técnicos mais elaborados como redes de acesso fácil, prédios “inteligentes”, helipontos, redes de telecomunicações, condizentes com as necessidades de criação, distribuição e controle de informações, variável chave do período atual.

No período inicial da formação da metrópole (final do século XIX até 1945), a vida de relações na cidade passou paulatinamente a ser animada pelo ritmo das acelerações técnicas do capitalismo industrial. São Paulo neste momento constituiu-se em centro mundial do comércio de

café9, além de abastecer uma vasta região com inúmeros produtos manufaturados, tornando-se

capital regional, esboçando seu papel de comando regional na hierarquia urbana. Nesse período o território brasileiro encontrava-se em fase de mecanização: a produção agroexportadora, as nascentes indústrias, juntamente com os sistemas de objetos que surgem (telégrafo e as ferrovias) conformam uma integração regional orientada por São Paulo (SILVA, 2001).

O período de 1945 a 1970/80 é o momento que o Brasil conhece o fenômeno da forte expansão da industrialização, São Paulo concentra grande parte do parque industrial que tem suas origens no desenvolvimento do complexo cafeeiro (CANO, 1997). Essa cidade afirmou-se como pólo acolhedor de modernizações do território nacional e, ademais, assume o papel de metrópole nacional, sendo a indústria o elemento dinamizador desse momento geográfico. Os investimentos na cidade ocorreram, sobretudo, na circulação. O padrão rodoviário passa a predominar na paisagem da cidade, sendo o aumento do número de automóveis nas ruas o símbolo dessa nova etapa da metrópole.

8 O conceito de “vida de relações” foi cunhado por P. George (1968) para referir-se às solidariedades internas aos

lugares.

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Silva (2001) lembra que, embora São Paulo fosse o centro comercial cafeeiro, esse era subordinado ao capital inglês e a cidade do Rio de Janeiro apresentava-se como o principal centro político do território nacional.

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Já na década de 1960 o BNH (Banco Nacional de Habitação) mostra-se com papel fundamental na expansão urbana e periferização do trabalhador. Os elevados investimentos em circulação, em grandes projetos habitacionais e as operações urbanas de renovação ativaram o ciclo vicioso de valorização urbana e expulsão dos pobres dos bairros centrais e mais antigos e, posteriormente, o certo abandono das áreas centrais para a função residencial e industrial.

A enorme expansão dos limites territoriais da área metropolitana construída, a presença na aglomeração de uma numerosa população de pobres e a forma como o Estado utiliza os seus recursos para a animação das atividades econômicas hegemônicas em lugar de responder demandas sociais conduzem à formação do fenômeno que chamamos de metrópole corporativa, voltada essencialmente à solução dos problemas das grandes firmas e considerando os demais como residuais (SANTOS, 2009a).

Gradativamente reconhece-se que a metrópole informacional vai se configurando, conformando o período recente (1970/1980-hoje), em que São Paulo toma o controle do território via controle dos fluxos imateriais, sem deixar de depender da força dos fluxos materiais da indústria (SILVA, 2001; SANTOS, 2009b).

A informação passa a ser substrato para a aceleração do consumo e da ampliação da

mais-valia, pois, é elemento de poder. Para Santos (1986a, p. 127), “a informação é privilégio do

aparelho de Estado e dos grupos econômicos hegemônicos, constituindo uma estrutura piramidal. No topo, ficam os que podem captar as informações, orientá-las a um centro coletor, que as seleciona, organiza e redistribui em função do seu interesse próprio”, sendo os demais incapazes de decodificar essas informações transmitidas pela grande mídia. Considerando o papel estratégico da informação hoje, a rede urbana passa por uma reorganização, segundo o poder de concentrar e redistribuir as informações. São Paulo compõe a inteligência informacional do território brasileiro, todavia, a “cidade abastada e a cidade pobre formam uma só cidade” (SANTOS, 2009a, p. 14). O autor ainda destaca que São Paulo, apesar do processo de desconcentração industrial, ainda continua concentrando parte das atividades industriais do país, o que lhe confere grande comando nacional.

Outros autores dedicaram-se à periodização da história territorial da cidade de São Paulo como Langenbuch (1971) e Maria A. de Souza (1994). O primeiro destaca o período pré- metropolitano (1875-1915); o início da metropolização (1915-1940); metropolização recente (a

partir de 1940). Já Souza (1994) encontra onze fases10 de transformação da paisagem da

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Estas fases são: 1ª ) 1554: fundação de São Paulo; 2ª) 1554-1640: caracteriza-se pela consolidação da vila; 3ª) 1640-1765: vila é elevada à capital da Capitania e consolida-se como entreposto comercial e centro de convergência

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metrópole de São Paulo, destacando o processo de verticalização da cidade. Para a autora, nestas mudanças estão imbricadas as múltiplas formas do capital (fundiário, produtivo, imobiliário e financeiro).

Dentro dos grandes momentos territoriais da metrópole, o Brás e o Bom Retiro apresentam algumas especificidades, por isso identificamos alguns períodos significativos para a

vida de relações desses bairros11: período dos “bairros das chácaras” (1850 a 1889) –

predomínio das chácaras e de uma vida marcada por elementos rurais; período “dos bairros

operários” (1889-1930) – a industrialização (com base na indústria, alimentos, bebidas, móveis,

artigos de vidro e, sobretudo têxtil) e imigração consolidam o Brás e o Bom Retiro (entre outros) como bairros industriais e de residência de operários; período da “decadência industrial” dos

bairros (de 1930 a 1950) – migração das indústrias para outros bairros e formação da

especialização produtiva comercial em atividades de confecções; período da consolidação da

especialização no circuito espacial de produção de confecções (1950 a 1980) – trazidas por

imigrantes libaneses e judeus, as atividades de fabricação e comércio de vestuário foi reforçada pela forte migração dos nordestinos, em seguida há a ascensão dos imigrantes coreanos, estes assumem a lógica do período da globalização que se tornará dominante posteriormente – e

período da reorganização do circuito espacial de confecções (1980/90 aos dias atuais) – os

coreanos assumem a especialização dos bairros, tanto na produção, quanto na comercialização das confecções. A partir da década de 1990, os elementos da globalização também são incorporados no processo produtivo das empresas do circuito superior de confecção, reverberando nas atividades do circuito inferior. A ascensão da imigração indocumentada e mesmo documentada de bolivianos compõe parte desse novo período.

e irradiação de caminhos; 4ª) 1765-1840: reforça o seu papel de centro comercial, agregando o papel de centro econômico e cultural; 5ª) 1840-1889: esboça sua dinâmica atual, apresenta intensa movimentação econômica (criação de bancos) e implantação de infraestrutura; 6ª) 1889-1916: intenso dinamismo urbano, a cidade consolida-se como centro comercial e industrial, representando 40% da produção nacional; 7ª) 1916-1945: intenso processo imigratório, torna-se o maior centro industrial da América do Sul, com intensa movimentação operária, crescimento das atividades de serviços e início do processo de verticalização; 8ª) 1945-1954: fase de enorme caos urbano, desenvolve-se os meios de comunicação e crescem o número de bancos, além do desenvolvimento industrial intensificar-se; 9ª) 1954-1964: expansão da periferia, além do déficit dos equipamentos urbanos; 10ª) 1964-1982: expansão horizontal e vertical da cidade, modernização da infraestrutura (água, esgoto, metrô, legislação urbana, planejamento urbano) e 11ª) 1982-atual: tentativas de resgate da dívida social, de redemocratização da gestão urbana (SOUZA, 1994).

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Essa periodização tem como base os trabalhos de Langenbuch (1971), Martin (1984), Martin e Frugóli Jr. (1992) e Andrade (1994).

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No período dos “bairros das chácaras” (1850 a 1889), o Brás mostrava um crescimento incipiente que perdurou até o fim do século XIX (Anexo II - Mapa 01). Caracterizava-se por elementos rurais e funções suburbanas. O nascimento do Brás como bairro individualizado é de difícil localização como afirma Martin (1984), apesar de controvérsias, o censo militar de 1765 apresenta o bairro com 14 unidades residenciais e 73 habitantes livres (Maria Luíza Marcílio 1974 apud Martin 1984). Lagenbuch (1971) assinala que em 1730 já havia se estabelecido nas margens da estrada para a Penha “o português José Brás”, que teria dado nome ao bairro, com casa de comércio e albergue. O Brás apresentava-se como um loteamento de tamanho intermediário, encontrava-se isolado do centro e constituia-se por chácaras. No entanto, Langenbuch (1971) aponta que o Brás organizava-se para atender à cidade, uma vez que além de chácaras residenciais (das classes abastadas e de ranchos não tão aristocráticos), ele fornecia frutas ao mercado. Dispunha também de boa infraestrutura para os “pousos de tropas”. O bairro era ponto de articulação entre as tropas de mulas que circulavam entre o Rio de Janeiro, São Paulo e São Caetano do Sul. O fato de ser área de passagem dos tropeiros, surgiram ao longo da estrada da Penha atividades de fabricação de arreios, cangalhas e estribos.

Resguardadas as especificidades, o Bom Retiro também se caracteriza por ser um bairro de chácaras até pelo menos 1865. Daí em diante, entramos na fase denominada por Souza (1994) como “metrópole prenunciada”, que na verdade marca a fase de transição dos padrões para as novas técnicas, das quais a ferrovia será a mais proeminente porque impôs uma nova vida de relações à cidade e aos bairros próximos ao centro em expansão. A “metrópole prenunciada” caracteriza-se pela implantação maciça de infraestruturas e pela ocorrência de grandes loteamentos nas áreas periféricas, dentre as quais podemos citar os empreendimentos Manfred Meyer (Bom Retiro), Victor Nothmann e Frederick Glette (Campos Elísios) e o Barão de Mauá (imediações ao sul das estações Sorocabana e da Luz) (EVASO, 2003).

No período de formação dos “bairros operários” (1889-1930) (Anexo II - Mapa 02 e Mapa 03), o Brás e o Bom Retiro apresentam uma enorme efervescência econômica, cultural e política. As obras de circulação e de alguns melhoramentos urbanos chegam aos bairros operários. No Bom Retiro é implantada a interligação das ruas João Teodoro, Ribeira de Lima e Helvetia facilitando o acesso as estações Luz e Brás. Os investimentos nas vias de circulação no bairro indicavam as necessidades da crescente população residente e das indústrias. Das 47 linhas de bondes elétricos as existentes em São Paulo, 11 passavam pelo Bom Retiro em 1914. Até essa

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data, o bairro estava conectado ao Cambuci, ao Brás, ao Pari, à Santa Cecília, à Ponte Grande, à Vila Mariana, à Liberdade, aos Campos Elíseos e Santana, além de duas linhas que o ligavam ao centro (EVASO, 2003).

O adensamento dos sistemas de transporte, juntamente com a implantação da primeira Hospedaria de Imigrantes na rua José Paulino (que funcionou entre 1882 até 1887 no bairro) condicionaram a concentração da população, das atividades industriais e comerciais neste área (ANDRADE, 1994). A associação da ferrovia, da Hospedaria dos imigrantes, da imigração e da industrialização tornou o Bom Retiro um bairro com centralidade proeminente. Os imigrantes que não eram absorvidos rapidamente pelas indústrias em expansão ou pelas fazendas de café, fixavam residência nas proximidades e surgia também a característica comercial do bairro, fruto da própria necessidade do grande contingente populacional que passa morar nesta área. Trata-se de um bairro operário com crescimento das relações comerciais.

A Hospedaria dos Imigrantes foi transferida para o Brás em 1887, no entanto, o dinamismo do Bom Retiro não foi totalmente abalado, pois os imigrantes recém chegados a São Paulo eram obrigados a passarem pelo Desinfectório Central, que permaneceu no Bom Retiro, para serem aceitos na hospedaria do Brás. Dessa maneira, o comércio local seria pouco afetado, uma vez que ainda servia como alternativa de moradia e mesmo de trabalho para os que chegavam (EVASO, 2003).

O Brás passa por caminho semelhante ao do Bom Retiro, porém o caráter político e cultural do bairro na cidade foi mais acentuado. A forte industrialização de São Paulo tem no

Brás um dos seus principais abrigos, torna o conhecido como “bairro operário” 12 de São Paulo

(MARTIN, 1984). Durante o fim do século XIX e início do século XX, a indústria esteve subordinada ao capital cafeeiro e, a partir de então, houve um elemento fundamental na mudança do bairro, a figura do imigrante. Como afirma Martin (1984), o imigrante oferecia mão de obra para o café (colonos) e operários à indústria. Conectados a esses processos estão materialidades importantes que condicionaram parte desses fenômenos como a presença no bairro do entroncamento de duas importantes ferrovias do país: a D. Pedro II e a São Paulo Railway (São Paulo – S.P.R). Além disso, inaugurada em 1887, a nova Hospedaria dos Imigrantes viria a ser uma infraestrutura fundamental para o Brás e para a cidade. Abrigava os imigrantes que chegavam a Santos e eram transferidos para São Paulo até serem encaminhados para as fazendas.

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Martin (1984) usa essa designação para sua periodização para o bairro do Brás, estendemos a denominação ao Bom Retiro, ainda que, comparativamente esse último tenha abrigado menos indústrias que o Brás.

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Após aquela construção, o Brás registrou um crescimento impressionante. De 1886 a 1890 passou de 5.998 habitantes para 16.807, isto é, o triplo em apenas 4 anos. Três anos mais tarde nova duplicação, chegando em 1893 a 32.387 moradores. Num período de 7 anos, um crescimento de nada menos que 6 vezes [...] o Brás estava conhecendo a sua primeira mudança estrutural, ao deixar de ser um subúrbio ruralizado, para tornar-se um verdadeiro bairro industrial (MARTIN, 1984, p. 66).

O Brás apresentou uma vida cultural intensa com bares, cafés e atividades teatrais. Muitos teatros surgiram no período dos quais destacamos o Teatro Colombo no Largo da Concórdia, inaugurado em 1908. Além do mais, foi palco das primeiras lutas da classe operária no Brasil. A primeira greve de operários fabril em São Paulo eclodiu na fábrica Sant’anna (indústria têxtil), que até 1910 foi a maior fábrica de São Paulo (MARTIN, 1984).

O Brás, Bom Retiro, Mooca, Belenzinho e Pari tornaram-se nessa época o berço da industrialização de São Paulo. O carro chefe das atividades nestes bairros foi a indústria têxtil. Andrade (1994) aponta que as fábricas de tecidos, de cerveja, de calçados, entre outros produtos de consumo, tinham a produção concentrada em algumas grandes empresas. Entretanto, pequenas indústrias e oficinas marcavam presença no bairro.

Entre o final do século XIX e início do século XX, as margens das ferrovias passariam a constituir os sítios mais procurados pelas indústrias para instalação de suas atividades. A ferrovia funcionou como instrumento de reorganização local e regional de São Paulo, substituindo o antigo sistema de muares e caminhos de tropas, juntamente com os serviços ligados a estas atividades. “Os ‘povoados-estação’ cresciam enquanto os aglomerados apartados as linhas, de um modo geral, estagnavam” (LANGENBUCH, 1971). Desta forma, o padrão de ocupação industrial pode ser explicado pelo par perfeito: ferrovia e indústria (Foto 1.1).

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FOTO 1.1: PRESENÇA DAS ANTIGAS INDÚSTRIAS ÀS MARGENS DA FERROVIA NA ESTAÇÃO DE METRÔ DO