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pesquisa dos movimentos sociais e educação no campo

3. Contribuições para uma abordagem multidimensional

3.3. Formas de sociabilidade

No campo da sociabilidade, as redes de movimentos sociais podem ser observadas a partir de dois tipos de relacionamentos principais:

Primeiro, através dos vínculos diretos estabelecidos entre atores, em seus co- tidianos, ao nível de suas comunidades, no espaço mais restrito das organizações coletivas específicas. Neste caso, trata-se de redes sociais personalizadas. Confor- me colocam Loiola e Moura (1996, p. 55), nesta situação, “a rede constitui-se por meio de interações que visam a comunicação, a troca e a ajuda mútua e emerge a partir de interesses compartilhados e de situações vivenciadas em agrupamentos locais – a vizinhança, a família, o parentesco, o local de trabalho, a vida profissio- nal etc”. Como exemplo, poderemos trazer as redes que se desenvolvem a partir da convivência e formas de sociabilidade que se desenvolvem no cotidiano dos acampamentos e assentamentos rurais.

Segundo, por meio de articulações políticas entre atores e organizações, em espaços definidos pela conflitualidade da ação coletiva, podendo, pois transcen- der os espaços de emergência da ação, onde os elos constroem-se em torno de identidades de caráter ideológico ou de identificações políticas ou culturais. Essa proposta de articulação em redes de movimentos parte do pressuposto ideoló- gico de que as relações na rede serão mais horizontais, a práticas políticas pouco formalizadas ou institucionalizadas. Entretanto, as pesquisas demonstram que de fato os conflitos e tensões entre atores de uma mesma rede também se fazem presentes nesse tipo de organizações da sociedade civil.

Além disso, as redes de movimentos podem se construir sobre o pano de fundo de múltiplas redes sociais primárias e redes submersas. Segundo Fischer e Carvalho (1993) a formação das redes associativistas locais (a politização) é perpassada pelos elos que se formam nas redes submersas (a cotidianidade) que lhe dão base, e transferem os conflitos desses espaços para as redes mais amplas. A pesquisa sobre as formas de sociabilidade nas redes deve, pois, compreender c.

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as seguintes categorias analíticas, dentre outras: reciprocidade, solidariedade, es- tratégia e cognição.

A noção de redes sociais a partir da categoria da reciprocidade tem sido es- pecialmente útil aos estudos dirigidos às relações sociais do cotidiano local de comunidades camponesas. As redes de reciprocidade nas comunidades rurais são típicas das práticas de mutirão e de mútua ajuda, portanto, ocorrendo nas atividades produtivas e da reprodução familiar, como na saúde e nos cuidados com as pessoas, parentes, vizinhos e amigos. São úteis para essa análise as noções de Polanyi (1980) sobre uma economia que não se define apenas pelas motivações de mercado, mas também pelo contexto da vida social, onde as relações de “reci- procidade, redistribuição e troca”, podem ser constitutivas da reprodução social do grupo; e as de Mauss e seus seguidores (…), sobre a teoria da dádiva social, baseada nos princípios de “dar, receber e retribuir”, típica das trocas de favores, dias de trabalho e alimentos nas comunidades rurais.

A categoria da solidariedade tem sido útil para a análise de ações do volunta- riado e das redes da economia solidária, como, por exemplo, foi empregada na pesquisa de Mance (2000). Segundo o autor, quando as redes de solidariedade constituem-se num movimento social, poderão vir a extrapolar os limites locais, regionais, atingindo escalas nacionais ou internacionais, como vem ocorrendo com as redes de economia solidária, as quais têm ampliado seus espaços de atu- ação na esfera pública:

“A agregação de redes locais em redes regionais, redes internacionais e, por fim, em uma rede mundial, passará a fortalecer a democracia em todas essas esferas; as Redes de Colaboração Solidária terão um poder de alcance cada vez maior, podendo interferir democraticamente nas políticas públicas nesses diversos níveis.” (id. ibid, p. 40).

A dimensão estratégica das redes de ações coletivas tem sido empregada, so- bretudo, para o entendimento das dinâmicas políticas dos movimentos sociais e das parcerias políticas ocorridas nas esferas públicas das mais locais às mais globais. A idéia de rede assume freqüentemente um caráter propositivo nos movimentos sociais, isto é, a rede como forma organizacional e estratégia de ação que permitiria aos movimentos sociais desenvolverem relações mais ho- rizontalizadas, menos centralizadas e, portanto, mais democráticas. Portanto, desempenhariam um papel estratégico, como elemento organizativo, articulador, informativo e de empoderamento de coletivos e de movimentos sociais. As re- des, como estratégia de mobilização da sociedade civil, são formas de expressão simbólica, de visibilidade pública, e pedagógica para os sujeitos participantes como ocorre, por exemplo, nos fóruns sociais mundiais e nas grandes marchas nacionais, como a marcha pela Reforma Agrária e outras. No Brasil têm-se como

exemplos significativos: redes estratégicas de denúncias (as grandes marchas, Gri- to dos Excluídos etc.); redes de estratégias de desobediência civil (acampamentos dos Sem-Terra e dos Sem-Teto); redes de combate à exclusão (Ação da Cidadania, Economia Solidária etc.); redes de negociação na esfera pública (conselhos setoriais, conferências nacionais, dentre outras).

As redes apresentam também uma dimensão cognitiva, que merece ser inves- tigada, especialmente quando se busca entender o sentido das transformações sociais encaminhadas pelas redes de movimentos sociais. Os movimentos con- temporâneos vêem construindo novas narrativas para a compreensão da com- plexidade na sociedade globalizada e da informação, das quais se podem destacar quatro, nesta nova situação sistêmica:

desfundamentalização: confrontando-se com a noção das “grandes narrativas” do marxismo, que continha a idéia de existência de um sentido subjacente à história, segundo o qual há um rumo previsto para as lutas de transformação social, a nar- rativa das redes concebe os movimentos como coletivos múltiplos, construídos em torno de projetos alternativos (da reforma agrária, do ecologismo, de direitos humanos, dentre outros); estes podem servir de pontes de comunicação e de di- fusão de novos códigos culturais desenvolvidos por estas redes, para outras redes na sociedade, opondo-se aos códigos das redes dominantes: nacionais, territoriais e/ou comunidades étnicas ou religiosas fundamentalistas (cf. Castells, 2000);

descentramento: as “grandes narrativas” privilegiavam um sujeito da transformação social (especialmente a classe). As novas narrativas das redes de movimentos sociais têm buscado no pensamento desconstrutivista elementos cognitivos que concebem o sujeito a partir de suas múltiplas identidades (além da classe, o gênero, a etnia, a cultura regional etc.), e a transformação como resultado da articulação discursiva e da prática de variados atores coletivos (cf. Mouffe, 1996), como se observa nos Fóruns Sociais Mundiais e nas Grandes Marchas nacionais e mun- diais, dentre outras formas de mobilizações das redes de movimentos;

dos essencialismos rumo ao interculturalismo: se as “grandes narrativas” fortaleciam a noção de essencialismos coletivistas (dicotomização das classes), as pequenas narrativas dos novos movimentos sociais, das décadas de 1970-1990 contribuíram, muitas vezes, para um essencialismo das diferenças (como em algumas aborda- gens do feminismo e ecologismo radicais). A questão que tem se colocado para os atores das redes de movimentos sociais na contemporaneidade é de como trans- cender as fragmentações dos novos movimentos sociais sem cair nas tentações de novos unitarismos totalitários. Não se trata, portanto, de anular as diferenças, mas por meio da dialógica realizar o reconhecimento do outro, elevando o outro

5 Vide maiores desdobramentos em Scherer-Warren & Rossiaud, 2000; 200 e no dossiê da Revista Política & Sociedade, n. 5, 2004.  Já descritas em maiores detalhes em trabalho anterior, Scherer-Warren, 2002. a. b. c.

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da condição de objeto para a condição de sujeito e construindo a solidariedade, uma vez que esta só existe a partir das diferenças;

da separação entre teoria e prática ao engajamento dialógico na rede: neste nível, preci- sa-se examinar como, através de práticas emancipatórias ligadas em redes, tem-se ou não trabalhado a relação entre conhecimento-reconhecimento-práxis política. Trata-se também de se repensar as interações e articulações necessárias entre

academia (locus privilegiado da produção intelectual), ONGs e entidades de apoio (agentes relevantes da mediação entre pensar e agir) e militância de base (sujeitos do ativismo e da participação cidadã), os quais deveriam participar de um pro- cesso dialógico de construção cognitiva na rede. Isso nos remete ao último ponto desta exposição, de como pensar os processos de aprendizado no campo a partir de um trabalho colaborativo entre academia (especialmente a pesquisa social aplicada), entidades de mediação (ONGs, pastorais, escolas etc.) e movimentos ou organizações de base.

3.4. O aprendizado contextualizado ou a escola do sujeito-ator