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3 O FUNCIONAMENTO ENUNCIATIVO DOS FORMULÁRIOS

4. O FORMULÁRIO DO CENSO DEMOGRÁFICO

Nesta seção, apresentaremos a análise de designações funcionando especificamente nos formulários destinados à coleta do Censo Demográfico, por meio de seus questionários, assim como a descrição do Domínio Semântico de Determinação dessas designações, considerando os processos de articulação e reescrituração nos enunciados em que aparecem. Os textos selecionados para

esse movimento são o Questionário de Amostra6, aplicado pelo IBGE para a

contagem do Censo Demográfico de 2000, e o Manual do Recenseador, instrumento de apoio ao Recenseador com diretrizes para a coleta de informações. A escolha pelo Questionário de Amostra se deu por ser este um instrumento de coleta mais detalhado, aplicado a domicílios selecionados para a amostra. Nesse questionário constam 23 questões relacionadas às características do domicílio e 67 acerca dos moradores que, além das características básicas do domicílio e seus moradores, apresenta questões a respeito dos objetos presentes no domicílio (rádio, linha telefônica, microcomputador etc.) e cor/raça, religião, deficiência, migração, escolaridade, nupcialidade, trabalho, rendimento e fecundidade dos moradores. A seleção para a aplicação desse questionário precisa seguir rigorosamente a fração amostral de cada município, que é de 10% (usando-se um intervalo de 10 unidades domiciliares) ou 20% (usando-se o intervalo de 5 unidades). A indicação da fração amostral é entregue ao recenseador pelo supervisor. Por essa amostragem, segundo o IBGE, é possível estimar resultados para toda a população.

O Manual do Recenseador é, também de acordo com o IBGE, o instrumento que contém os conhecimentos indispensáveis à utilização de todos os outros instrumentos utilizados no trabalho do Censo Demográfico de 2000. Esse

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Além do Questionário de Amostra, há o Questionário Básico, utilizado para o registro de características de moradores e domicílios que não foram selecionados para a amostra. O Questionário Básico solicita informações básicas sobre os moradores, como, por exemplo, sexo, escolaridade e rendimento, e seus domicílios, a espécie, o tipo, a forma de tratamento de água e do lixo.

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manual é elaborado com base nas experiências dos censos anteriores e possui linguagem simples, apresentação detalhada dos processos de coleta, dos conceitos utilizados nas diferentes etapas, com exemplos práticos. É pelo Manual que o recenseador será capaz de realizar suas atividades.

Tanto o Questionário de Amostra quanto o Manual do Recenseador, o corpus desta pesquisa, são considerados como uma unidade com significação, constituída por enunciados. São justamente essas significações que nos interessam, o cruzamento de sentidos, os sentidos ressignificados, reformulados a partir desses textos, considerando-os como integrados por enunciados. Para isso, analisaremos os elementos linguísticos funcionando nos enunciados, a maneira como estabelecem relações semânticas, pelo processo de articulação que, segundo Guimarães (2007), não constituem apenas relações internas no enunciado, mas relação de contiguidade, e como essas expressões linguísticas reportam-se a outras, pelo processo de reescrituração, procedimento em que a enunciação rediz algo que já foi dito, significando diferentemente.

O “detalhamento” das questões do Questionário de Amostra permite realizar um recorte de questões que, por apresentarem diferentes designações, possibilitam compreender e interpretar os processos de identificação do sujeito recenseado a partir de um imaginário dado pelo IBGE, assim como o Manual do Recenseador, que é constitutivo da coleta do Censo Demográfico e direciona os gestos de interpretação do recenseador ao recenseado. Esse recorte faz com que as análises sejam realizadas a partir da seção “Características do Morador” e, dentre essas características, enunciados como “Qual a relação com a pessoa responsável pelo domicílio?”, “Qual a relação com a pessoa responsável pela família?”, “Qual a sua cor ou raça?”, “Qual a sua religião ou culto?”, “Tem alguma deficiência mental permanente que limite suas atividades habituais?”, “Como avalia a sua capacidade de enxergar, ouvir, caminhar/subir escadas?”, “Qual é (era) a natureza da última união?”, “Qual é o seu estado civil?”, “No período de 30 de junho a 29 de julho de 2000, tomou alguma providência para conseguir algum trabalho?”, “Possuía rendimentos em julho de 2000 provenientes de

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aposentadoria, pensão, mesada, doação, renda mínima, bolsa-escola, seguro- desemprego?”, “Quantos filhos nascidos vivos teve até 31 de julho de 2000?”, bem como as alternativas estabelecidas para essas questões.

Assim como já demonstramos na seção “O funcionamento enunciativo

dos formulários”, os formulários são significados a partir da representatividade do Locutor, afetado pela história, pela ideologia e pelo modo como as línguas são politicamente distribuídas nos espaços de enunciação. Por isso, considerando um espaço de enunciação específico, em que o Questionário Censitário se dá, analisaremos a significação de algumas palavras e expressões, a partir da relação de determinação semântica que se constituem neste acontecimento enunciativo, um modo de verificar como as palavras integram os enunciados no formulário.

Antes de apresentarmos as análises, tomamos aqui a posição de Ducrot (1972), que considera que uma pergunta significa a obrigatoriedade que estabelece para o alocutário em dar uma resposta, o que não garante que ele irá respondê-la. Mas, a não resposta significará indelicadeza, desobediência, afronta etc, refazendo a cena enunciativa específica. Quando consideramos os questionários censitários, a coleta de dados realizada pelo IBGE, podemos dizer que a não resposta significaria a desobediência, pois o locutor-entrevistador estabelece essa obrigação.

As primeiras questões analisadas evidenciam o funcionamento do processo de identificação do alocutorário-entrevistado com a pessoa referida pelo questionário como “responsável pelo domicílio”, são as questões 4.02 e 4.03. Segundo o Manual do Recenseador, a finalidade dessas questões é identificar os moradores do domicílio e os moradores componentes de cada família residente no domicílio. A primeira pessoa a ser registrada deve ser a pessoa responsável pelo domicílio e, logo após, os componentes da família. Vale ressaltar que os registros na folha de “LISTA DE MORADORES DO DOMICÍLIO EM 31 DE JULHO DE 2000” devem ser feitos obedecendo à ordem ali apresentada: cônjuge, companheiro(a), filho(a), enteado(a) etc, ou seja, a designação é apresentada antes pelo locutor-recenseador que pelo locutor-recenseado; o locutor-

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recenseador pergunta se há um cônjuge, um companheiro(a), filho(a), enteado(a), pai, mãe, sogro(a) etc. para, então, o locutor-recenseado dizer se há ou não. Não é o recenseado que vai “apresentando” as pessoas à sua ordem, mas descrevendo-as a partir da ordem apresentada pelo recenseador.

Vejamos as questões:

[F7] – Questionário Censo Demográfico 2000

Primeiro aspecto a considerar: pessoa reescritura morador, por sinonímia, morador é uma pessoa. Morador, assim como pessoa, é enumerado nos campos 4.02 e 4.03.

O funcionamento semântico das palavras que constituem as questões apresentadas nos permite dizer que pessoa responsável, outro parente, empregada(o) doméstico, parente do(a) empregado(a) doméstica, individual em domicílio coletivo estabelecem articulação por dependência, em que do morador, responsável, parente, doméstico(a), do empregado(a) doméstico(a), em domicílio coletivo vinculam-se e atribuem uma predicação a características do morador, constituindo uma única unidade em que Locutor relaciona elementos do enunciado. Já cônjuge, companheiro; filho, enteado; pai, mãe, sogro; neto, bisneto; irmão, irmã; agregado; pensionista estabelecem articulação por

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coordenação, também pelo agenciamento da enunciação, por uma operação do Locutor e, ainda, predicam relação com a pessoa responsável pela família.

Todas as alternativas postas para as questões 4.02 e 4.03 evidenciam a obrigação de escolher uma das alternativas como restrita e são reescrituras por definição disjuntiva de características do morador. Características do morador, nesse funcionamento, determina o sentido dos elementos enumerados.

Ainda analisando o processo designativo entre morador, pessoa responsável, cônjuge etc, podemos observar que 1ª pessoa, pessoa responsável, cônjuge, companheiro(a), filho(a), enteado(a), pai, mãe, sogro(a), neto(a), bisneto(a), irmão, irmã, outro parente, agregado, pensionista, empregado(a) doméstico(a), parente do empregado(a) doméstico(a), individual em domicílio coletivo, reescrevem por definição disjuntiva morador, determinando morador, por um efeito de enumeração. O que 1ª pessoa, pessoa responsável designa identifica o que morador designa, assim como cônjuge, companheiro(a), filho(a), enteado(a) e as outras designações que reescrevem morador.

Na medida em que pessoa responsável, cônjuge, companheiro(a), filho(a), enteado(a), pai, mãe, sogro(a), neto(a), bisneto(a), irmão, irmã, outro parente, agregado, pensionista, empregado(a) doméstico(a), parente do empregado(a) doméstico(a), individual em domicílio coletivo, reescrevem morador, estabelecem uma identificação de morador, delimitando seus sentidos. Essas categorias aparecem como já significadas, já existentes materialmente que, apenas, formalizam-se pelas questões. Não só o alocutário deve responder à questão, como deve fazê-lo por uma escolha entre categorias pré-estabelecidas.

Se considerarmos o DSD dessa designação, representaríamos da seguinte maneira:

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Pessoa Cônjuge, Filho,

Responsável companheiro enteado

Pai, mãe, sogro Morador --- Pessoa Neto, bisneto

irmão, irmã outro agregado pensionista parente

[DSD-10] – Morador em [F7] – Questionário Censo Demográfico 2000

E assim acontece com as designações empregado(a) doméstico(a), parente do empregado(a) doméstico(a), individual em domicílio coletivo.

Por essa análise, podemos afirmar que o DSD de morador é o que morador designa e pessoa responsável, cônjuge, companheiro etc fazem parte dessa designação e, também, fazem parte do sentido de morador. Assim como a referência produzida por morador é o significado do DSD de morador, tal como apresentado no esquema anterior.

A cena enunciativa em que essas categorizações se dão recorta como memorável o mapeamento de moradores contados pelo Censo e que, por possibilitar a abrangência de respostas, pede uma demarcação, uma limitação de alternativas a serem respondidas. É esse passado tomado pelo acontecimento que apresenta as múltiplas possibilidades de relações com o morador responsável pelo domicílio e, por isso, exige o controle. Ao mesmo tempo, outros sentidos de morador são silenciados quando se cerceiam as alternativas possíveis para a resposta.

O processo de identificação que constitui o alocutário-entrevistado neste acontecimento delimita as possiblidades de “escolha” para marcar qual a relação dele com o responsável pelo domicílio, o que acontece com todas as

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questões neste formulário que apresentam alternativas. Poderíamos considerar, ainda, em relação ao processo de identificação dado por essas questões como aquele chamado por Castells (1999) como identidade legitimadora, produzido por instituições que trabalham com sujeitos estruturados e organizados.

Outro ponto interessante a ser pensado é a distinção entre responsável pelo domicílio e responsável pela família, apresentados nas questões 4.02 e 4.03, recortes [1] e [2]. Segundo o Manual do Recenseador (BRASIL, 2000, p. 51), família pode ser tanto a pessoa que morava sozinha na data de referência como pessoas ligadas por laços de parentescos ou por normas de convivência, observemos:

[1]

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[2]

Pela relação de determinação envolvida no funcionamento desses enunciados, temos o processo de reescrituração por definição que expande os sentidos de família,definindo-o; retomando o manual, produz uma predicação ao sentido de família. A definição se apresenta por uma enumeração disjuntiva que define o que é família para o IBGE, como se a definição de família apresentada, a partir dos itens enumerados, fosse exaustiva, ou seja, tudo o que se podia significar sobre família foi dito, efeito esse produzido pelo Locutor.

Se considerarmos que a definição produz uma identidade, trata-se de um processo de identificação que não se pode questionar, criar resistência. É por estarmos afetados pela diferença que é necessário “igualar” os sentidos de família, gerenciar a interpretação, tanto que família pode ser desde pessoas ligadas por laço de parentesco, as que vivem no mesmo domicílio sem laço de parentesco, os empregados em relação de subordinação e até mesmo a pessoa que mora sozinha. Esse movimento de cercear a interpretação é um efeito da relação termo e “realidade”, como se a linguagem fosse a representação da realidade e funcionasse de forma estável. Definir o que é família é, também, dizer o que não é família.

Afirmamos ainda que no recorte [1] família é a pessoa que morava sozinha, o conjunto de pessoas ligadas por um laço de parentesco ou de dependência doméstica e as pessoas ligadas por normas de convivência. É essa

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relação de definição, construída na enunciação, que constitui o DSD de família, que pode ser representado como:

o conjunto de pessoas

ligadas por um laço de

parentesco ou

dependência doméstica

a pessoa que as pessoas ligadas

morava sozinha família por normas de convivência

as pessoas que tenham

laços de parentesco ou

dependência doméstica

[DSD-11] – Família em [F7] – Questionário Censo Demográfico 2000

Família é determinado por pessoa que morava sozinha, o conjunto de pessoas ligadas por um laço de parentesco ou dependência doméstica, as pessoas ligadas por normas de convivência e as pessoas que tenham laços de parentesco ou dependência doméstica e a referência produzida por família é o que o DSD de família significa, com todas as suas determinações.

Como expansão à definição de família dada no recorte [1], o recorte [2] traz a definição de dependência doméstica e normas de convivência, antecipando possíveis dúvidas e confusões na aplicação desses conceitos, buscando, mais uma vez, cercear sentidos outros que possam ser produzidos. Essas definições apresentadas no recorte [2] também determinam família e passam a significar o que família significa e, também, a constituir a referência de família. Assim, pelas análises e interpretação do DSD de família, afirmamos que tanto os empregados domésticos e os agregados em relação ao responsável pelo domicílio quanto pessoas que residem no mesmo domicílio sem laços de parentescos constituem a

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identidade de família que neste enunciado específico faz identificar dessa maneira.

O Locutor que organiza e redige as explicações acerca das questões censitárias é afetado por um passado de enunciações, próprio do acontecimento, que faz significar família, dependência doméstica e normas de convivência, por exemplo, antecipando sentidos. O Enunciador dessa definição é universal, produz um dizer com efeito de verdade, livre do crivo de verdadeiro e falso. Nesse acontecimento, a constituição dessa temporalidade orienta uma interpretação e família, dependência doméstica e normas de convivência passam a significar a partir das explanações postas pelo Manual, constituindo, também, as referências de família, dependência doméstica e normas de convivência. É o funcionamento, no Manual, que significa o que é família.

Em trabalho anterior, analisando a questão 4.08, sobre raça e cor, afirmamos que dividir a população em categorias gera uma indistinção entre os nomes branca, preta, amarela, parda, indígena, que passam a se determinar mutuamente e são especificados pelos finitos nomes estabelecidos como respostas aceitáveis (COSTA, 2004). Aqui, ao pensarmos nos processos de identificação e na constituição da imagem de brasileiro, consideramos que o sujeito é tomado pela identidade que é dada pelo funcionamento do acontecimento e é construída por pontos de identificação, ou seja, o sujeito se identifica com essa ou aquela designação já dadas nas questões do Censo e, assim, vai se constituindo, ressignificando-se no/pelo formulário oficial do IBGE. No caso desta questão específica, é a evidência do sentido de raça, de cor e, por conseguinte, é a evidência da identidade.

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[F7] – Questionário Censo Demográfico 2000

se pensada a partir do DSD, teríamos a seguinte representação, já que cor ou raça é reescriturado por enumeração por branca, preta, amarela, parda, indígena:

preta amarela

cor

branca raça parda

indígena

[DSD-12] – Cor ou raça em [F7] – Questionário Censo Demográfico 2000

Ao analisarmos o DSD de Cor e raça, podemos observar que determinam branca, preta, amarela, parda, indígena, que passam a fazer parte da significação de cor e raça, assim como de sua referência. Há, nesta questão, outro ponto relevante, a unificação, por um efeito ideológico, de cor de pele e raça; coloca-se como correlatas coisas que são distintas: cor e raça. A enumeração de 1 a 5 apresentada se mostra como uma unidade de sentidos heterogêneos, é um efeito de homogeneidade naquilo que é heterogêneo.

O IBGE, por uma cena enunciativa específica, a partir de um locutor- redator, representado pelo Manual, o lugar legitimado que produz significação sobre as designações presentes no questionário, explica ao recenseador que deve

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ser considerada a opção que for declarada e, “caso a declaração não corresponda a uma das alternativas enunciadas no quesito, esclareça as opções para que a pessoa se classifique na que julgar mais adequada” (BRASIL, 2000, p. 99).

Os enunciados sobre cor ou raça se ressignificam pela cena enunciativa em que o locutor-recenseador toma para si as significações postas pelo Manual sobre cor e raça e interroga o locutor-recenseado, instaurando uma temporalidade em que se rememoram a cor da pele, caracterizando a população brasileira e estabelecendo o efeito imaginário da cor dos brasileiros recenseados. Essa cena específica é afetada por uma relação de categorias de identidade, em que é preciso que o locutor-recenseado, com suas marcas identitárias, produza enunciações com as quais se identifique (se classifique?, como diz o IBGE), a partir das alternativas pré-estabelecidas para que a sua resposta seja considerada pelo locutor-recenseador.

Há, ainda, uma regulação que faz com que dizeres que estejam além da ordem estabelecida pela questão sejam considerados de resistência, que irrompem com o já significado, desorganizando-o. É o IBGE, enquanto instituição do Estado, que legitima ou recusa as identidades, que delineia os processos de identificação a partir dessa legitimação ou recusa, legitima e recusa já pelas escolhas dos domicílios, pelas definições, pelas questões, pelas alternativas.

Outras enunciações que representam as formas de naturalização dos sentidos, causada pela ideologia, são as questões relacionadas à deficiência, física e mental, do morador. Segundo o Manual do Recenseador, a finalidade dessas questões é:

[3] conhecer o número de pessoas que se avaliam como portadoras das principais deficiências, assim como o grau e o tipo de sua deficiência, para o adequado planejamento de medidas que beneficiem esta parcela da população. (BRASIL, 2000, p. 100)

Nessa enunciação, a diretriz apresentada no recorte [6] faz funcionar um passado de significações em que o IBGE já delimita, já faz significar quais são as “principais” deficiências existentes que são as registradas pelo Censo

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Demográfico. Por conseguinte, essa cena específica, pelo presente do acontecimento, faz significar um memorável de que o “adequado” planejamento de medidas é para essas deficiências consideradas principais pelo órgão legitimado para o mapeamento da população.

Esse grupo de questões tem início com a questão 4.10:

[4]

em [F7] – Questionário Censo Demográfico 2000

Esta questão, diferentemente das outras analisadas, trabalha com a divisão binária sim/não, entre ser deficiente e ser normal, o que pode nos remeter aos estudos de Foucault (2008) acerca dos dispositivos de segurança, também relacionado às doenças na Idade Média. Para ele, o tipo de exclusão que se dava com os leprosos nessa época era, dentre outros aspectos, do tipo binário: os que eram e os que não eram leprosos. Aqui, nessa questão, as indicações feitas pela Manual do Recenseador ditam que não é para serem consideradas “as perturbações ou doenças mentais como autismo, neurose, esquizofrenia e psicose” e complementa “em geral, a deficiência mental se manifesta na infância ou até os 18 anos de idade” (BRASIL, 2000, p. 101). São deixadas de fora as doenças que, muitas vezes, impedem o convívio social, só se contam as doenças que permitem o sujeito “transitar” pela cidade, estar no social, é relação de exclusão que Foucault discute.

Analisando a cena enunciativa em que o acontecimento se dá, o presente recorta um memorável que faz significar que há uma demarcação até mesmo do início e término da manifestação da deficiência mental; esse acontecimento constitui o alocutário-entrevistado como lugar social do dizer, por uma cena enunciativa específica, que outorga autoridade a esse Locutor, fazendo com que, na mesma cena, ocupe também o lugar de locutor-porta-voz, aquele que

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responde por si e pelos outros moradores contados pelo Censo. É preciso que esse locutor-entrevistado-porta-voz se identifique (se avalie? como diz o IBGE) ou não portador de uma deficiência mental, assim como identifique os outros moradores do domicílio. Podemos afirmar, pelas análises, que o IBGE trabalha por exclusão de deficiência mental, apresenta apenas as que não devem ser consideradas como deficiência, mas, em nenhum momento do material, descreve quais seriam e como seriam essas deficiências.

Outro ponto relevante acerca do mapeamento das deficiências diz respeito às questões seguintes, 4.11, enxergar, 4.12, ouvir, e 4.13, caminhar. Vejamos os recortes:

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[F7] – Questionário Censo Demográfico 2000

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[F7] – Questionário Censo Demográfico 2000

[7]

[F7] – Questionário Censo Demográfico 2000

Essas questões permitem relacionar com outro exemplo apresentado por Foucault (1978) para discutir a segurança a partir das doenças, trata-se da

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peste, no final da idade Média, que tem um tratamento distinto dos leprosos. Nesse caso, havia um controle disciplinar, que ditava às pessoas quando sair, como e que horas, o que deveriam fazer, comer, com quem poderiam ter contato ou não, era a quarentena. Temos nessas questões a gradação, que, para regular,