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1 OS ESTUDOS DA SIGNIFICAÇÃO: A SEMÂNTICA

2 OS PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO, MEMÓRIA E CIDADE

2.1 MEMÓRIA COMO PRÁTICA ENUNCIATIVA

Neste trabalho, a memória não é considerada a partir do espaço de interpretação psicológica, como algo “já sabido”, como o lugar da evidência, o ancoradouro de sentidos, acessíveis a todos e retomados pelas reminiscências e, muito menos, temos acesso direto ao seu funcionamento. Para nós, a memória é recortada pela prática enunciativa, que se dá pela linguagem, pelos dizeres, sejam eles formulários que contam, mapeiam e descrevem uma nação, sejam eles “narrativas” históricas, legitimadas ou não, e, como tal, constitui-se, assim como todo ato de linguagem, a partir de disjunções, de conflitos e de polêmicas, que se materializam nos/pelos sentidos. O funcionamento da memória se dá por regularidades e deslocamentos, que a (re)constituem e a (re)organizam, (re)significando acontecimentos, a partir de outros construídos em determinadas práticas enunciativas.

Para sustentar nosso posicionamento, iniciamos por apresentar as reflexões de Achard (1999), para quem a materialidade da memória social é constituída pela própria estruturação do discurso. Para ele, cada nova ocorrência

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de uma unidade simbólica pressupõe, a partir de certas regularidades, novos contextos e, por conseguinte, outros sentidos, nem sempre prováveis historicamente. Essa regularidade perpassa pelo histórico e pelo linguístico, por uma relação de força sustentada pela forma, a partir de práticas que recaem sobre o reconhecimento do que é repetido, reconstituído pelas operações de paráfrase.

Mas, essa regularidade pode ser quebrada pelo acontecimento discursivo, como acrescenta Pêcheux (1999), produzindo outra série, deslocando e desregulando os implícitos associados ao sistema de regularização anterior. Para ele, a memória se torna legível a partir da materialidade discursiva:

Tocamos aqui um dos pontos de encontro com a questão da memória como estruturação de materialidade discursiva complexa, estendida em uma dialética da repetição e da regularização: a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem estabelecer os „implícitos‟ (quer dizer, mais tecnicamente, os pré- construídos, elementos citados e relatados, discursos-tranversos etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível (PÊCHEUX, 1999, p. 52).

Davallon (1999, p. 25) afirma que “para que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio da insignificância” e que, posteriormente, seja reconstruído a partir de dados e de noções comuns aos diferentes membros da sociedade. Para Davallon (1999, p. 26), quando „memorizado‟, o acontecimento poderá entrar na história e ultrapassar os limites físicos do grupo social que viveu esse acontecimento, podendo se tornar “elemento vivo de uma memória coletiva”.

Os questionários censitários e os distintos formulários que precisamos responder para os mais diferentes fins constituem uma memória coletiva do que é ser e como ser brasileiro, suas características físicas e sociais, suas ocupações, seus endereços físico e eletrônico, sua filiação etc. Todos esses dados, ao se tornarem arquivos inseridos em bancos de dados, constroem uma memória coletiva que se constitui a partir e pelo sujeito, por meio das informações respondidas nos formulários. Trata-se de um acontecimento que passa a fazer parte da história, produzindo os efeitos que se espera desse acontecimento,

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perpassado pelo direcionamento de políticas públicas nos mais diversos segmentos.

Apesar de Davallon considerar o acontecimento como algo que se dá em um determinado momento do tempo, concepção distinta da apresentada pela Semântica do Acontecimento, interessa-nos pensar, assim como para o autor, que o acontecimento se representa por meio de objetos culturais, os quais possibilitam um controle da memória social. Para discorrer acerca desse controle, o autor apresenta uma reflexão sobre a constituição da imagem, pois, para ele, “a imagem é um operador de memória social no seio de nossa cultura” (DAVALLON, 1999, p. 31) e o controle se torna visível pela imagem, a qual representa a realidade e, ao mesmo tempo, conserva a força das relações sociais. Vale ressaltar que a significação posta pela imagem não está pronta, mas aberta a interpretações várias, que assinalam um certo lugar do espectador:

Com efeito, se a imagem define posições de leitor abstrato que o espectador concreto é convidado a vir ocupar a fim de poder dar sentido ao que ele tem sob os olhos, isso vai permitir criar, de uma certa maneira, uma comunidade – um acordo – de olhares: tudo se passa então como se a imagem colocasse no horizonte de sua percepção a presença de outros espectadores possíveis tendo o mesmo ponto de vista (DAVALLON, 1999, p. 31).

Pêcheux (1999), a partir das reflexões sobre imagem e memória apresentadas por Davallon e compartilhando da concepção de que a imagem é um operador de memória social, acrescenta que a imagem mostra como o funcionamento da memória se dá, comportando um programa de leitura, um percurso inscrito discursivamente em outro lugar. Há um jogo de força na memória, que pretende conservar a regularização dos implícitos e, ao mesmo tempo, „desregulariza‟ e refaz a rede de implícitos. O autor acrescenta, ainda, que a imagem, por ser atravessada e constituída pelo discurso, é opaca e muda.

A memória, para Orlandi (1999, p. 59) mostra a relação do sujeito e do modo como ele se subjetiva na história, que “a memória é feita de esquecimentos, de silêncios. De sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silêncios e de

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silenciamentos”. Há sentidos silenciados, apagados, deixados de fora do discurso, deslocados da memória, os quais deixam de ter significado, sem apagar por completo seus indícios.

O silenciamento produzido pelos dizeres e que constitui a memória merece um olhar atento neste trabalho, principalmente se considerarmos que a descrição presente em determinadas questões que integram os questionários, sobretudo no Censo Demográfico, marcadas pelas alternativas pré-escolhidas, evidencia esse funcionamento do silêncio.

Esse apagamento de sentidos dado pelo silêncio, sobretudo se pensarmos os formulários, trabalha com a ilusão referencial que nos faz acreditar que há uma relação direta e natural entre a palavra e a coisa. É o funcionamento do esquecimento número dois apresentado por Pêcheux (1997a), que se materializa pelo cerceamento produzido pelas questões presentes nos formulários, desconsiderando a incompletude do dizer e deixando escapar a sua heterogeneidade.

O silêncio é tratado de modo específico por Orlandi (1997, p. 29).

Segundo ela, “quando o homem, em sua história, percebeu o silêncio como

significação, criou a linguagem para retê-lo”. Para ela, a significação não se desenvolve numa linha reta; os sentidos são dispersos, se desenvolvem em todas as direções, por diferentes matérias e uma delas é o silêncio. O silêncio significa de modo contínuo, absoluto e a incompletude é fundamental no dizer, pois é ela que produz a possibilidade do múltiplo, base da polissemia. Quanto mais falta, mais silêncio se instala, mais possibilidade de sentidos se apresenta. Todo processo de significação traz uma relação necessária ao silêncio e ao dizer, estamos não dizendo „outros‟ sentidos, é o que a autora chama de silêncio constitutivo, que produz um recorte necessário no sentido. Dizer e silenciar andam juntos, tanto que o silêncio recorta o dizer.

Segundo Orlandi (1997), ao dizer algo, apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada; produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz. Toda denominação

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apaga necessariamente outros sentidos possíveis – o dizer e o silenciamento são

inseparáveis (contradição inscrita na própria palavra). Ainda segundo a autora, entre o dizer e o não-dito há um espaço de interpretação, que não é fechado; é o lugar do equívoco, do deslocamento, do debate, do possível. A relação do sujeito com sua própria história é silenciosa porque ele sempre se dá nos limites da significação „outra‟.

Para nós, os sentidos trabalham sob efeitos de memória, que sustentam todo dizer e possibilitam a construção de sentidos múltiplos na enunciação. Por conseguinte, podemos afirmar que o sentido se dá por lugares já inaugurados, engendrados por uma teia de memória, constituída por tudo o que é significado antes do nosso dizer, que vem à tona para (re)significar-se nele e continuar (re)significando em dizeres outros.

Considerando que a memória é histórica, operada por imagens que se materializam pelo simbólico, no funcionamento enunciativo, e funciona pelo esquecimento (não apagando, mas deslocando), conforme os autores apresentados, podemos afirmar que os processos de identificação também são históricos, mesmo perpassando por identidades individuais ou coletivas. Isso não pressupõe uma unidade de fato, pois se consideramos que a identidade se formula pelo social, pela história e pelo político, numa relação simbólica com a memória, pensamos que há um conflito instaurado em todo processo de identificação. É com os sentidos que nos identificamos; por isso afirmamos que não há nada já estabelecido ou fixo na construção das identidades.