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Fragmentação e descontinuidade

2 CONDIÇÃO PÓS-MODERNA E FIM DA MODERNIDADE: O ITINERÁRIO

2.6 Fragmentação e descontinuidade

Com o propósito de avançarmos no raciocínio e buscar compreender o modo como Vattimo interpreta a modernidade e a pós-modernidade, o alcance e chegada de sua interpretação, cremos ser proveitoso para este estudo a referência que faz Thomas G. Guarino113: “Se o ‘moderno’ colocou seus esforços num pronunciado acento da

homogeneidade do pensamento, cultura e prática, a resposta pós-moderna tem sido a de celebrar a descontinuidade e o pluralismo”114. O que nos faz compreender que a pós-

modernidade se utiliza das “dimensões essenciais da vida histórica atual, como as nossas interações em determinadas sociedades, culturas e práticas”115, enquanto o moderno situa sua

compreensão do homem naqueles termos de fundacionalismo. Enquanto a experiência pós- moderna é fragmentada, pluralista e múltipla, a modernidade, com sua narrativa coerente, é (pretende ser) unificada. A modernidade enxerga a história como que em movimento direcional partindo de uma origem em direção a uma progressão lógica.

E é esta a tese que vertebra o pensamento moderno na tradição filosófica ocidental: a ideia de progresso, a defesa da história do humano, do sujeito e da história em geral. Assim, pois, conforme tal concepção existiria um fio condutor, uma linha sobre a qual seguir avançando sempre adiante, progressivamente, numa palavra, haveria um telos. Ideia que é possível ser observada contida em Martin Heidegger, de quem Vattimo é leitor e intérprete, tendo no filósofo alemão grande influência no seu mover filosófico:

Pois o ser do ente mostrou-se, desde o começo da filosofia, e neste próprio começo, como o fundamento (arché, aítion, princípio). Fundamento é aquilo de onde o ente

113 Professor de teologia sistemática na Seton Hall University (EUA). Achamos conveniente colocá-lo no rol das

fontes desta pesquisa porque, como ele mesmo define seu trabalho, situa-se “na fronteira entre a filosofia e a teologia”. Talvez um pouco do que faça o pesquisador que se dedica à leitura de Gianni Vattimo, que também trafega nestes limites, ao que o próprio Vattimo chama em certo contexto de “problemas de fronteira” (VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação, p. 9).

114 “If the ‘modern’ placed a pronounced stress on the homogeneity of thought, culture and practice, the

postmodern response has been to celebrate discontinuity and pluralismo” (GUARINO, Thomas G. Vattimo and

theology. London; New York: T & T Clark, 2009, p. 6. Tradução nossa).

115 “essential dimensions of actual historical life such as our embeddedness in determinate societies, cultures and

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como tal, em seu tornar-se, passar e permanecer, é aquilo que é e como é, enquanto cognoscível, manipulável e transformável116.

Ele postula que a história do ser humano na modernidade, portanto, a partir de uma posição metafísica, é entendida como a história de seu autoconvencimento da possibilidade de se alcançar um efetivo conhecimento da realidade tal como ela é. Partindo da ideia da categoria de “fundamento” (Grund), isto é, dos princípios constitutivos de todas as coisas, as arxai, a origem, onde a meta seria a consecução final de um absoluto, em que a história humana estaria inscrita e que se tem a pretensão de alcançar certo objetivo final.

Existiria, pois, uma natureza humana a estabelecer a constituição de uma identidade entre todos os indivíduos, de forma tal que todos possuem as mesmas capacidades, mesma razão, sensibilidade, interesses e assim por diante, independentemente de contextualizações espaço-temporais em que as diferentes e diversas existências estejam circunscritas. Uma vez que Vattimo tem em Heidegger um de seus principais marcos teóricos e que formam o seu pensamento e itinerário filosófico, acerca desta matéria aqui principiada, tomemos-lhe emprestada a palavra: “No sentido de seu raio ilimitado de ação todos os entes

se equivalem. (...). Dentro da totalidade do ente não há razão para se privilegiar este ente que

se chama homem e ao qual pertencemos por acaso”117.

Aos olhos de Vattimo, toda esta concepção programática do pensamento não tem mais sustentação na condição epocal em que estamos situados e que manifestam, ainda, uma situação de violência que se impõe como inaceitável para os dias atuais: o conhecimento como apropriação do objeto em sua verdade, aquilo que acontece sendo tido como algo natural e necessário. Ele afirma que o pensamento moderno ocidental118 assumiu como traço

fundamental esta característica de uma história universal e unicultural, portanto, único cânon histórico-narrativo válido. É este “excesso de consciência histórica”119 que, segundo Vattimo,

enfraquece a personalidade moderna.

Neste cenário em que está inserida a existência pós-moderna propalada por Vattimo, as condições que agora definem o humano na sociedade são totalmente novas e diferentes daquelas expostas pela modernidade, ainda que se reconheça, quando em vez, devedora da própria modernidade. Justamente por isso, como visto, Vattimo não fala em uma

116 HEIDEGGER, Martin. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento, p. 66.

117 HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica [1953]. Trad. br. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro:

Tempo Brasileiro, 1969 (Biblioteca tempo universitário, v. 1), p. 35. Grifo nosso.

118 Vale ressaltar que Vattimo refere-se a Ocidente equivalendo-o à Europa e vice-versa.

119 VATTIMO, Gianni. Introdução a Nietzsche [1985]. Trad. port. António Guerreiro, Lisboa: Presença, 1990,

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“superação” ou “ultrapassamento” da metafísica (Überwindung) senão que uma Verwindung, indicando que ela pode apenas ser aceita, distorcida120. Dito de outro modo, aquilo que

chamamos de pós-moderno ou contemporâneo indica um tipo de pensamento que pensa o mundo de forma simultânea e não mais como sucessão, “ultrapassamento”. Esta forma de racionalidade já não mais pode ser considerada operante. Caberia aqui a elucidação que faz Santiago Zabala, aluno e grande referência intérprete de Vattimo:

Enquanto “Überwindung” refere-se a um abandono completo do problema, a “Verwindung”, em vez disso, alude à forma como se supera uma grande decepção não por esquecimento, mas ter chegado a um acordo com ela, ou, como disse Heidegger, “o que acontece quando, no domínio do humano, trabalha-se através do sofrimento ou da dor”121.

Temos que o pensamento vattimiano nos indica a sua reinterpretação-aceitação daquela concepção de Verwindung e An-denken promovida por Heidegger e iluminadas também pelo pensamento de Nietzsche. Vattimo vê nestes pensadores, o itinerário e base teórica partir da qual pode expor a “sua” pós-modernidade.

Pós-moderno, podemos traduzir, é o que mantém com o moderno um vínculo

verwindend: que o aceita e o recupera, trazendo em si mesmo as marcas, como de

uma doença da qual continuamos a estar convalescentes, e em que ainda continua, mas distorcendo-a122.

Com isto, Vattimo intenta demonstrar a relação sinonímica entre modernidade e metafísica, e a partir dela conceber o que foi chamado de “a” história. Já a metafísica, esta será percebida como a época do pensamento onde o ser se apresenta como “forte”, como fundamento – a “história do ser”, para seguir as pegadas do pensamento de Heidegger: “A metafísica é, pois, história do ser e, ao mesmo tempo (posto que o sentido da definição é idêntico), nossa história”123.

120 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso [2002]. Trad. br. Cynthia

Marques, Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 148.

121 “While “Überwindung” refers to a complete abandonment of the problem, “Verwindung” instead alludes to

the way one surpasses a major disappointment not by forgetting it but by coming to terms with it or, as Heidegger said, “what happens when, in the human realm, one works through grief or pain” (ZABALA, Santiago. Being is conversation: remains, weak thougth, and hermeneutics. Aurora, Barcelona, n. 12, p. 93-104, nov. 2011, p. 98. Tradução nossa). De modo semelhante, este autor também trata em: ZABALA, Santiago. The

remains of being: hermeneutic ontology after metaphysics. New York: Columbia University Press, 2009, p. 5).

122 “Postmoderno, possiamo tradurre, è ciò que há con il moderno un rapporto verwindend: che lo accetta e

riprende, portandone in sé le trace, come di una malattia della quale continuiamo ad esssere convalescente, e che lo prosegue, ma distorcendolo” (VATTIMO, Gianni. Etica dell´interpretazione, p. 19. Tradução nossa).

123 VATTIMO, Gianni. Introducción a Heidegger [1985]. Trad. esp. Alfredo Báez, Barcelona: Gedisa, 1986

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