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2 CONDIÇÃO PÓS-MODERNA E FIM DA MODERNIDADE: O ITINERÁRIO

3.4 O retorno da questão religiosa: algumas causas

3.4.2 Motivos de ordem cultural

Neste segundo momento, podemos inferir que o retorno à religião em tempos pós- modernos relaciona-se, também, com elementos de caráter cultural. Com isso intentamos

253 VATTIMO, Gianni. Not being God, p. 161.

254 Hoje reconhecidamente um dos mais importantes homens da cultura italiana contemporânea, professor de

estética e arquitetura em Milão, além de crítico de arte colaborando no jornal La Stampa.

255 No Brasil recebeu o título “Coisas ocultas desde a fundação do mundo” (Paz e Terra, 2009). 256 Cf. VATTIMO, Gianni. Not being God, pp. 149-151.

257 VATTIMO, Gianni. Not being God, pp. 149-151.

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dizer que esta atenção ao religioso deve-se ao fato de que, na sociedade atual, aparece como cada vez mais tangível a tomada de lugar que a religião vem ocupando em nossa sociedade contemporânea. Em particular, nos meios de comunicação e editorial. Veja-se a presença cada vez mais assídua de temas ou personagens de cariz religioso nestes espaços: desde entrevistas em programas de rádio, tv e internet, passando pelos canais confessionais, aos best-sellers de livros com este teor. É como se onde quer que nos encontremos ou que estejamos lendo ou assistindo, “Deus ainda está ao nosso redor...”259.

Partilhando deste sentimento-percepção-reflexão, Vicente de Paula Ferreira no seu livro Cristianismo não religioso no pensamento de Gianni Vattimo (2015) escreve:

[Vattimo] considera que há, desde as grandes peregrinações para estar com o papa até os movimentos new age e telepregadores, um considerável retorno de cenários religiosos. Paradoxalmente entende que, ao mesmo tempo em que cresce o interesse por temas religiosos, diminui a adesão de grandes massas a Igrejas e aos seus ensinamentos práticos dogmáticos260.

Assim, este giro religioso vem assumindo-se como um dos maiores desafios que pensamento filosófico contemporâneo enfrenta. As religiões261 aparecem sob este prisma

como uma instância dadora de sentido e significado existenciais no meio do caos de nossa sociedade de mercado, materializadora da felicidade e orientada ao consumo – cada vez mais – desenfreado.

Seria, em certo sentido, este segundo momento do retorno como uma espécie de “concepção funcionalista” da religião. A religião que aparece neste cenário desencantado e ausente de fundamentos seguros existenciais como um tipo de “catalizador emocional”. Esta postura pode ser severamente criticada, mas é ainda apenas um “lampejar” daquilo a que Vattimo pretende nos conduzir e desejamos expor mais claramente a seguir. Ou seja, a religião pós-moderna é ainda muito mais do que o simples conforto e agente tranquilizador262

– mesmo que também este aspecto se faça presente.

259 VATTIMO, Gianni. O futuro da religião, p. 110.

260 FERREIRA, Vicente de Paula. Cristianismo não religioso no pensamento de Gianni Vattimo, p. 113. Em

Vattimo, mesmo princípio encontra-se em VATTIMO, Gianni. Igrejas sem religião, religião sem igrejas. Interações, Uberlândia, v. 5, n. 7, p. 165-172, jan./jun. 2010, p. 166.

261 Ainda que Vattimo aborde maiormente o cristianismo – e o cristianismo católico –, sua reflexão não está

encerrada a apenas esta realidade, pois o fenômeno religioso retornado também tem sido perceptível em outras denominações e inspirações religiosas. Sem avançar muito neste tópico, poderíamos apontar o renovado interesse, em particular, de um não desprezível número de jovens, pelo islamismo e, muitas vezes, por aquele em sua vertente mais radical-extremista (vide os alistamentos deles junto ao estado islâmico noticiados constantemente). O mesmo se nota no tocante da busca pelas raízes africanas, judaicas e assim por diante. Por certo, cada um em sua contextualização e proporção.

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Por outro lado, a religião ainda é valorada pelo reconhecimento de seu elemento comunitário e social, conferindo um caráter identitário localmente situado. Este vácuo existencial e de sentido deixado pelo consumismo parece também cooperar para a recuperação de uma espiritualidade perdida, o que faz aproximar novamente as pessoas da religião, pelo menos da busca de algum conteúdo que forneça significado à sua existência.

Existe, ainda, um aspecto de ordem histórico-cultural que confere um tom “apocalítico” ao retorno e caracteriza esta sociedade contemporânea como marcada por um sério desencanto. Assim, tal retorno à religião também decorre, senão todo, pelo menos em parte, em razão da descrença e desencanto para com a ciência, ou seja, com o pensamento técnico-científico. Isto porque “o desencanto do mundo produziu também um radical desencanto da própria ideia de desencanto; ou, noutros termos, que a desmistificação acabou por voltar-se contra si própria, reconhecendo também como mito o ideal da liquidação do mito”263. Dizemos com isto que este “sentimento apocalíptico” pode ser percebido por meio

de outros riscos que têm assolado o mundo, por exemplo, os malefícios causados à ecologia, as delicadas questões referentes à manipulação genética, como também elementos de caráter existencial, isto é, a perda do sentido e significado da existência, caracterizado, entre outras coisas, por um consumismo cada vez mais desenfreado. Disto podemos argumentar que o retorno da religião pode acontecer, antes de qualquer coisa, também em virtude de uma experiência caracterizada pelo medo.

Poderíamos adicionar novos elementos como explicações para o reflorescimento do sagrado nos dias atuais e que têm chamado, assim, a filosofia novamente a um debate. Para além destas características “assombrosas”, teríamos, ainda, a dissolução dos sistemas de ciências que deveriam cumprir o papel de segurança, ou seja, de verdade em responder às questões postas pelo homem. Deveriam, porque, como Vattimo sustenta, também este sistema não respondeu às questões que cabiam a ele. O pensamento técnico-científico (Ge-stell), a sociedade da organização total, não foi capaz de suplantar totalmente a religião. Desse modo,

A queda dos interditos filosóficos contra a religião, já que é justamente disso que se trata, coincide com a dissolução dos grandes sistemas que acompanharam o desenvolvimento da ciência, da técnica e da organização social modernas; e, portanto, com o desaparecimento de qualquer fundacionalismo – em outras palavras, daquilo que a consciência comum parece buscar em sua volta à religião264.

263 VATTIMO, Gianni. Acreditar em acreditar, p. 18.

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Finalmente, parece evidente que as diversas religiões, mesmo em nossa época atual se apresentam gozando de “boa saúde”, a despeito de todo prognóstico e movimento contrário (leia-se racionalismo positivista, [mito do] cientificismo e afins). Este retorno, conforme juízo de Vattimo, não pode ser amparado sob nenhum conceito metafísico – como, segundo ele, diversas religiões ainda se autocompreendem –, quer dizer, como estruturas objetivas e verdadeiras que pretendem descrever a realidade de forma fiel. Vattimo reage em contra desta concepção de um tipo de volta à religião metafísica. Na realidade, quando ele trata do retorno, sua proposta está numa espécie de cristianismo enfraquecido (debole) e secularizado: “não pretendo de modo nenhum reencontrar o cristianismo reordenando a minha vida com base na moral católica oficial (...), não penso que se trate (...) de reencontrar as verdades da fé na sua literalidade (...)”265.