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Motivos de ordem filosófica

2 CONDIÇÃO PÓS-MODERNA E FIM DA MODERNIDADE: O ITINERÁRIO

3.4 O retorno da questão religiosa: algumas causas

3.4.3 Motivos de ordem filosófica

Por fim, para completar este percurso266 de compreensão das causas do retorno,

chegamos às razões filosóficas. Vattimo sustenta a posição de que o pensamento tardo- moderno precisa afastar-se do preconceito cientificista que proclama que, se algo não está amparado por um objeto de saber positivo, não é benemerente de crédito e atenção epistemológica, devendo estar situado fora do campo do saber. Tal argumentação assemelha- se, de certo modo, a também uma expressão de tipo metafísica.

É neste sentido que aparece o pensamento de Gianni Vattimo assumindo para si a tarefa de “transpassar” – distorcer (a), recuperar-se (da) – metafísica. Quando esta tarefa é realizada, outros modos de compreender e explicar a realidade podem ser recuperados. Entre estes saberes – amiúde considerados míticos – outrora postos de lado, está a religião. Esta também está engendrada (e engendra) no universo humano e não pode dele ser desconsiderada. Portanto, uma vez que a verdade não sustenta mais sua concepção partindo da perspectiva da representação e da objetividade (como pretendido pela lógica positivista), ela agora está aberta a outros modos de entendê-la. Com isso, um dos resultados possível é reassunção ou reabilitação de saberes prévia e anteriormente inabilitados.

Isto significa dizer que a filosofia, entre outras razões, não possui mais justificativas para o seu ateísmo, dado que a certeza da verdade que ela acreditava alcançar

265 VATTIMO, Gianni. Acreditar em acreditar, p. 72.

266 Possivelmente seja melhor, no lugar de “percurso”, chamar de “atalho”, visto que não pretendemos encerrar

o assunto nestas poucas linhas expostas, nem teríamos as condições necessárias para abarcar a totalidade da explicação.

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fora também refutada. Dessa forma, “perderam o valor todas as razões fortes para um ateísmo filosófico”267. Por isso, Vattimo põe em discussão este silêncio da filosofia sobre Deus –

próprio de muitas correntes filosóficas contemporâneas – afirmando ser tal posição apenas uma inércia por parte da filosofia e não, de fato, uma posição racional sustentada pela via da argumentabilidade.

O silêncio da filosofia sobre Deus parece ser hoje carente de razões filosoficamente relevantes. Em sua maioria os filósofos não falam de Deus, ou, antes, se consideram explicitamente ateus ou irreligiosos, por puro hábito, quase por uma espécie de inércia268.

Desse modo, “o renascimento da religião na cultura contemporânea não pode deixar de representar um problema para uma filosofia que se habituou a não mais considerar relevante a questão de Deus”269. Daí a filosofia, ora “emudecida” sobre esta perspectiva, está

como que instigada a voltar sua atenção uma vez mais para este fenômeno que, como vimos, Vattimo faz-nos reconhecer a sua centralidade, atualidade e premência. Sob esta perspectiva, se quiser estar atenta às razões da atualidade, a filosofia deverá, portanto, tomar ciência do renascimento da religião na consciência comum, e “aproximar-se” novamente de Deus para um debate.

Vattimo sustenta, ainda, outro motivo para tal silenciamento sobre Deus: a tecnologia. Para ele, “a tecnologia suaviza a existência de forma a tornar menos angustiante a pergunta sobre as últimas coisas”270. Nesse sentido, pode-se afirmar que o pensamento

moderno, técnico-científico, supre a necessidade de perguntas ulteriores, o que entendemos como uma caracterização de um pensamento de superficialidade, ou – para não parecer radical – ao menos imediatista. Vattimo demonstra, entretanto, um desencanto com a ciência e com a técnica271, que volta contra si mesma e reencontra-se com seu limite272: Deus, esta

“hipótese extrema demais”273. Destarte, entendemos que esse progresso tecnológico, de algum

modo, expressa uma forma de transição do mundo “real” para um mundo “virtual” e isto não deixa se apresentar como um tipo de processo de “espiritualização”274.

267 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade, p. 109. 268 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade, p. 109. 269 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade, p. 110. 270 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade, p. 113. 271 Cf. VATTIMO, Gianni. Acreditar em acreditar, p. 18. 272 Cf. VATTIMO, Gianni. Acreditar em acreditar, p. 12. 273 DERRIDA, Jacques; VATTIMO, Gianni. A religião, p. 93.

274 Cf. BORGHESI, Massimo. Secularización y nihilismo: cristianismo y cultura contemporánea [2005]. Trad.

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Ademais, tendo em vista que nem mais a modernidade se afirmou como verdadeira, no sentido de verdade absoluta e segura para a explicação do mundo e dos seus fenômenos, caindo esta também num processo de descrença, onde assiste-se agora ao “crepúsculo das grandes metanarrativas”275, podemos declarar que “hoje já não existem

razões filosóficas plausíveis e fortes para ser-se ateu, ou para recusar a religião”276. Ademais,

como Vattimo nos diz em Depois da Cristandade (2004):

Se Deus morreu, ou seja, se a filosofia tomou consciência de não postular, com absoluta certeza, um fundamento definitivo, então, também não existe mais a ‘necessidade’ de um ateísmo filosófico. Somente uma filosofia ‘absoluta’ pode se sentir autorizada a negar a experiência religiosa277.

Como nem a filosofia pode se arrogar absoluta, então o fiel pode voltar-se para a redescoberta da religião: desta vez, porém, não mais naquele sentido absoluto como da metafísica. Não se trata mais de um tipo de obediência cega à religião ou do medo do “fogo devorador”278, mas agora dotada de consciência e senso crítico, onde o praticante pode se

sentir livre para debater e questionar as razões de sua fé. Nesse sentido, o Deus que Nietzsche declara morto é o da metafísica (o Deus moral, Deus fundamento), pois não chega ele a negar a existência do divino. Se o fizesse, cairia nas mesmas teias das que estava por colocar em tela criticando.

Na esteira desta explanação, podemos voltar a pensar “licitamente” a religião. Não apenas esta, mas também voltam à berlinda da reflexão, por força desta hermenêutica niilista, os debates em torno da arte e do mito279. Tudo isso para dizermos e defendermos que a

religião não é mais um problema a ficar de fora da filosofia, já que “o ‘fim da modernidade’, ou, em todo o caso, a sua crise, trouxe também consigo a dissolução das principais teorias filosóficas que julgavam ter liquidado a religião”280. Com respeito a este discurso moderno de

275 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade, p. 109.

276 VATTIMO, Gianni. Acreditar em acreditar, p. 17. Em ideia semelhante, o filósofo declara: “Hoje não

existem razões filosóficas de peso para ser ateu ou para, em qualquer caso, abandonar a religião (VATTIMO, Gianni. Hermenéutica y experiencia religiosa después de la ontoteología, p. 44).

277 VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade, p. 12. Na esteira destas reflexões, Paolo Flores d´Arcais, em

diálogo com Gianni Vattimo e Michel Onfray, também defende que “A filosofia não assumiu o ateísmo como seu habitat ‘natural’” (D´ARCAIS, Paolo Flores; ONFRAY, Michel; VATTIMO, Gianni. Atei o credenti?, p. 3).

278 Cf. Deuteronômio 4, 24.

279 Não enveredaremos, por certo, na questão estética, embora Vattimo a ela também dedique esforço reflexivo,

mas, por não estar no escopo de nosso trabalho, achamos por bem meramente fazer menção sem, contudo, prosseguir nesta direção, optando por uma simples digressão.

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repulsa a religião, e uma vez que Vattimo também traz fortes influências do romantismo alemão, pensamos ser proveitoso encerrar com uma cita de Novalis:

O resultado do pensamento moderno foi chamado de filosofia e nela se reuniu tudo aquilo que se opunha ao antigo, especialmente cada ideia contrária à religião. A princípio, o particular ressentimento contra a fé católica transformou-se num ódio progressivo à Bíblia, ao credo cristão e, finalmente, estendeu-se para todas as religiões281.