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Freire e Bakhtin: leituras do mundo através das palavras

No documento Paulo Freire (páginas 142-145)

4.1 Freire e Bakhtin: tempos e espaços

4.1.2 Freire e Bakhtin: leituras do mundo através das palavras

Para Freire (2008, p. 11), “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura

daquele”. Sobre essa assertiva organizou sua proposta para o ensino e a aprendizagem da leitura, principalmente na fase inicial – a alfabetização.

Tal afirmação é seguida de outra que a traduz, revelando a concepção de

linguagem que emana da prática pedagógica de Freire: Linguagem e realidade se

prendem dinamicamente (2008, p. 11). E essa dinâmica entre ambas é estabelecida

pela palavra, material pelo qual a linguagem se realiza. Não a palavra oca,

classificada por ele como verbalismo, palavreria, mas a que porta notícias da vida

real. No dizer de Freire, é uma linguagem existencial, em que o ser humano traduz a

sua existência pela palavra.

Aos responsáveis pelo ensino, o acesso ao modo de vida dos alfabetizandos

seria a palavramundo; ou seja, os docentes fariam uma leitura do mundo dos

educandos a partir do levantamento vocabular. Tal investigação desvelaria aspectos relacionados às diversas instâncias de atuação: a família, a religião, o trabalho.

Traria também mais conteúdo emocional, bem como daria a perceber os ímpetos de

participação, manifestações estéticas da linguagem popular. Enfim, constituir-se-ia a

linguagem existencial de cuja ausência nas práticas educativas Freire se ressentia. As considerações de Freire acerca do lugar da linguagem nas relações humanas remetem às de Bakhtin, para quem, nas palavras de Fiorin (2005, p. 121),

linguagem é atividade, é consciência prática, plenamente dimensionada no social.

Nesta perspectiva da dimensão social da linguagem se conduziria todo o processo de organização do ensino, conforme o entendimento de Freire. Desde os primeiros passos do levantamento vocabular, deveriam ser promovidos encontros com sujeitos da comunidade, explicada a presença, esclarecidos os objetivos dos investigadores, bem como solicitada a colaboração na coleta de informações. A postura a ser assumida pelos “investigadores” seria a de olhar para o entorno como se fosse uma grande codificação viva, o que lhe permitiria depreender inúmeros temas, dos quais poderiam “saltar” inúmeras palavras para compor o acervo pretendido.

Ao inventário das palavras seguia-se a escolha das que de fato seriam utilizadas nas atividades de alfabetização; tratava-se de uma delimitação do contingente de palavras, denominada por Freire (2008) de Redução. Uma seleção vocabular que tomava como critérios: a riqueza fonêmica; as dificuldades fonéticas; o teor pragmático da palavra, a pluralidade de seu engajamento nas dimensões social, cultural e política de determinada realidade.

Os aspectos materiais da palavra não seriam preteridos, mas a eles se sobrepunham as impressões do mundo nela refletidos e por ela refratadas, as quais se configurariam em pistas das relações entre os sujeitos. Essas “impressões” trazidas pelas palavras norteariam a escolha de temas a serem representados – por linguagem não verbal – em situações existenciais dos sujeitos. Eram as Codificações, as quais funcionariam como referentes das palavras das quais emergiram. Então, palavra e referente, na ordem referente\palavra, seriam tomados para problematização, que consiste em refletir sobre um conteúdo resultante de um ato, ou sobre o próprio ato, para tomar atitudes com os demais sujeitos.

Os olhares seriam acrescidos de outras perspectivas, pontos de vista linguísticos, sociológicos, antropológicos, o que é imanente a uma situação gnosiológica, cuja organização deveria começar pelos conteúdos programáticos os quais conteriam os temas. Trata-se então de incluir no tratamento da linguagem o aspecto material da palavra; a exemplo de Bakhtin, a linguagem na perspectiva freireana tem as dimensões social e material, ou seja, atividade e sistema inter-relacionam-se.

Nessa perspectiva, o acervo vocabular, de que os sujeitos dispunham e dele lançavam mão no cotidiano, daria conta de expressar o sentido existencial; os falares típicos do povo. Este é outro ponto convergente com as reflexões de Bakhtin, para quem a palavra, material semiótico, signo por excelência, impregna e é

impregnada dos sentidos a ela atribuídos pelos sujeitos. É também o material

utilizado de forma privilegiada na interação da vida cotidiana, ao tempo em que é forjada no âmbito individual, é produto do consenso entre os sujeitos.

Os responsáveis pelo processo de alfabetização não poderiam incorrer no mesmo equívoco de que Freire se queixava: a falta de organicidade da educação com seu tempo – o que impedia o desenvolvimento dos sujeitos em dois aspectos: 1) na formação de disposições mentais críticas e permeáveis, condição para situar-se e agir efetivamente no contexto de crescente democratização cultural e política;

2) no da preparação técnica de nosso homem, necessária à inserção e à

participação no desenvolvimento econômico do país.

Dentre os dois pilares sobre os quais se assenta a proposta de Paulo Freire, a sobreposição do primeiro deles – a leitura do mundo, da realidade – ao segundo – leitura da palavra, pode ser fundamentada pela assertiva bakhtiniana que coloca a linguagem no devir de uma situação real e concreta, a qual, no dizer de

Brait (2005) aponta duas exigências para que a linguagem se constitua: a primeira: sua ocorrência em uma dada situação – e esta se compõe de elementos como os acontecimentos ao longo do tempo, que constituem a história, o tempo particular e o lugar de ocorrência do enunciado. A segunda: os envolvimentos entre os sujeitos, que seriam o tom emocional volitivo; aqui também se inclui o nível desses envolvimentos, que dão o tom do discurso.

Sendo a linguagem a dimensão verbal do comportamento humano, ela traduzia a ausência de integração do processo educativo com os interesses da atualidade brasileira contemporânea; a partir dessa constatação, a proposta de Freire lançava uma nova perspectiva para a organização da prática educacional. Essa preocupação de Freire (2001, p. 68) remete ao pensamento de Bakhtin (1997,

p. 182), para quem “toda a parte verbal de nosso comportamento (quer se trate de

linguagem exterior ou interior) não pode, em nenhum caso, ser atribuída a um sujeito

individual considerado isoladamente”.

De acordo com Dahlet (2005, p. 55), essa afirmação de Bakhtin permite

depreender o dialogismo como um posicionamento que articula outros três maiores,

os quais se referem à natureza do social: a intersubjetividade; à do signo: meio para a ação, e à do sujeito: o Outro, a alteridade.

O pedagogo brasileiro considerava: que a história iniciada com a colonização instaurou no país a inexperiência democrática; o tempo particular exigia posturas e atitudes distintas das construídas ao longo da história; o lugar de ocorrência do processo educacional deveria ser pensado como um país em desenvolvimento. Havia então as condições institucionais, mas faltavam as disposições mentais plásticas e permeáveis, características próprias de um discernimento em constante devir, o que Freire classificou como uma consciência transitivo-crítica, exigência para que o aspecto relacional – essência humana – se efetivasse. Por disposições mentais plásticas e permeáveis Freire queria dizer atitudes, posicionamentos críticos, abertos a outros que tenham a mesma transitividade crítica. Esse devir só é possível através das consciências.

No documento Paulo Freire (páginas 142-145)