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CAPÍTULO 1: A CONSTRUÇÃO DA FRONTEIRA PELOS SEUS AGENTES

1.2 A FRONTEIRA NA FORMAÇÃO DOS ESTADOS NACIONAIS A compreensão da ocupação, constituição e formação da fronteira

é indissociável da apreensão do processo e problemas decorrentes da independência e formação do Brasil e Argentina. Os eventos ocorridos nesse longo período histórico tiveram forte impacto na formação social da fronteira. O mesmo foi marcado pelas guerras de independência na Região Platina, pela independência do Brasil, e pelo processo de construção e afirmação dos estados nacionais nesse espaço. Inicia com a Revolução em Buenos Aires em 1810 e tem seu ponto culminante na Guerra contra o Paraguai (1865-1875).

No caso específico da Argentina, a construção do Estado-nacional passou por várias etapas: uma etapa de autonomia dos pueblos60 e

Estado-província, paralelamente com as tentativas centralizadoras de Buenos Aires (1810-1831); uma etapa de autonomia dos Estados- províncias e de frágeis alianças e pactos confederais (1831-1853); uma etapa de constitucionalização e tentativa de construir uma confederação mais estável (1853-1861); uma etapa de constitucionalização, criação e centralização do Estado-federal (1861-1893). No caso do Brasil houve uma precoce constitucionalização (1823), porém, outorgada pelo Imperador D. Pedro I, o que desagradou amplos setores gerando inúmeras revoltas de cunho autonomista, confederacionista e federalista como, por exemplo, a Revolução Farroupilha (1835-1845) no Rio Grande do Sul.

A crise da soberania espanhola, com a invasão napoleônica à Espanha (1806), abriu espaço para que os povos hispano-americanos reassumissem sua soberania. Segundo o professor Chiaramonte61, a Revolução deu lugar a que surgissem, no interior do Vice-Reinado do Prata, províncias soberanas (cidades principais e seus espaços urbanos e rurais) que, passaram a reclamar igualdade de direitos frente à antiga capital (Buenos Aires). Na região do Antigo Vice-Reinado do Prata, o Estado provincial foi o protagonista do processo de independência, pois antes de se configurar o Estado-nação, se organizaram as províncias-

60 “‘Pueblo’ significava vila, cidade e sua região rural de domínio que poderá constituir-se em

província-região, e adquirir o caráter soberano. Assim, a soberania dos ‘pueblos’ vai buscar na antiga tradição a explicação de que o poder soberano emanava de um poder divino, que recaía no ‘pueblo’ e era transferido para o príncipe mediante um pacto...”. PADOIN, Maria Medianeira. Federalismo gaucho: fronteira platina, direito e revolução. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001. p. 52.

61 CHIARAMONTE, José Carlos. Ciudades, provincias, estados: Orígenes de la Nación

regiões, que reivindicaram sua independência e soberania.62 Primeiramente, surgiu a cidade soberana, que foi sucedida pelo Estado provincial. Tudo isso acontecendo paralelamente às fracassadas tentativas de organização de um Estado nacional rio-platense. Isso aconteceu somente mais tarde, a partir de 1830 e, principalmente, da década de 185063. Como nos adverte Grimson, na maior parte do século XIX é difícil se falar em fronteira nacional, pois ainda não estava bem definida a ideia de nação, ainda não existia uma nação Argentina e, no Brasil, o poder regional era muitas vezes mais presente e forte que o nacional64.

Uma importante fonte para compreendermos a situação em São Borja no período de efervescência das ideias republicanas, autonomistas e federalistas na Região Platina e que antecede a independência do Brasil é o relato do viajante e naturalista Auguste de Saint-Hilaire65, devido à riqueza de informações que podemos destacar dessa memória. Chegando a sede do povoado, relata que duas coisas chamaram sua atenção: primeiramente, “o estado de decadência e abandono a que está reduzida e, de outra parte, o aspecto militar sob o qual ela se apresenta, veem-se aí apenas soldados e fuzis; a cada passo encontramos sentinelas e, diante da casa do comandante, outrora residência dos jesuítas estão alinhados vários canhões”66 e que “depois que os portugueses se assenhorearam da província das missões, ela se empobrece mais a cada ano, e sua população diminuiu de maneira espantosa”67. As casas que existiam não passavam de “pobres choupanas, esparsas, aqui e acolá, junto às quais não se vê plantação alguma”68, o estado geral do lugar era de abandono e a água que tomavam os habitantes provinha “dos lodaçais, de gosto insípida e adocicada”69 existentes no entorno.

Quanto à distribuição espacial, comenta que o comandante da guarnição habita o melhor prédio, que era destinado, no tempo dos

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CHIARAMONTE, Jose Carlos. “Legalidade Constitucional o Caudillismo: el Problema del Orden Social en el Surgimiento de los Estados Autonomos del Litoral Argentino en la Primera Mitad del Siglo XIX.” Desarollo Economico. nº 102 de Vol XXVI de 1986. Disponível em: <http://www.educ.ar>. Acesso em 15 dez. 2005.

63 Como tem sustentado Chiaramonte a noção de nacionalidade como um fundamento de um

Estado nacional é de tardia aparição na região platina, ocorrendo na primeira metade do século XIX, em especial a partir da década de 1830 (CHIARAMONTE, 2007).

64 GRIMSON, 2003.

65 Auguste de Saint-Hilaire nasceu em Orléans, na França, em 1779. Viajou por várias partes

do Brasil deixando um denso relato de suas experiências. Faleceu em 1853.

66

SAINT-HILAIRE, 1987, p. 270.

67 Ibid, p. 272. 68 Ibid., p. 270. 69 Ibid., p. 274.

jesuítas, a visitantes ilustres. As casas do entorno da praça principal “não são mais ocupadas pelos índios, mas por brancos que delas pagam o aluguel, sendo algumas usadas como lojas”, no curralão, antigo pátio dos artífices ainda trabalhavam alguns poucos indígenas. Em cada canto da praça existia uma capela, sendo que três delas haviam sido transformadas em lojas e uma em hospital, nas construções paralelas a praça foi sediado o quartel do regimento dos guaranis70.

Sobre a população do povoado e as moradias dos indígenas diz que o:

[...] reduzido número de índios que, de fato, ainda pertencem a São Borja, mora atualmente em miseráveis cabanas, esparsas nas proximidades da aldeia. Outras choupanas, habitadas pelas mulheres dos militares, apresentam igualmente a pior indigência. A maior parte dessas péssimas moradias são construídas de palha. Uma rede, alguns jiraus, uma cafeteira de cobre, alguns potes compõem todo o mobiliário e, em apenas duas ou três, se haviam plantado alguns pés de milho71. As mulheres guaranis continuavam desempenhando atividades produtivas importantes, especialmente a fabricação de roupas de algodão, porém, não podiam mais se dedicar à agricultura, uma vez que, não possuíam mais ferramentas para tal. Na aldeia vizinha de São Luiz Gonzaga ainda existiam alguns artesãos, também se produziam arroz, feijão, milho, batata e várias espécies de legumes, hortaliças e frutas72. Além dos indígenas, os negros também estavam presentes desde o início do processo de ocupação desse espaço e, gradativamente, vão substituindo os indígenas nos trabalhos na região73.