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PROBLEMATIZAÇÃO

Dentre tantas definições de fronteiras, elenca-se a conceituação dada por Reitel e Zander (2005, p. 2, tradução própria), na qual a fronteira é:

[...] um objeto que separa dois sistemas territoriais contínuos. Este objeto não se resume em um limite, porque há incidências sobre a organização do espaço (efeitos-fronteira) e integra uma dimensão política (quer dizer, o que compete à estruturação de uma sociedade), uma dimensão simbólica, (reconhecida como um conjunto de atores e serve de indicador no espaço), e uma dimensão material (que está inscrita na paisagem).

Outras definições destacam a fronteira como órgão periférico do Estado (RATZEL, 1895), ou ainda como a epiderme dos Estados (KJELLEN, 1916), em uma perspectiva organizacionista. Essas principais definições advêm da geopolítica e guardam proporção entre si no que se refere à sua função primordial ao Estado, território e soberania. Cabe destacar a definição desenvolvida pelo General Meira Mattos (2011) que congrega uma perspectiva ampla e que, principalmente, alia as fronteiras à defesa nacional:

A fronteira, destacada ou não como característica essencial da Nação- Estado, sempre existe e é vital – é a linha ou faixa periférica que contorna o território, de cuja soberania o Estado não pode abdicar. Sendo, como é, uma região periférica, é a faixa de contato com outras soberanias, com o mar ou com o espaço aéreo cujos limites jurisdicionais e direito de utilização são regulados por leis internacionais. As fronteiras são, portanto, regiões sensíveis, onde os direitos soberanos dos Estados se contatam fisicamente (MATTOS, 2011).

Nesse sentido, ressalta-se o conceito de faixa de fronteira adotado pelo Brasil na Constituição Federal de 1988: “A faixa de até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, é considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei” (LBDN, 2012, p. 19). A faixa de fronteira é um espaço próprio “à cooperação com os países fronteiriços nos aspectos referentes à segurança e ao combate aos ilícitos transnacionais” (Idem) – já que na região sul-americana as definições de fronteiras brasileiras foram resolvidas de maneira diplomática, há espaço para que a relação seja cooperativa.

Uma das atribuições do Estado brasileiro é:

[...] prover a segurança e a defesa necessárias para que a sociedade possa alcançar os seus objetivos [...] propiciar e garantir condições para que se possa considerar que o País não corra risco de uma agressão externa, nem esteja exposto a pressões políticas ou imposições econômicas insuportáveis,

105 e seja capaz de, livremente, dedicar-se ao próprio desenvolvimento e ao progresso (LBDN, 2012, p. 26).

Ou seja, manter a soberania do país. Essa atribuição corresponde à defesa nacional e sua efetivação passa, necessariamente, pela atuação do Estado na faixa de fronteira. Nesse sentido, ao observar os ilícitos transnacionais que adentram o espaço brasileiro percebe-se que eles são um aspecto problemático à manutenção da soberania. Essa percepção justifica a análise do crime organizado e do tráfico de armas como problemas de segurança e defesa ao Brasil e também ao espaço regional, já que são ameaças compartilhadas.

O conceito de soberania é trabalhado por Krasner (2001, p. 27) sob quatro aspectos, sendo que o primeiro se refere a soberania da interdependência e enfatiza que a soberania pode ser encarada como a habilidade dos Estados em controlarem as movimentações através de suas fronteiras – isso não quer dizer que o direito dos Estados de proteger suas fronteiras tenha sido desafiado, mas a globalização tornou essa tarefa mais complexa.

O segundo aspecto é a soberania interna que se refere à estrutura de poder dos governantes para utilização dos seus mecanismos internos de poder. Segundo o autor, o enfraquecimento da soberania de interdependência, referindo-se ao controle sobre os fluxos transnacionais, implicaria em uma relativização da soberania interna, uma vez que um Estado que não pode regular as circulações através de suas fronteiras, exemplo do tráfico internacional de drogas, provavelmente, não será capaz de regular as suas atividades internas como a utilização das drogas (KRASNER, 2001, p. 27). O mesmo exemplo pode ser utilizado para as armas – um Estado com déficits de soberania de interdependência que não consegue controlar a entrada de armas por suas fronteiras, também terá déficits de soberania interna em relação ao controle da utilização desses armamentos.

A terceira dimensão da soberania, a soberania westfaliana, está ligada ao princípio da não intervenção externa. Essa soberania westfaliana é aferida pelo Brasil, segundo o Livro Branco de Defesa Nacional (2012, p. 26), como o exercício da “completa e exclusiva soberania sobre seu território, seu mar territorial e espaço aéreo sobrejacente, não aceitando nenhuma forma de ingerência externa em suas decisões”. Já a quarta e última das dimensões do conceito, a soberania legal internacional, refere-se ao reconhecimento mútuo existente entre unidades territoriais juridicamente independentes. Ou seja, os Estados por meio da sua soberania legal

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internacional podem voluntariamente conceder sua soberania westfaliana para uma organização internacional, por meio da cessão de parcelas de soberania.

As duas primeiras dimensões estão mais ligadas ao nosso objeto de estudo, uma vez que com os efeitos do pós-Guerra Fria e globalização os Estados perderam forças no controle da soberania da interdependência e da soberania interna, pois – os Estados têm capacidade reduzida para desempenhar as funções essenciais necessárias à manutenção do controle sobre o seu território (HOBSBAWM, 2007, p. 56). Enquanto a soberania westfaliana e a soberania legal internacional não são ameaçadas, sobremaneira, por esses fenômenos contemporâneos, já que houve a diminuição de conflitos interestatais e uma maior cooperação no âmbito das organizações. Desse modo, podemos afirmar que na região sul-americana ocorrem déficits de soberania da interdependência e soberania interna, pois a região, como elaborado no capítulo anterior, é permeada pelo crime organizado transnacional e pela incidência de ilícitos transnacionais em seu território.

Bull (2002, p. 13) explica que os Estados têm, com relação ao território e à população, soberania interna, ou seja, supremacia sobre todas as demais autoridades dentro do território e sobre sua população. Para o autor, os Estados detêm também o que se poderia chamar de soberania externa, que consiste na independência com respeito às autoridades externas.

“A soberania dos Estados, interna e externa, existe tanto no nível normativo como no factual” (BULL, 2002, p. 13). Os Estados, segundo o autor, não só afirmam a sua soberania interna e externa, mas na prática exercem, em graus variados, essa supremacia interna e independência externa99 – nesse sentido, também a região sul- americana busca afirmar a soberania regional através de iniciativas próprias à região. A cooperação em segurança e defesa, através de mecanismos regionais, é um exemplo de afirmação da soberania estatal frente à incidência de ilícitos transnacionais.

Como o Livro Branco de Defesa Nacional (2012, p. 32) expõe, “o fenômeno da globalização trouxe consigo o agravamento de ameaças de naturezas distintas, como o narcotráfico, o tráfico de armas e a pirataria marítima, que põem à prova a

99 O conceito de soberania passou por uma análise evolutiva, essa, todavia, não cabe ao intuito dessa

dissertação. Ressalta-se, entretanto, que desde as primeiras conceituações de soberania adjetivos como inalienável, indivisível e imprescritível estão presentes. Para uma análise histórica do conceito ver Bodin (2001) e Hobbes (1997).

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capacidade do Estado”. Desta forma, é difícil empreender respostas aos ilícitos sem pensar na atuação conjunta com outros Estados, pois a fronteira brasileira perpassa dez Estados sul-americanos,100 os quais tem problemas internos que avançam o território doméstico. Assim, importa pensar um sistema regional onde ações cooperativas mantenham um ambiente estável e políticas de segurança e defesa que incorporem essas ameaças de natureza distinta.

4.2 O TRÁFICO DE ARMAS NAS POLÍTICAS DE SEGURANÇA E DEFESA DO