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A arte atualiza a posição do homem em relação à cultura e ao mal-estar. É pelo esforço artístico que o homem pode situar-se diante de sua história. Nesse sentido a crítica psicanalítica se aproximará da sóciocrítica, de Walter Benjamin e Adorno, Claude Duchet e Pierre Zima, e dos marxistas em geral, por revelarem o potencial de crítica cultural da obra e seu valor estético enquanto médium de reflexão histórica, ou seja, como as contradições sociais se organizam no plano literário.

O romance, assim como a psicanálise, testemunha concomitante à ascensão da burguesia, a interiorização, a secularização e a setorização dos valores, a urbanização e tantos outros fenômenos agregados sob o signo da modernidade. Temas, mais do que cenários, intrínsecos à forma do romance.

A arte é um produto privilegiado para se partir ao exame do mal-estar, pois é onde este se manifesta em sua forma mais concreta e mutável. Ao mesmo tempo, é apenas diante deste mal-estar que a arte adquire algum valor.

Daqui podemos passar à consideração do interessante caso em que a felicidade na vida é predominantemente buscada na fruição da beleza, onde quer que esta se apresente a nossos sentidos e a nosso julgamento - a beleza das formas e a dos gestos humanos, a dos objetos naturais e das paisagens e a das criações artísticas e mesmo científicas. A atitude estética em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra a ameaça do sofrimento, embora possa compensá-lo bastante. A fruição da beleza dispõe de uma qualidade peculiar de sentimento, tenuemente intoxicante. A beleza não conta com um emprego evidente; tampouco existe claramente qualquer necessidade cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode dispensá-la. Embora a ciência da estética investigue as condições sob as quais as coisas são sentidas como belas, tem sido incapaz de fornecer qualquer explicação a respeito da natureza e da origem da beleza, e, tal como geralmente acontece, esse insucesso vem sendo escamoteado sob um dilúvio de palavras tão pomposas quanto ocas. A psicanálise, infelizmente, também pouco encontrou a dizer sobre a beleza. O que parece certo é sua derivação do campo do sentimento sexual. O amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua finalidade. „Beleza‟ e „atração‟ são, originalmente, atributos do objeto sexual. Vale a pena observar que os próprios órgãos genitais, cuja visão é sempre excitante, dificilmente são julgados belos; a qualidade da beleza, ao contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais secundários. (FREUD, 1930[1929]/2006, p.90)

Nesta consideração, Freud reúne elementos fundamentais para uma teoria estética. Sobre o domínio da estética: a beleza não é atributo exclusivo da arte, podendo estar presente numa criação científica. Sobre sua função em relação à busca da felicidade: não protege contra o sofrimento, mas compensa-o. Sobre a natureza do sentimento: tem uma propriedade intoxicante. Sobre a utilidade: não tem emprego evidente, no entanto é indispensável. Sobre a causa: é inexplicada. E por fim, sobre a vinculação com a sexualidade: é fruto da dessexualização.

Apesar da evidente devoção de Freud à literatura, e da sua curiosidade recorrente acerca dos processos psíquicos subjacentes à fala (chistes e atos falhos) e à arte em geral, nunca abordou diretamente a escrita, a composição literária. Os elementos para a transposição de noções sobre o funcionamento do aparelho psíquico para o campo literário são encontrados nas metáforas escriturais, como traço, inscrição, impressão, até a expressão mais acabada do bloco mágico.

O material da literatura é lingüístico, e esta é sua especificidade. Nenhuma outra arte tem como material a própria linguagem; as outras artes no máximo criam uma linguagem a partir um material que por definição não é lingüístico. A linguagem, que já é significante, mantém uma relação com a realidade, que no seu sentido denotativo é o lastro da realidade compartilhada, é a matéria da literatura, que se apropria dos signos, os

ordena segundo relações internas e externas para criar outra realidade, outra cena, como diria Freud.

Porque a obra literária é haurida da realidade, ao crítico se impõe a tarefa de conhecer a “consciência dos signos”8

, na expressão de Barthes (2003), a fim de se implicar genuinamente no momento histórico das idéias, de sua época e da época da obra. Correlativa a esta tarefa, é a exigência que cumpre ao analista, que para estar na posição contra-transferencial deve ter atualizado em análise sua implicação com a realidade, encarnada na alteridade.

A representação efeito provoca uma espécie de transferência. A mímesis não é uma adequação –uma imitatio – mas um processo que, independente do real, contudo o contrai, absorve, deforma as formas como o real históricamente aparece para o autor e o leitor. (COSTA LIMA, 2000, 398)

Para tanto deve-se ser capaz de nortear-se no horizonte social pelas relações que a arte estabelece com o recalque originário, pois são estas que determinam a partir da linguagem de cada época, gênero, obra, o prazer estético que advém da suspensão do recalcamento secundário.

Barthes (2003) enumera três eixos de relações implicadas no signo: uma exterior, a simbólica, e duas interiores, a paradigmática e a sintagmática. Embora coexistam, o crítico-analista raramente se atém a mais de uma delas. Em todos os casos trata-se de associação: na simbólica entre significado e significante; na paradigmática entre o signo e uma reserva específica de outros signos virtuais; e na sintagmática entre o signo e os signos que o antecedem ou precedem.

A dimensão simbólica diz respeito às convenções lingüísticas de uma época, ou seja, às possibilidades de abertura que instaura. A dimensão paradigmática adentra no trabalho de formação por condensação e deslocamento. E a dimensão sintagmática lida tanto com o adiamento do sentido quanto com o caráter repetitivo deste, pelo contraste ou identidade.

Diante das coordenadas oferecidas por Freud e visando a origem da poesia (onde coincide a beleza e a escrita), será percorrido o caminho até as origens do recalque.