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CAPÍTULO 4: A realidade hipertrófica

4.5. O negativo e a linguagem poética

Por que a psicanálise assim como a poesia haure sua força do amor e da morte? Na literatura há dois grandes padrões de organização. Um é o próprio ciclo natural; o outro é uma separação final entre um mundo idealizado e feliz e um outro miserável e horripilante. A comédia se desloca na direção geral do primeiro desses dois mundos, e conclui tradicionalmente com algo do tipo “viveram felizes para sempre”. A tragédia se desloca na direção oposta, e para a fórmula complementar: “não se considere alguém feliz até sua morte”. (FRYE, 2004, p.101)

A silenciosa pulsão de morte é mencionada pela primeira vez diante de sua manifestação mais exterior e estrondosa, a guerra. Freud que insistia na dualidade pulsão

sexual e do eu, agora conjuga estas em pulsões de vida e propõe uma nova e não menos problemática dualidade. Pois se a pulsão, essa ficção teórica indispensável, apenas se apresenta de forma indireta, distinguir a ação de uma ou outra é tarefa impossível21. Quando Freud caracteriza a pulsão de morte como evasiva, parece referir-se a sua dimensão para além do conceito, mesmo depois de tê-la definido como a pulsão por excelência. Desfundi-las seria portanto impraticável, dado seu objetivo ulterior comum: satisfazer ao princípio primordial de nirvana.

Do ponto de vista da natureza das pulsões, enquanto o erotismo é manifestação mais representativa da pulsão de vida, a pulsão de morte irrompe como agressividade e destrutividade. Em “Além do principio de prazer” (1920), ainda se tratava apenas do aspecto econômico-biológico e de seus efeitos no psiquismo. Em “O mal-estar na civilização” (1930 [1929]) assumiu a face da destrutividade cultural. Enquanto Eros perturba a inércia para criar unidades maiores e mais variáveis, a pulsão de morte tende ao inorgânico, à repetição e à dissociação; para tal ameaça a vida.

Quanto à função, pode-se dizer que se a pulsão de vida tende a expandir, conectar, congregar, compor, e estariam então ao seu encargo as associações das representações e traços que resultam nas formações do inconsciente. A pulsão de morte faria o trabalho oposto, contrair, separar, desligar, decompor.

No que diz respeito à obediência aos princípios, as pulsões agem em uma tensão que torna difícil desvencilhá-las. Em “O problema econômico do masoquismo”(1924), a pulsão de morte é regida pelo princípio de Nirvana, e a pulsão de vida pelo princípio de prazer ainda que considere este como derivado daquele. O princípio do prazer estaria ainda de algum modo subordinado ao princípio de constância. Para adiar a urgência improdutiva do princípio de prazer o princípio de realidade se impõe, ainda que submetido àquele, em última instância. O princípio de realidade seria um produto da ação conjunta das pulsões de vida e morte no jogo de investimento e desinvestimento requerido pela influência do mundo externo.

Nessa complexa conjugação de funções se interporiam as duas pulsões. O

21 Se a pulsão não aderisse a uma idéia ou não se manifestasse como um estado afetivo, dela nada

princípio do prazer seria incitador, e nesse sentido, contrário a tendência a inércia.

O princípio de constância ou do nirvana, como tendência de retorno ao inorgânico, corresponde ao princípio primordial, uma ordem cosmológica anterior à vida, cujo surgimento teria perturbado a disposição original dos elementos. O advento da vida estaria em oposição à tendência ao repouso, pois seu movimento é de expansão e para tal exige que várias condições sejam satisfeitas na interação com o meio onde se desenvolve. O desprazer estar associado ao acúmulo de energia indica que a satisfação dessas exigências faz coincidir princípio de constância e princípio de prazer, logo, as metas das pulsões de vida e de morte seriam alcançadas pelo prazer, que é também descarga de energia. No entanto a pulsão de morte busca um mais além, uma descarga impossível. Este mais além do princípio do prazer é o motor da repetição traumática.

Assim como ao orgasmo, ápice do prazer, segue uma pequena morte, a pulsão de morte sobrepuja a de vida quando esta é descarregada.

O princípio de realidade por sua vez serviria como mediador das exigências urgentes para a expansão da vida e as descargas efetivas na interação com o meio. Pois o destino do organismo regido pelos princípios de constância e prazer, quando deixado à própria sorte, resulta em obtenção de prazer por vias alucinatórias e sem finalidade condizente com a manutenção da vida, como o auto-erotismo por exemplo. O princípio de realidade é instaurado adiando a ação que seria frustrada, para melhor realizar a ação que conduzirá à descarga, prerrogativa do princípio de constância.

O princípio de realidade é instaurado quando o juízo de realidade distingue percepção e memória, interno e externo, primeira desfusão do ego. O ego se fortalece quando as pulsões sexuais passam a prevalecer, e, apoiadas nas de auto-conservação, são investidas no auto-erotismo.

A pulsão de morte entraria em cena na sublimação, dessexualização da pulsão sexual. A reserva de pulsão sexual acumulada no auto-erotismo garante que a pulsão de morte não exceda o limite requerido para a auto-conservação. Assim o ego é capaz de renunciar aos objetos e representá-los sem aluciná-los.

Para com as duas classes de instintos a atitude do ego não é imparcial. Mediante seu trabalho de sublimação e identificação, ele ajuda os instintos de morte do Id a obterem controle sobre a libido, mas, assim procedendo, corre o risco de tornar-se objeto das pulsões de morte e de ele próprio perecer. A fim

de poder ajudar dessa maneira, ele teve que acumular libido dentro de si; torna-se assim representante de Eros e, doravante, quer viver e ser amado (FREUD, 1923b/2006, p.69).