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O juízo e o pensamento reprodutivo

CAPÍTULO 2: A realidade alucinada

2.4. O juízo e o pensamento reprodutivo

Começam então a se constituir os processos secundários, graças ao juízo de realidade. A capacidade de distinguir qualitativamente, de fornecer uma indicação de realidade e de associar um traço sonoro permitem o reconhecimento da imagem mnêmica da dor e a evitação por meio da defesa primária, do recalcamento. Em outras palavras, a discriminação do desprazer torna mais eficiente o recalque, conseqüentemente o juízo de p.103)

realidade.

O ego aqui refere-se à zona de facilitação que por força de investimento constante funciona como veículo da reserva da catexia, que será investida nos processos secundários de inibição (recondução a catexias colaterais).

O Ego deve portanto ser definido como a totalidade das catexias Ψ existentes em determinado momento, nas quais cumpre diferenciar um componente permanente e outro mutável. (FREUD, 1895/2006, p.375)

O neurônio ω e o ego, que consiste numa rede de neurônios catexizados e facilitados entre si, agem em auxilio recíproco. A inibição requer a indicação de qualidade (desprazer) do neurônio ω, e este requer a inibição para a indicação de realidade. A indicação de qualidade sempre é realizada quando o estímulo é exterior, independente de sua intensidade. No entanto, quando o estímulo é interior o neurônio ω só fornece a indicação de qualidade (afeto) quando a catexia eleva-se até um certo grau de intensidade.

O processo secundário é definido como “repetição da passagem original (da quantidade) em Ψ, num nível mais baixo e com quantidades menores” (p.387). O pensamento dotado de juízo de realidade é investimento de catexias Ψ, da memória, embora quantitativamente reduzidas por ação das catexias colaterais. Quanto à atenção seria definida como hipercatexização de neurônios perceptivos, uma atividade do ego, possível graças às indicações de qualidade.

A atividade conjunta do pensamento e da atenção resulta no pensamento observador: “Ora, o propósito do pensamento observador é, evidentemente, o de se familiarizar ao máximo com as vias que partem da percepção, pois desse modo, ele poderá realmente esgotar o conhecimento do objeto perceptivo. Note-se que a forma de pensamento aqui descrita leva à cognição” (FREUD, 1895/2006, 419).

Sem a orientação da atenção por parte do ego, o pensamento vaga por catexias vizinhas de modo imprevisto. Essa seria a característica do devaneio, por exemplo, que ocorre freqüentemente na vida desperta.

Assim, o objetivo e o fim de todos os processos de pensamento é o estabelecimento de um estado de identidade, a transmissão de uma catexia Q [sic], emanada do exterior, a um neurônio catexizado a partir do ego. O pensamento cognitivo ou judicativo procura uma identidade com uma catexia

corporal, ao passo que o pensamento reprodutivo procura uma identidade com uma catexia psíquica do próprio sujeito (com uma experiência do próprio sujeito). O pensamento judicativo opera antes do reprodutivo, fornecendo-lhe facilitações já prontas para a migração associativa posterior. Quando uma vez concluído o ato de pensamento, a indicação da realidade chega à percepção, obtém-se então um juízo de realidade, uma crença, atingindo-se com isso o objetivo de toda essa atividade. (FREUD, 1895/2006, p.385)

O juízo lida com percepções que tem valor imitativo e é suscetível a influência dos processos primários. Por lidar com experiências corporais o juízo tem uma propriedade mimética. “Enquanto alguém está percebendo a percepção, ele copia o próprio movimento – isto é, inerva-se tão intensamente a própria imagem motora despertada para coincidir com a percepção que o movimento vem a ser efetuado. Daí se pode falar em percepções que têm valor imitativo. Eis aí o valor de simpatia de uma percepção” (p.386).

A ampliação da rede de facilitação que formará o ego depende da associação de catexias motoras do neurônio Φ, responsável pela motilidade. Juntamente com a informação sobre a descarga, seria catexizado um traço do movimento reflexo que alcançou a satisfação.

O pensamento judicativo (ou juízo) atua antes do reprodutivo, associando representações sensíveis da experiência corporal da satisfação, e criando facilitações para a passagem posterior, o que resultaria numa crença que pauta o pensamento. O pensamento reprodutivo busca identidade entre percepção e memória, o que é importante para adequar o movimento efetivo ao desejo (memória catexizada). À medida que a capacidade de pensamento é dotada de juízo de realidade, torna-se possível investimentos atenuados de catexias do desejo, distinguindo a irrealidade dos objetos, mas os presentificando de um modo que não incitem a ação específica frustrante.

Há um espectro de experiências que não são apreendidas pelo juízo: “o que chamamos coisas são resíduos que fogem de serem julgados” (p.386). Estas são as representações-coisa, que habitarão o inconsciente na primeira tópica.

Para que o objeto adquira valor de realidade ele deve: primeiro ser perdido; depois ser alucinado como experiência corporal; ter gerado desprazer que será associado à memória da experiência (que será função do pensamento judicativo); só depois disso é que a distinção entre um objeto percebido e lembrado será realizada. Sendo assim, a

ausência e a alucinação subseqüente são condições para a representação (do traço corporal) e o afeto (desprazer) que possibilitará a atenção à presença real do processo de percepção, que por isso sempre levará consigo a marca daquela ausência originária (das

Ding). O processo secundário trata de fazer coincidir o objeto alucinado no lugar do

objeto externo e possibilita se pensar no objeto sem aluciná-lo. A satisfação que advém do seio real é o motor do processo primário, e a alucinação, ao incitar o ato reflexo (motor) fadado à frustração, e ao desprazer, torna imperativo um índice que guie o juízo de realidade. Este índice será o próprio desprazer projetado no objeto hostil.

O índice que proporciona a distinção interno-externo, real-irreal, através do qual frações de alteridade se apresentarão ora como apaziguador alento materno e seus objetos parciais (die Sache), ora como uma impessoal e aniquiladora ameaça, é a alteridade absoluta das Ding. A Coisa, das Ding (a) teria uma função de índice comum ao objeto relembrado (a+c) e percebido (a+b), sendo que b e c representariam atributos variáveis do objeto (die Sache). O que é inassimilável nas experiências, ao mesmo tempo que lhes dá definição e contorno, é também o que faz com que cada experiência tenha sempre um componente que se repete, nas mais variadas formas. Este que seria um núcleo inassimilável da realidade também colocaria desde sempre uma lacuna ética e estética instransponível entre o sujeito e realidade.

A necessidade teórica de um conceito abstrato como das Ding justamente no trabalho de maior preocupação naturalista emoldura essa dimensão ética, na forma de uma categoria de experiência definidora do que no humano é inexoravelmente desamparo (Hilflosigkeit). Outrossim é plausível considerar, seguindo o raciocinío analógico, que no projeto, Freud buscou compreender a constituição do psiquismo de um ponto de vista não da identidade percepção-memória, que faria coincidir representação e objeto, como nos modelos referencialistas, mas da semelhança por uma identidade adquirida a muito custo e sujeita à homeostase do princípio do prazer. Logo, as representações de que trata a psicanálise nunca coincidem com a realidade, só depois de muito investidas pelo desejo e marcadas por uma falta constitutiva, acabam por assemelhar-se a ela.

Se o neurônio a coincide nas duas catexias, mas o neurônio c é percebido em lugar do neurônio b, a atividade do ego segue as conexões desse neurônio c e, mediante uma corrente de Qn ao longo dessas conexões, faz surgir novas catexias até que se encontre acesso para o neurônio b desaparecido. (FREUD,

1895/2006, p.381)

O exemplo desta operação fornecido por Freud é o movimento que o bebê realiza com a cabeça para ajustar a percepção do seio visto frontalmente à memória do seio visto lateralmente. Uma imagem motora, de um movimento, leva de c apresentado pela percepção a b desaparecido. O traço mnêmico da imagem motora é produto do juízo reprodutivo, que retraça o movimento que levou a satisfação. Quando a capacidade do pensamento for adquirida a ação motora não precisará ser realizada para que o traço seja inscrito13.