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A funcionalidade das migrações

Os percursos da maioria dos moradores de Canudos e dos assentados de Nova Conquista contemplam sucessivos deslocamentos. De um modo geral, nasceram em áreas rurais; expulsos de seus lugares de origem42, migraram para a periferia de povoados, para os centros urbanos ou para outras áreas agrícolas. Os que permaneceram no campo foram mudando de uma região para outra e os que foram para os centros urbanos continuaram se deslocando de um bairro para outro. Houve uma primeira agregação nos acampamentos - Maranhão Novo e Itacira - e, finalmente, com a chegada em Canudos e Nova Conquista deram início à construção material e social do bairro e do assentamento. Tudo levaria a pensar que a partir deste momento o processo não sofreria maiores alterações ou bloqueios e fluiria para a progressiva construção de unidades sociais integradas. Todavia, os dados levantados e as experiências de outros bairros e assentamentos, assim como as análises dos processos de redefinição dos espaços da cidade e do campo, mostram que na medida em que uma determinada área alcança certo grau de desenvolvimento, parcelas de moradores são substituídas por outras, mais integradas aos novos ordenamentos socioeconômicos. Desta forma, setores das classes subalternas que contribuíram para o desenvolvimento e a integração daquela área são realocados por uma lógica integradora que não os integra. Trata-se da duplicidade e ambigüidade da socialização dominante que integra desintegrando, inclui excluindo.

A mobilidade, que se transformou em instabilidade, opera no sentido de desestruturar qualquer forma mais consistente de organização social das classes subalternas. Por isso a mobilidade espacial e social destes setores da população tem também fortes conseqüências nas suas formas de organização e representação. Resulta, então, que as formas de socialização ensejadas pelos movimentos sociais oriundos das classes subalternas acabam não se resolvendo da forma imaginada ou programada. Os bloqueios ou redirecionamentos decorrem da mobilidade espacial e social daqueles agentes sociais determinados por uma rígida estrutura social, configurada e regulada em consonância com os interesses dominantes, que não permite a formulação de novos espaços públicos. Não se trata, portanto, de uma questão de competência ou incompetência daqueles movimentos sociais, uma vez que estão submetidos ao domínio da ordem instituída.

É no âmago desta interpretação que ganha força a hipótese da ambigüidade e fragilidade dos movimentos sociais oriundos das classes subalternas. Eles não podem ser considerados e analisados a

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partir de uma suposta autonomia operativa. Também não podem ser apreendidos apenas a partir de suas mobilizações – ações sociais – ou dos resultados alcançados. São partes constitutivas do social e, neste sentido, resultam de seus movimentos e configurações. Ao mesmo tempo, contribuem para fecundar, dinamizar, imprimir movimento e redefinir a ordem social. Conclui-se, por conseguinte, que as formas de socialização ensejadas por setores daquelas classes sociais e que apontam para processos de maior inclusão, integração e igualdade social, processos, portanto, que redefinem a natureza da sociabilidade, são constantemente bloqueadas ou redirecionadas pela rígida estrutura social instituída no Brasil.

Nos relatos dos assentados de Nova Conquista há uma associação evidente entre a redefinição de determinadas formas de ocupação da terra – posseiros, meeiros, arrendatários, pequenos proprietários e outros - e de produção agrícola – cultivo tradicional e esgotamento do solo, “terras cansadas” – e os deslocamentos. Deste modo, a terra se torna simultaneamente fator de atração e de expulsão, dependendo do tipo de relação predominante que ela assume. As propostas de modernização da produção agrícola redefinem e até expulsam formas tradicionais de ocupação e cultivo. Mediados pelos financiamentos e pelos técnicos agrícolas que redefinem as formas de produção e reorientam ou substituem determinados tipos de cultura, os assentados, antigos posseiros, meeiros, arrendatários ou outros, são introduzidos num outro universo produtivo que redefine a própria produção do social. A terra, a produção, a família, os vizinhos, a vila, a associação, o mercado, tudo ganha outro sentido.

Em Canudos, a divisão espacial e social dos bairros, no contexto da cidade, está relacionada às condições materiais e de classe de indivíduos e grupos sociais. São estas que agregam os sem-teto no acampamento e no assentamento respectivamente. Na cidade, os mediadores agem mais disfarçadamente. Trata-se dos poderes públicos que traçam o perfil arquitetônico e social do bairro, além de regular e controlar o processo de desenvolvimento material e humano.

Pelo caráter dos processos – as duas unidades são constituídas por sem-terra e por sem-teto respectivamente – o raciocínio lógico levaria a inferir que os assentamentos se configurariam como espaços de socialização e integração de indivíduos e grupos sociais que, inicialmente, não possuíam condições de compra. Como a ordem dominante é regulada pelo contrato, o acesso aos lotes urbanos e rurais mediante a política de assentamento representaria, de certa forma, a negação do princípio que institui a compra como critério de apropriação e distribuição dos bens materiais. Quando relacionada ao princípio da compra, a “doação” pode ser interpretada como uma forma paternalista e desigual de

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regulação social e política. Se analisadas separada e autonomamente, ou seja, descoladas do movimento histórico, as políticas distributivas parecem negar o contrato e tornar relativa a ordem competitiva. Com efeito, se todos têm acesso aos bens materiais – mercadorias - mediante a compra, não seria injusto favorecer determinados grupos sociais desrespeitando a norma geral? A tese aqui sustentada é que não há desrespeito daquele princípio geral e as políticas de assentamento operam na ambigüidade entre a ação distributiva e o mercado, permitindo a este último regular o processo. Deste modo, o que é apresentado como política distributiva no processo não se resolve em termos igualitários e integradores, visto que predomina a regulação do mercado. Com efeito, a simples permissão de acesso às terras urbanas e rurais sem a mediação da compra não transforma os assentados em proprietários nem em integrados. Estes, contudo, permanecem num espaço físico e social caracterizado pela ambigüidade: imaginam ser proprietários sem, de fato, sê-lo. É o processo articulado de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que institui e reproduz a propriedade. Regulado pelas exigências de movimento do capital, isto é, pelo mercado, o processo que institui a propriedade também (re)cria as condições de expropriação de parcelas de assentados, obrigando a novos deslocamentos. O princípio da competitividade está restabelecido e o dos deslocamentos também.

Pelo exposto, outra questão que se coloca é quanto às reais possibilidades de inclusão e integração de setores da população submetidos a uma permanente mobilidade espacial numa sociedade fundada na propriedade e regulada pelo mercado. Sendo estes os determinantes da integração, migrações estruturalmente produzidas e inclusão são compatíveis? Não haveria a necessidade da fixação e da instituição da propriedade para que esta produza a integração? Como construir relações capazes de configurar e consolidar uma identidade individual, de grupo e social no contexto de reiterados deslocamentos? A migração provoca uma ruptura com as bases sociais instituídas e coloca o migrante num movimento de transição em vista de uma nova institucionalização. Cria problemas e dificuldades sociais, econômicas, políticas, culturais e afetivas.43

A análise dos acampamentos mostrou que os grupos e as classes sociais em movimento são geralmente considerados uma ameaça à ordem instituída por parte dos assentados proprietários. A lógica da propriedade transforma o outro numa ameaça, sobretudo quando este não possui

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Uma questão importante a ser aprofundada poderia ser a do sofrimento - enquanto problema social e não apenas individual – decorrente das migrações que rompem com as bases sociais originárias e colocam as pessoas deslocadas em contextos e situações de desvantagem.