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ESTUDO I: INVESTIGAÇÃO DE ASPECTOS DO FENÓTIPO NEUROPSICOLÓGICO DE

3. Funcionamento Intelectual & Síndrome de Down

A inteligência é considerada um dos domínios mais investigados (e também um dos mais polêmicos) da Psicologia. Ao longo dos anos, este constructo tem gerado diversas controvérsias entre os autores que se dedicaram ao seu estudo (Almeida, 2002). Apesar disto, atualmente o conceito de inteligência, para grande parte dos pesquisadores, está relacionado à capacidade de aprender relações utilizando conhecimentos prévios ou apenas o raciocínio (Laros, Valentini, Gomes & Andrade, 2014), ou ainda, à capacidade dos indivíduos de raciocinar e resolver problemas (Almeida, 2002).

Identifica-se uma variedade de conceitualizações já propostas e diferentes modelos desenvolvidos com o intuito de explicar a inteligência. Semelhante ao que ocorreu durante o desenvolvimento do conceito das FE, inicialmente, as primeiras abordagens da inteligência

assumiam a sua unicidade (Almeida, 2002). Posteriormente, outras definições foram propostas (advindas principalmente do campo da psicometria) postulando-se a existência de mais de um fator explicativo para a inteligência, como o modelo bi-fatorial de Spearman (que propôs a existência de um fator geral (g) de inteligência e múltiplos fatores específicos (s) e a teoria de Thurstone, que utilizando técnicas de análise fatorial sugeriu a existência de fatores independentes ou capacidades mentais primárias (Laros et al., 2014).

Posteriormente, outros autores desenvolveram novas e importantes teorias, como o Modelo de Cattell de Inteligência Fluida (Gf) e Cristalizada (Gc). Para este modelo, a inteligência fluida (Gf) refere-se a uma habilidade que depende pouco das experiências e conhecimentos prévios do indivíduo e estaria relacionada à capacidade de raciocínio abstrato e à resolução de problemas. Estudos indicam que a Gf se associa com domínios como a memória de trabalho, principalmente com as funções do executivo central (Primi, 2002). Por outro lado, a inteligência cristalizada (Gc) relaciona-se à aquisição e consolidação de conhecimentos formais e informais adquiridos a partir da inserção do indivíduo na cultura e sociedade (Laros et al., 2014).

Além do modelo de Cattell, outros modelos foram desenvolvidos, como a Teoria dos Três Estratos de Carroll. No entanto, de acordo com Primi (2003), atualmente o modelo Cattell- Horn-Carroll (CHC) vem sendo considerado o “estado da arte” no campo da inteligência. Este modelo baseou-se na integração de outros desenvolvidos anteriormente e resultou numa visão multidimensional e hierárquica (constituída de três estratos) da inteligência. De acordo com este modelo, o nível III, mais amplo, seria composto por uma única dimensão geral. O nível II abrangeria 16 dimensões amplas, entre elas, a inteligência fluida e memória. Por fim, o I nível abarcaria cerca de 80 habilidades específicas da inteligência, como o tempo de reação e o raciocínio indutivo (Laros et al., 2014). Em resumo, a visão predominante atual considera que

a inteligência é constituída não apenas de uma capacidade única e sim de múltiplas habilidades ou capacidades específicas.

Outro aspecto que tem levantado intenso debate e polêmicas no campo da inteligência refere-se à sua natureza predominantemente genética ou adquirida, apesar de atualmente ser bem estabelecido que a inteligência depende da interação de ambos os fatores. No caso de transtornos do desenvolvimento associados a anomalias genéticas, como é o caso da SD, observa-se a influência do fator genético no funcionamento intelectual destas crianças, sendo a Deficiência Intelectual (DI) considerada uma das principais características da síndrome. No entanto, a inteligência da criança com SD não é determinada apenas pelas alterações genéticas que são observadas, mas também, e de modo fundamental, pelo restante do potencial genético e pelas importantes influências do ambiente no qual esta criança vive (Voivodic & Storer, 2002).

Aproximando-se da concepção de Melero (1999), entende-se aqui que a inteligência se constrói (Voivodic & Storer, 2002). A criança com SD é, assim, mais que sua carga genética, é um organismo que funciona como um todo, sendo a genética apenas um aspecto que integra uma complexa teia de determinantes. Desta forma, a estimulação proporcionada por um ambiente rico em estímulos e aprendizagens significativas, a crença nas suas capacidades, a interação com outras crianças e adultos mais experientes, dentre outros aspectos, pode proporcionar imensos avanços no desenvolvimento destas crianças.

Atualmente, considera-se que a DI (característica em crianças com SD) define-se por prejuízos no desenvolvimento de dois aspectos, a saber, a inteligência e o comportamento adaptativo. De acordo com o DSM-5 (APA, 2013), os prejuízos nas funções intelectuais referem-se a dificuldades nas habilidades de raciocínio, resolução de problemas, planejamento, pensamento abstrato, capacidade de julgamento, aprendizagem acadêmica e capacidade de

aprendizagem com a experiência. Além disto, o diagnóstico deve se basear em uma avaliação clínica individualizada e com testes padronizados que avaliam estas funções.

Tradicionalmente, a DI era determinada através de medidas de QI (coeficiente de inteligência) obtidas pela utilização de instrumentos psicométricos padronizados. De acordo com Schwartzman (2003), nestes testes de inteligência, os indivíduos com SD costumam apresentar pontuações que variam de 20 a 85 pontos de QI. Cerca de 70 a 75% dos indivíduos com SD apresentam escores de QI entre 20 e 50, sendo a causa de dificuldades leves, moderadas e severas de aprendizagem (Mecca, 2013; Rihtman et al., 2010).

Um dado que merece atenção e que precisa ser discutido, a fim de se evitar interpretações errôneas, refere-se ao aparente declínio no QI que pode ser observado à medida que crianças com SD vão envelhecendo. De acordo com Schawartzman (2003), este declínio pode ser resultado da forma como o QI tem sido avaliado. Nestas avaliações as crianças com SD são comparadas com crianças e adolescentes com DT da mesma idade cronológica, o que não seria o mais adequado, visto que é necessário que se leve em consideração que o desenvolvimento na SD é mais lento, sendo óbvio que os seus QIs, verbal e não-verbal, serão mais baixos se comparados com crianças com DT. Este tipo de comparação, segundo o mesmo autor, acaba desprezando importantes ganhos que os indivíduos com SD podem estar apresentando em vários aspectos de seu funcionamento cognitivo.

Apesar da avaliação da inteligência ser realizada primordialmente através da utilização de instrumentos psicométricos, tal avaliação em casos de transtornos do desenvolvimento intelectual tem sido alvo de uma série de questionamentos. Isto porque, em sua grande maioria, estes instrumentos foram desenvolvidos para crianças com DT, desconsiderando, muitas vezes, as necessidades e características específicas daquela população (Antonio, Mecca & Macedo, 2012). Tal fato ocasiona uma série de dificuldades, tanto no que diz respeito à avaliação destas crianças com estes instrumentos, quanto em relação à interpretação dos seus resultados.

De acordo com Pacanaro, Santos e Suheriro (2009), em grande parte dos instrumentos existentes atualmente para a avaliação da inteligência, o uso da linguagem oral tem sido uma exigência comum, além de ser considerada uma habilidade indispensável na manifestação da própria inteligência da criança. No entanto, de acordo com as mesmas autoras, muitos comportamentos não dependem obrigatoriamente do uso da linguagem, mas sim de manifestações de outros processos, como o raciocínio abstrato, raciocínio numérico e várias outras formas de resolução de problemas (Pacanaro et al., 2009; Mecca, 2013).

No caso das crianças com SD, a avaliação de aspectos cognitivos baseada nas suas habilidades linguísticas pode constituir-se como um obstáculo para a delimitação do seu verdadeiro potencial, uma vez que estudos demonstram que o desenvolvimento cognitivo destas crianças é superior ao seu desenvolvimento da linguagem (Pacanaro et al., 2009). Desta forma, a utilização de instrumentos que minimizem a demanda linguística poderia favorecer a avaliação do real potencial destas crianças.

Para exemplificar tal concepção, em um estudo nacional utilizando as escalas Wechsler de Inteligência para crianças e adultos, Duarte (2009) relata que de uma amostra composta por 67 indivíduos com SD, 46,2% dos participantes tiveram que ser excluídos, sendo um dos motivos destas exclusões o fato dos indivíduos com a síndrome não terem sido capazes de compreender as atividades, bem como responder (utilizando-se da linguagem oral) os subtestes que compõem as escalas verbais dos instrumentos. Desta forma, conforme ressalta Mecca (2013), a perda amostral pode ser associada às características do instrumento, que se mostrou pouco adequado para ser utilizado com o grupo de estudo.

Observa-se, portanto, uma maior preocupação atualmente no que diz respeito à escolha mais adequada de instrumentos para avaliação do funcionamento intelectual destas crianças. Um dos instrumentos que tem sido bastante utilizado em contexto internacional refere-se à Escala Internacional de Inteligência Leiter-R (D’Ardhuy et al., 2015; Daunhauer et al., 2014;

Will et al., 2016). Segundo Daunhauer et al. (2014), por ser um teste não-verbal de inteligência, o Leiter-R é um instrumento adequado para avaliar crianças com SD. Este instrumento permite respostas não-verbais dos participantes, minimizando assim a exigência de respostas orais.

Em contexto nacional, no estudo de Mecca, Morão, Silva & Macedo (2015) a Escala Internacional de Inteligência Leiter-R foi utilizada na avaliação de um grupo de 30 crianças com SD, com idades entre três e oito anos. Os resultados encontrados mostraram que as crianças apresentaram um desempenho significativamente inferior ao de crianças da mesma faixa etária nos domínios de processamento visual e inteligência fluida. No entanto, uma maior dificuldade foi observada em tarefas que requeriam a discriminação, exploração e estratégias adequadas de busca visual, quando comparada a tarefas que demandavam raciocínio sequencial.

Por fim, é importante salientar que ao avaliar o funcionamento intelectual destas crianças o objetivo maior não pode resumir-se à confirmação dos déficits intelectuais por meio de comparações com a população sem deficiências. Em vez disto, estas avaliações precisam direcionar-se para o fornecimento de maiores informações acerca do perfil de funcionamento destes indivíduos, através de análises qualitativas do processo de avaliação, que podem ser úteis para a caracterização de pontos fortes e fracos, bem como para o desenvolvimento de projetos de apoio e programas de intervenção.

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