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Nos estudos feitos sobre a memória, abordei os aspectos afetivos, responsáveis pelas lembranças que possuem caráter valorativo e, também, no esquecimento. Especialistas das áreas da Psiquiatria, Biologia e da Neurofisiologia consideram a memória um fato puramente biológico, um processo cerebral capaz de registrar e gravar nossas percepções e idéias, gestos e palavras, restringindo outros tipos de leitura dos fenômenos mnemônicos.

Já nas áreas da Psicologia Social, Ciências Sociais e na Antropologia, a memória é vista como um elemento coletivo importante, um comportamento narrativo que exerce uma função social e histórica. Se a teoria da memória fosse entendida apenas como uma ocorrência biológica, como explicaríamos o fenômeno da lembrança? Afinal, porque temos dificuldade de lembrarmo-nos de algumas coisas e facilidade para recordar tantas outras? De fato, ocorre que existem zonas específicas no cérebro e substâncias químicas responsáveis pela memória, mas nesse processo de memorização coabitam componentes objetivos e subjetivos. Os componentes objetivos estão ligados ao registro cerebral provocados por atividades fisiológicas e químicas, como a memorização de figuras e ritmos. Os componentes subjetivos estão ligados à importância que damos às coisas e fatos que possuem um significado afetivo e emocional, algo que nos impressionou e ficou gravado em nós. Mesmo que nosso cérebro registre tudo, a memória só se manifesta por intermédio do que faz sentido ou possua significado para nós e para os outros (CHAUÍ, 1994, p. 128). Como explica Eclea Bosi (1994, p. 464):

Há um modo de viver os fatos da história, um modo de sofrê-los na carne que os torna indeléveis e os mistura com o cotidiano, a tal ponto que já não seria fácil distinguir a memória histórica da memória familiar e pessoal.

De acordo com Le Goff (2003, p. 470), a memória é um comportamento narrativo capaz de exercer a função comunicadora entre as pessoas e suas impressões do passado, que já não coexistem na sua forma original, e clarifica:

[...] a memória coletiva é não somente uma conquista é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social é, sobretudo, oral, ou que estão em vias de construir uma memória coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória.

O historiador francês Jacques Le Goff desdobra na sua obra História e Memória seis grandes problemas: as relações entre a história vivida e a história natural; as relações entre a história e o tempo; a oposição e o diálogo entre o passado, presente e futuro; a capacidade da história de prever o futuro; as durações históricas; e como a idéia da história como história do homem foi substituída pela idéia da história como história dos homens em sociedade. Faz análises preciosas desde a antiguidade sobre vários aspectos da história social, e, como é de meu interesse, dispensa atenção especial a memória e sua importância na história individual e social do homem.

O que é a história senão as experiências vividas, passadas ou recentes do indivíduo? O sociólogo francês Maurice Halbwachs teve seus estudos voltados para os contextos sociais da memória. Outrora durkheimianos, tais estudos convergem na obra

A Memória Coletiva, uma relação mais interpretativa e casual no que diz respeito às interferências e ao pensamento coletivo.

Na obra Painéis cerâmicos: um calendário de memórias, eu valorizo, antes de tudo, as memórias individuais, pois são elas que vão construir a memória coletiva.

Halbwachs coloca o indivíduo como fazendo parte do todo:

O que seria desse ”eu”, se não fizesse parte de uma “comunidade afetiva” de um “meio efervescente” - do qual tenta se livrar no momento em que “se lembra”? É claro, a memória individual existe, mas está enraizada em diferentes contextos que a simultaneidade ou a contingência aproxima por um instante. A rememoração pessoal está situada na encruzilhada das redes de solidariedades múltiplas em que estamos envolvidos. (HALBWACHS, 2006, p.12)

O tema da memória adotado neste trabalho visa reforçar a necessidade de valorizarmos o indivíduo, antes de tudo, como um ser capaz de se comunicar, dividir seus sentimentos, saindo do esquecimento de si mesmo para fazer parte constituinte de uma obra. Valorizo o lado humano, o sensível e as recordações como elas foram expressas de fato por cada um através do seu registro escrito.

A memória é um tema complexo, está por trás da história das civilizações, da história econômica e social, embutida na antropologia histórica. Ela é a via de comunicação dos fatos ocorridos principalmente após o surgimento da escrita. Entretanto, devemos ter cuidado para não confundirmos a história e a memória, visto que elas não são a mesma coisa, opondo-se constantemente, como explica Pierre Nora apud DeDecca (1992, p.130-131):

O tempo desta história que se acelera vertiginosamente em nosso século é o tempo das mudanças, das transformações e da destruição, ao passo que o tempo da memória coletiva é o da permanência e o da continuação. “A memória é a vida, sempre guardada pelos grupos vivos e em seu nome, ela está em

evoluções permanente, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todas utilizações e manipulações, suscetível de longas latências e de súbitas revitalizações. A história é reconstrução sempre problemática e incompleta daquilo que já não é mais. A memória é um fenômeno sempre atual, uma ligação do vivido com o eterno presente; a história é uma representação do passado. Porque ela é afetiva e mágica, a memória se acomoda apenas nos detalhes que a conformam; ela se nutre de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a toda transferência, censura ou projeção. A história, porque operação intelectual e laicizante, exige a análise e o discurso crítico... A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto. A história não se liga a não ser em continuidades temporais, nas evoluções e relações de coisas. A memória é um absoluto, a história não conhece mais do que o relativo. No coração da história trabalha um criticismo destruidor da memória espontânea. A memória é sempre suspeita à história, donde sua verdadeira missão é a de destruí-la e de rechaçá-la. Nos horizontes das sociedades de história, nos limites de um mundo completamente historicizado, haveria a dessacralização última e definitiva de toda a memória. O movimento da história e a ambição da história não são a exaltação daquilo que já passou, mas sim a sua nulificação”.

No campo artístico, o papel da memória também remonta às primeiras representações gráficas, desde as pinturas rupestres até a antiguidade clássica. Sempre esteve presente e sempre estará. Na tese de doutorado Poética da Memória:

Maria Bonomi e Epopéia Paulista, que já foi apresentada no capítulo anterior, defendida

por Alecsandra Matias de Oliveira, levantam-se importantes questões sobre as relações entre a memória e a arte, principalmente quando a autora discorre sobre o painel “Epopéia Paulista” como uma significativa obra da arte contemporânea:

Imersos nas redes mnemônicas, artistas e novas propostas estéticas têm fundamental papel na construção de seu tempo através de múltiplas linguagens. Alguns atingem significativo grau de especificidade no modo de construção desenvolvido, tornando- se, de certa forma, cronistas do cotidiano - uma expressão que somente pode ser compreendida através da reconstituição da memória do momento presente, na qual existe um tempo fragmentado diante da profusão de imagens, sons e sentidos integrantes da sociedade contemporânea. (OLIVEIRA, 2008, p. 11)

Se recordar é assim tão fundamental para que não nos esqueçamos de quem somos, será a escrita um instrumento de fixação de nossas recordações? Registrando nossas lembranças por escrito, conseguiríamos jamais esquecê-las?

A cada instante sabemos quem somos e o que fazemos, onde nos encontramos em relação a momentos anteriores e em relação a todo um passado, projetando nossas esperanças para o futuro. Em nossa imaginação podemos atravessar espaços e tempos; podemos estar em vários lugares a uma só vez, sem sair do lugar. E em tudo isto não nos perdemos e continuamos sabendo de nós. Essa noção de continuidade, de um passado ligado ao presente sem deixar de ser passado, faz parte da nossa autopercepção. Ela constitui nossa memória e nossa identidade; a memória de cada indivíduo sendo única e irreproduzível. (OSTROWER, 1995, p. 261)

3.2.1. A Palavra escrita como instrumento