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simbolico do decorrer do tempo

Quase todo mundo guarda as fotografias antigas da família, bilhetes ou cartas de amor, documentos importantes. Mesmo que tudo isso fique amarelado, velho e empoeirado, é dessa foram que acreditamos manter vivos certos dados que nem sempre a memória é capaz de preservar. Por isso, esses objetos são registros de Fig. 103 Daniela Bueno Placas esmaltadas nos tons de vermelho e marrom escuro, ligadas aos doadores mais íntimos ou eventos mais fortes, 2006

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pessoas, coisas e contêm, por vezes, números, datas, nomes e outras informações que certamente não recordaríamos se não as tivesse guardado.

A criança sofre, o adolescente sofre. De onde nos vêm, então, a saudade e a ternura pelos anos juvenis? Talvez porque nossa fraqueza fosse uma força latente e em nós houvesse o germe de uma plenitude a se realizar. Não havia ainda o constrangimento dos limites, nosso diálogo com os seres era aberto, infinito. A percepção era uma aventura; como um animal descuidado, brincávamos fora da jaula do estereótipo. E assim foi o primeiro encontro da criança com o mar, com o girassol, com a asa na luz. Ficou no adulto a nostalgia dos sentidos novos. (BOSI, 1994, p.83)

A obsessão que temos com o tempo, a velocidade com que vivemos e exigimos da vida acaba por dificultar, em algumas ocasiões, nossa lembrança de coisas importantes e relativamente recentes. Como perder essa sensação de esquecimento repentino e não se perder no corredor de lembranças guardadas no nosso inconsciente? É preciso construir uma lógica de raciocínio, criar uma linha do tempo imaginária dentro de nossos cérebros, como se fosse um desses calendários com números gigantes. Uma agenda, com a qual detectar o ano, por exemplo, ajuda a lembrar onde estávamos, com quem e porquê. Basta procurar nos registros.

Qual a menina que nunca teve um diário, ou o jovem artista que nunca carregou consigo seu “caderno” de anotações ou blocos de desenho para onde quer que fosse? Construir um calendário mental é difícil, pois podemos esquecer nossas idéias, mas quando registramos no papel, por meio de palavras, poesia, desenhos, qualquer informação sobre nossos pensamentos aquilo adquire outro sentido. Há, além de uma decodificação, um significado.

A escrita permite à memória coletiva um duplo progresso, o desenvolvimento de duas formas de memória. A primeira é a comemoração, a celebração por intermédio de um monumento comemorativo, de um acontecimento memorável. A memória assume, então, a forma de inscrição e suscita na época moderna uma ciência auxiliar à história, a

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epigrafia .

[...] A outra forma de memória ligada à escrita é a do documento escrito num suporte especialmente destinado à escrita... Neste tipo de documento, a escrita tem duas funções principais: “Uma é o armazenamento de informações, que permite comunicar através do tempo e do espaço e fornece ao homem um processo de marcação, memorização e registro”; a outra, “ao assegurar a passagem da esfera auditiva à visual”, permite “reexaminar, reordenar, retificar frases e até palavras isoladas”. (GODDY apud LE GOFF, 2003, p.427-429)

Quando colocamos a data, estamos registrando o tempo em que aquilo ocorreu, da mesma forma como fazemos quando assinamos uma obra de arte - a forma encontrada para registrar o autor de uma obra. Essa atitude nos liga com o objeto indiscutivelmente. O trecho “um calendário de memórias” exibido no título do trabalho é uma sugestão para o público perceber que aquele painel cerâmico é um calendário, ou seja, um conjunto de informações datadas, através dos últimos trinta anos, daquele 13 Epigrafia é etimologicamente a ciência do que está escrito sobre. De fato, ela só se ocupa do que está escrito sobre materiais duráveis; e se ela se interessa pela escrita enquanto tal e estabelece regras que regem a leitura e a interpretação das inscrições é apenas par ir ao texto, propósito essencial de seu estudo, que penetra para além dos mais diversos campos da história. (HIGOUNET,

determinado grupo de pessoas. A obra ultrapassa o tempo e o espaço quando revela em seu conteúdo a possibilidade de se atualizar sozinha a cada olhar.

O tempo do calendário é totalmente social, mas submetido aos ritmos do universo. Deriva de observações e de cálculos que dependem também do progresso das ciências e das técnicas. [...] O calendário, objeto científico, é também um objeto cultural. Ligado a crenças, além das observações astronômicas (as quais dependem mais das primeiras do que o contrário), e não obstante a laicização de muitas sociedades, ele é manifestamente, um objeto religioso. Mas, enquanto organizador do quadro temporal, diretor da vida pública e cotidiana, o calendário é, sobretudo, um objeto social. (LE GOFF, 2003, p.478)

Um fato ocorrido para João no ano de 2003 pode ter ocorrido para Maria em 1987; e apesar de serem indivíduos distintos entre si, ao se depararem com a obra estarão se identificando com a outra pessoa e percebendo que há um ser semelhante, em outro lugar. Um doador de memória que, como ele, vive, sofre, luta e sorri da mesma forma, independente das circunstâncias que os separam e os diversificam.

Construir um painel com o registro das datas como a de um calendário e agregar essas memórias é construir um registro visual das lembranças das pessoas, nossas memórias passam a ser registrados no barro como um panorama iconográfico da vida humana, de pessoas comuns.

Le Goff afirma que “o calendário é um dos grandes emblemas e instrumentos do poder”, por outro lado, se não houvesse um registro com datas, anos, nomes e símbolos, perderíamos uma importante ferramenta para nos relacionarmos com a percepção do tempo. Independente do agente detentor desse poder, estaríamos ainda mais entregues à desordem, ao individualismo e à segregação de nós mesmos ou daqueles que

julgamos serem merecedores de nossos segredos. Importo-me com cada detalhe, com cada dado, e qual o objetivo de um calendário que não seja o de ser visto e utilizado para nos situarmos no tempo? Ele serve para percebermos, nesse caso específico, que há pedaços de vida que pulsam para fora dele (de um tempo passado) e saltam no presente rememorando e antevendo o que a relação de tempo e espaço representa para cada olhar.

Cerca de 350 placas foram inscritas com meses, anos, nomes, desenhos, símbolos, frases, palavras, histórias, pedaços de todos esses adoráveis “doadores de memória”. Juntas, constroem um calendário atemporal, como pequenos bilhetes desses que deixamos aos nossos pais e filhos, amantes, empregadas e amigos, grudados na altura dos olhos, não nos deixando esquecer algo importante.

Conheci a história e a intimidade de muitas pessoas, me surpreendi, me emocionei e, como já comentei anteriormente, esses “doadores de memória” agora fazem parte da minha memória. Suas cartas se transformaram num caderno particular de memórias, suas memórias se transformaram em pequenos objetos de arte, a argila que foi suporte da escrita se transformou em registro, esse conjunto de peças se transformou em painéis cerâmicos, que se apresentam como um calendário impressionante de memórias.

Constatei que a argila é mais complexa do que eu imaginava, e que é preciso dedicar-se a ela não como alguém que deseja dominá-la apenas, mas como alguém que

3.5. Paineis ceramicos um calendario de memorias:

os doadores que sairam do anonimato e do (nosso)