• Nenhum resultado encontrado

Painéis cerâmicos: um calendário de memórias

3.1. Antecedentes

Assim, encontrando sei lá o que massa primordial em minhas mãos vazias, todo o meu sonho manual, murmuro: “Tudo me é massa, eu sou massa em mim mesmo, meu devir é minha própria matéria, minha própria matéria é ação e paixão, sou verdadeiramente uma massa primordial.

Gaston Bachelard

Amassar o barro, batê-lo, sová-lo, contorcer-se sobre essa massa pegajosa, gosmenta, úmida e gelada foi como tomar contato com uma parte íntima do próprio corpo. Sentir o contato dos dedos nesse corpo argiloso foi como penetrar em matéria semelhante a nossa própria carne e, ao mesmo tempo, tão desconhecida. Dar forma, construir, elevar paredes, cavar e moldar uma determinada porção de argila e, posteriormente, transformá-la num determinado “objeto” de nossa imaginação foi e sempre será, para um ceramista, como dar vida a nossa matéria original, o barro.

Gaston Bachelard, na obra A Terra e os devaneios da vontade, oferece diversos exemplos de como tanto a paixão pela matéria terra quanto seus devaneios podem ser sentidos pelo esforço imaginativo entre o duro e o mole. É como se cada um de nós imaginasse a massa ideal para o laborioso, ainda que instintivo, trabalho das mãos sobre o barro primitivo, apto para receber a forma que desejarmos e conservá-la por longo período. O autor cita trechos das obras de outros autores que descrevem, singularmente, suas percepções da matéria terrestre de forma poética e carregada de simbologias.

da simplicidade da constatação de sua natureza que é, ao mesmo tempo, tão real e manifesta, mas permite os mais variados devaneios relativos à intimidade de cada um dos elementos presentes no trabalho como um todo.

As matérias duras são o mundo resistente ao alcance das mãos. Com o mundo resistente, a vida nervosa em nós associa-se à vida muscular. A matéria se mostra como a imagem realizada de nossos músculos. Parece que a imaginação que vai trabalhar

esfola o mundo da matéria. Tira-lhe os tegumentos para ver bem as linhas de forças. Os objetos, todos os objetos têm energia. Devolvem-nos o vigor imaginário que lhes oferecemos através de nossas imagens dinâmicas. Assim recomeça a vida dinâmica, a vida que sonha intervir no mundo resistente. (BACHELARD, 2001, p.59)

É difícil não se apaixonar pelo barro depois que tomamos contato com ele. Ao amassá-lo, no esforço muscular que o autor cita, o devaneio que se apossa é uma descontração. É justamente nesse esfolar que proporcionamos uma desaceleração mental, seguido posteriormente de um relaxamento intrínseco, quase sentindo a diminuição do ritmo cardíaco. Dá-se início a uma espécie de desligamento com o mundo externo e com o cotidiano tipicamente perturbador em que vivemos na contemporaneidade.

Foi assim que minha paixão pela cerâmica se deu desde o primeiro contato, há seis anos, e é crescente meu encanto por suas formas, seus segredos, seus aspectos e por sua história que, como já vimos, provém de um passado muito remoto. No início dessa relação com a cerâmica, o conjunto de funções que ela poderia ter, além de rica matéria-prima para o setor de utilitários, era a de ser um meio difícil e menos usual dentro das possibilidades de criações artísticas ou de pesquisas acadêmicas dentro da

universidade, assunto esse que eu pretendia desvendar.

Foi por meio da pesquisa sobre a trajetória da cerâmica e a história da arte, observando os antigos registros realizados em cavernas, murais e painéis entre outras formas de representações iconográficas, que adotei a cerâmica como suporte para desenvolver minhas idéias. Pensando no conteúdo dos registros históricos que, ao longo dos séculos, foram os responsáveis pela construção da memória coletiva de nossa civilização, a temática da memória rondava minhas intenções não somente como artista, mas como pessoa. A partir desse momento, não tive dúvidas sobre a construção de um painel cerâmico que fosse abordar essa temática.

É fundamental o papel que a memória coletiva desempenha nas sociedades desenvolvidas. Segundo Jacques Le Goff (2003, p.469): “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia”.

Influenciada por livros e imagens das antigas civilizações, pelos hieróglifos egípcios, os símbolos pré-colombianos, pinturas murais, mosaicos bizantinos e relevos ricos em imagens iconográficas, o ato de contar histórias ou relembrar segredos tornou- se um dos meus objetivos.

Toda obra de arte deve ser desfrutada como uma linguagem sem fronteiras, por qualquer homem, em qualquer época, independente de sua classe social, uma vez que ela transcende as transformações históricas e as diferenças culturais, como afirma Canclini, (1985, p.08). Seguindo esse raciocínio, porque então ignorar aqueles que fazem parte do processo constituinte da obra?

Coletar as memórias de pessoas comuns, que habitualmente ficam à margem dos circuitos de arte, grandes obras, monumentos históricos, instalações e que passam pela vida, cotidianamente, como uma grande massa de espectadores passivos ou

meros apreciadores esporádicos, passou a fazer parte das interrogativas desse projeto.

(...) cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Nossos deslocamentos alteram esse ponto de vista: pertencer a novos grupos nos faz evocar lembranças significativas para este presente e sob a luz explicativa que convém à ação atual. O que nos parece unidade é múltiplo. Para localizar uma lembrança não basta um fio de Ariadne; é preciso desenrolar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto de encontro de vários caminhos, é um ponto complexo de convergência dos muitos planos do nosso passado. (BOSI, 1994, p.413)

Uma coisa é fato: todos nós, antes de atingirmos o status de ceramista, ou de professor ou estudante, somos seres humanos, dotados das mesmas características físicas e, salvo algumas exceções, vivemos em sociedade cumprindo certos papéis e funções. Roma e Birmingham (1992, p.7) afirmam que Maurice Halbwachs defende que toda memória se estrutura em identidades de grupo: lembramos de nossa infância como membro de nossa família, a nossa vida profissional quando nos reportamos ao local de trabalho e assim, consecutivamente, nossas memórias estão associadas ao grupo do

12

qual fazemos ou fizemos parte . O que me parece próprio se cruza no passado com a lembrança de outra pessoa e, no futuro, ninguém pode prever os entrecruzamentos de vidas e acontecimentos que teremos ou com quem.

Somos um reservatório de lembranças, depósitos carregados de histórias, somos vida ambulante, aprendizes emotivos, circulando no mesmo globo, cruzando caminhos

12 A memória, questão essencial, na constituição desta pesquisa, será abordada sob diferentes

e sentindo fortemente as sensações impositivas desse caminhar mesmo negando sentimentos e reforçando uma imparcialidade construída ao longo dos últimos anos por cada um de nós. Antes de qualquer reflexão somos indivíduos plenos.

A memória é o elemento principal deste trabalho. No cerne de todo o painel cerâmico está a memória coletada de um determinado grupo que citarei mais adiante. Por esse motivo, falar sobre a memória e como ela se dá é fundamental.

De acordo com Marilena Chauí (1994, p.125): A memória é uma evocação do passado. É a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais”.

Essa relação entre a história e a memória é tão antiga quanto a origem humana. Para o pensamento grego, a memória é a responsável pela transmissão dos costumes e tradições, é ela quem possibilita a comunicação entre os homens e os deuses. A memória possui a:

propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas. (LE GOFF, 2003, p. 419)

3.2. A memoria como elemento