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No que toca ao saneamento, as causas motivadoras da prestação compartilhada são as mais variadas e envolvem questões econômicas, regulatórias, ambientais, gerenciais e administrativas.

Uma rápida enumeração das razões da gestão compartilhada corrobora o afirmado:

(i) a existência de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, o que exige, por imposição legal, uma gestão conjunta dos serviços públicos. Nesse caso, a gestão compartilhada decorre das determinações impostas por lei complementar do Estado, a ser compulsoriamente observada pelos Municípios;

(ii) a tentativa de obtenção de uma escala que ofereça sustentabilidade econômica para a prestação dos serviços, tendo em vista a baixa capacidade de financiamento das atividades pelo Poder Público local e pela população. Sistemas de subsídios cruzados e economia de escala são fatores relevantes nesse caso;

(iii) as dificuldades de acesso a corpos hídricos ou a áreas de tratamento e disposição final de resíduos, exigindo que determinados Municípios se integrem voluntariamente em busca de estrutura necessária ao desempenho do saneamento;

(iv) a adaptação da prestação de serviços de saneamento às características das bacias hidrográficas de cada região, proporcionando o uso racional e equilibrado dos recursos hídricos. Além do uso racional da água, mesmo atividades de caráter local, como o tratamento de resíduos e a drenagem, acarretam impactos em todo o sistema hídrico de uma região se geridas inadequadamente. A poluição de mananciais é muito comum em razão de aterros irregulares. A contaminação de fontes de água afeta o sistema hídrico amplamente e não apenas os mananciais de um Município isolado. Demonstrou-se, ainda, que sistemas de drenagem levam resíduos e poluição para rios que, normalmente, alcançam outras localidades. Acrescente-se, ainda que a drenagem mal desempenhada altera o ciclo hidrológico da região, uma vez que direciona volumes enormes de água para corpos hídricos que originariamente não os recebiam. Opera-se, nesses casos, uma verdadeira transposição de águas que altera o regime de vazão dos rios e, portanto, o abastecimento de

água em toda a bacia de determinada região. Assim, não somente a interconexão entre as atividades do saneamento, como também sua influência nas comunidades limítrofes podem justificar ao menos sua regulação concatenada;

(v) as políticas de universalização dos serviços patrocinadas por entes federados de maior abrangência territorial como os Estados e a União e que têm o nítido interesse de, gradualmente, superar desigualdades regionais significativas. Nesses casos, as transferências voluntárias de recursos e infraestrutura figuram como incentivos para a regionalização dos serviços e, portanto, para a gestão compartilhada;

(vi) a padronização da regulação dos serviços em determinada região, a fim de uniformizar critérios econômicos de cobrança dos serviços, critérios ambientais de gestão, dentre outros, bem como a união de esforços entre diversos entes para reduzir os custos da regulação (compartilhamento de pessoal de fiscalização, equipamentos, etc.).

Não custa afirmar que a demonstração das motivações da gestão compartilhada não denota qualquer critério ou indicativo da titularidade dos serviços em função da abrangência regional ou local das atividades. Tal tema será tratado com a devida profundidade no capítulo 4.

Na enumeração acima realizada, observa-se, inicialmente, a existência de circunstâncias de gestão compartilhada obrigatória. É o caso das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões.

A integração também poderá ocorrer por necessidades de insumos não encontrados no território de Município isoladamente considerado ou em razão da necessidade de obtenção da escala econômica que ofereça sustentabilidade à prestação.

Aqui o caráter regional dos serviços é, também, relevante, mas não implica, necessariamente, uma forma compulsória de gestão do saneamento, podendo dar ensejo a modelos voluntários de associação entre os entes federados (art. 241 da CF).

Mas a gestão compartilhada não se esgota no papel de integrar (compulsoriamente ou voluntariamente) as funções de interesse comum das unidades federativas.

A gestão compartilhada pode ser aplicada como instrumento de apoio na prestação dos serviços, também, nas situações em que eles poderiam ser prestados

inteiramente no território de um único ente local. Nessas circunstâncias, é na livre vontade dos entes federados que reside a possibilidade de integração do saneamento.

Mesmo serviços com características locais, como a coleta e o transporte de resíduos, bem como a drenagem urbana (passíveis de serem prestados inteiramente em um mesmo Município), podem ser integrados à gestão compartilhada. Isso não os torna atividades de caráter intrinsecamente regional, apenas lhes confere uma gestão mais antenada com as circunstâncias ambientais ou hídricas em que se inserem.

Há, destarte, motivações para a gestão compartilhada que abrangem não apenas argumentos centrados nas implicações regionais dos serviços, mas outros benefícios, como a diluição de custos regulatórios, a disseminação de conhecimento sobre os serviços e o oferecimento de maior eficácia à gestão de serviços locais.

Para muitos, a gestão compartilhada pode ser encarada como um retrocesso vis- à-vis à alternativa de descentralização completa dessas atividades para os Municípios.

Em muitos casos, a descentralização pura é apresentada como mecanismo de eficiência e maior controle da ação do Poder Público, uma suposta solução para todos os problemas da gestão pública.

Com efeito, há fortes argumentos em prol da gestão puramente local tendo em vista que proporciona maior densidade democrática na gestão dos serviços (maior participação popular) e apresenta uma conexão mais óbvia com a noção de subsidiariedade que, em tese, deve reger a organização de competências no federalismo.

Tenha-se em mente, todavia, que processos extremados de descentralização de políticas e serviços públicos não são simples e nem sempre proporcionam os resultados positivos almejados, exigindo uma conformação institucional própria para sua ocorrência.

É ineficiente a atribuição de responsabilidades a entes locais que não têm condições de arcar minimamente com sua consecução. Nessa hipótese, o efeito da descentralização pode ser o oposto do pretendido. No lugar da democratização e ampliação dos serviços ter-se-ia um recrudescimento na abrangência e qualidade da prestação.

Trata-se do tipo de descentralização que normalmente predomina na América Latina: “descentralização diferenciadora, seletiva e fragmentada”. (BERCOVICI; SIQUEIRA NETO, 2008, p. 60)

Consoante destacado pelos designados autores, os resultados dessa modalidade de descentralização são o aumento das desigualdades regionais e sociais e a possibilidade de maior fragmentação nacional. (BERCOVICI; SIQUEIRA NETO, 2008, p. 60)

Arretche (2000) soube sintetizar com primazia as condições ou variáveis que influenciam o processo de descentralização de políticas e serviços públicos. Restará patente que muitas das balizas abaixo destacadas, relacionadas à gestão de políticas públicas, coincidem com as análises realizadas nos tópicos precedentes advindas da experiência evolutiva do saneamento e do federalismo brasileiro.

Os fatores determinantes da descentralização podem ser assim aglutinados: fatores do tipo estrutural; fatores do tipo institucional e fatores ligados à ação política. (ARRETCHE, 2000, p. 28)

Os fatores do tipo estrutural concernem à capacidade de realizar gastos públicos ou à capacidade político-administrativa da unidade política recebedora das atribuições. Estados e Municípios dotados de maior arrecadação e capazes de instituir condições técnicas para o desempenho do saneamento possuiriam, sob tal perspectiva, melhores condições de concretizar o saneamento. (ARRETCHE, 2000, p. 28-29)

Os fatores do tipo institucional auxiliam a compreensão da natureza das instituições nas quais são tomadas as decisões de gestão e reforma de políticas e serviços públicos. (ARRETCHE, 2000, p. 29-30)

A alargada amplitude do conceito de “instituições” impele a uma restrição de seu escopo para fins operacionais. Para Arrecthe (2000, p. 30-31), são variáveis institucionais relevantes: o legado das políticas prévias, as regras constitucionais que normatizam a prestação de bens e serviços e a engenharia operacional inerente à sua prestação.

Segundo a autora, “processos de reforma de políticas sociais são influenciados pela herança institucional de programas anteriores”. Tal influência seria sentida de diversos modos. As instituições participantes das políticas passadas, muitas delas robustas e consolidadas, tendem à autopreservação, pois congregam grupos de interesses que correm o risco de ser reorganizados ou mesmo destituídos no curso das reformulações. (ARRETCHE, 2000, p. 31)

Uma notória demonstração da tendência para autopreservação se encontra na resistência de companhias estaduais de saneamento em relação às tentativas de municipalização dos serviços.

As políticas do passado, por favorecem determinado nível de governo, criam nessa instância uma capacidade técnica inexistente ou diferenciada daquela encontrável nas demais esferas federativas originariamente excluídas do processo decisório e de execução dos serviços. Recursos humanos, instrumentos técnicos, infraestrutura, capacidade legal e outros se encontram concentrados em poucas esferas, dificultando e tornando custoso o processo de descentralização para unidades desprovidas desses meios. Trata-se do fenômeno da policy preemption (designação dada pela ciência política norte-americana), típico de arranjos federativos, em que “o espaço político ocupado por um nível de governo limita a margem de ação dos demais”. (ARRETCHE, 2000, p. 31)

No caso do saneamento, a concentração de recursos em nível federal e nas empresas estaduais, detentoras de recursos técnicos e humanos, é um demonstrativo inequívoco da policy preemption.

A forte influência de desenhos institucionais anteriores se vê também na limitação que provoca no quadro conceitual necessário à identificação de problemas e à proposição de soluções em cada tipo de política ou serviço (ARRETCHE, 2000, p. 31). Assim é que, no saneamento, os subsídios cruzados figuram como alternativa para a sustentabilidade econômica dos serviços, caracterizando-se, ainda hoje, como uma prática corriqueira nos modelos de prestação dos serviços, em detrimento do aprimoramento das condições de operação dos sistemas. Os métodos e abordagens de gestão se perpetuam quase que por inércia, a não ser que novas posturas administrativas adquiram espaço na mentalidade dominante dos agentes tomadores de decisão.

Quanto às normas constitucionais que cuidam da prestação dos serviços, a forma como distribuem as competências entre as esferas de governo pode incentivar ou dificultar processos de descentralização. (ARRETCHE, 2000, p. 31)

As determinações constitucionais a respeito do saneamento dão margem, conforme demonstrado adiante, a interpretações discrepantes a respeito da titularidade dos serviços. A dimensão normativa não oferece, sob tal aspecto, incentivos consistentes para a descentralização, contribuindo para divergências sobre o tema.

A última variável institucional a ser detalhada, a engenharia operacional própria da prestação, diz respeito às características inerentes de cada política pública que tornam sua implantação um desafio específico, a demandar capacidades e recursos adaptados. (ARRETCHE, 2000, p. 32)

Demonstrou-se, no capítulo 2 deste trabalho, que um item relevante da engenharia operacional do saneamento básico, em especial dos serviços de água e esgoto, consiste na necessidade de elevados investimentos iniciais para a instalação das redes. Esse fator impede que esferas de governo com menor capacidade de investimento possam assumir com primazia suas funções de aprimoramento e expansão de infraestrutura.

Os fatores ligados à ação política englobam a relação entre Estado e sociedade e entre os distintos níveis de governo. Segundo essa visão, o sucesso dos modelos de descentralização são mais consistentes nos governos locais em que se constata uma cultura cívica significativa incentivando a participação democrática na condução dos rumos públicos. Trata-se de da construção de um “capital social” pronto a assumir a responsabilidade das novas funções recebidas. (ARRETCHE, 2000, p. 33)

De outro lado, a existência de uma efetiva ação de apoio dos entes federados mais abrangentes em favor das unidades locais pode significar o principal fator de sucesso na transferência de funções.

Os problemas administrativos e financeiros dos governos subnacionais dificultam a desconcentração de funções. Isso torna o apoio de entes de maior abrangência e poderio um fator de peso na condução de processos desse gênero, a oportunizar subsídios técnicos, financeiros e uma coordenação mínima de esforços.

Não se situa entre as metas do trabalho a exaltação absoluta da gestão compartilhada como mecanismo gerencial ou administrativo para prestação de serviços de saneamento. Situações haverá em que a prestação local, restrita ao ente titular originário da competência, será viável e até mesmo aconselhável.

Ocorre que, diante de todas as variáveis destacadas, propugna-se pela ideia de que a gestão compartilhada, em médio e longo prazos, pode, ao lado da evolução tecnológica, fortalecer o conhecimento técnico e econômico a respeito da prestado dos serviços públicos, consolidando centros de excelência que poderão evoluir até mesmo para a gestão exclusivamente municipal do saneamento.

Entre os extremos da centralização e descentralização absolutas pairam figuras intermediárias, cujo fundamento reside na relação interfederativa e no apoio mútuo, e não nas simples avocação ou delegação de competências.

Frise-se que embora o federalismo seja, inegavelmente, um sistema de repartição de competências que ora se apresentará mais centralizado, ora tenderá para a descentralização, a depender das vicissitudes históricas e da cultura política de cada Estado, sua verdadeira força reside na possibilidade de conjugação matricial de responsabilidades, organizadas em um complexo arranjo de interferências recíprocas.

Assim, o debate entre centralização e descentralização mostra-se um tanto estéril e vazio. A pura descentralização apresenta elevados riscos e a cooperação intergovernamental adquire papel preponderante na construção de um federalismo eficiente.