• Nenhum resultado encontrado

Fundamentos da limitação da jornada e fixação dos tempos livres: a limitação da

Capítulo 3: A desconexão

3.1 Fundamentos da limitação da jornada e fixação dos tempos livres: a limitação da

separação das fronteiras entre o profissional e o pessoal

O trabalho constitui fator condicionante de realização de uma vida digna, fonte de subsistência material e elemento de constituição do ser social, enquanto sujeito de direito294, porém, como sabido, o trabalho deve ser concebido como um valor, cabendo ao direito, corrigir a desigualdade inerente à relação de trabalho, instituindo mecanismos para equalizá- la e humanizá-la, destacando-se, a limitação da jornada de trabalho e a fixação dos períodos de descanso.

A limitação do tempo de trabalho ampara-se em 2 pontos fulcrais: a duração da jornada e os períodos de descanso, compreendendo-se os intervalos, licenciamentos/afastamentos, repousos semanais e férias e conquanto categorias distintas, estão indissociavelmente interligadas como alicerces de proteção e dignificação do trabalhador295, amparadas em uma estrutura principiológica comum.

Como referido, essa limitação foi construída a partir de uma organização jurídica que tem como base uma clássica divisão, definindo, a partir de uma «referência ao tempo e ao local de trabalho»296, tempos de trabalho, estes centrados em critérios quantitativos e

294 ALMEIDA, E. A.; SEVERO, V. S. Op. cit. p. 13-14

295 SÜSSEKIND, A.; MARANHÃO, D.; VIANNA, S. Instituições de Direito do Trabalho, vol. II. 14º ed. SP: LTr, 1993. p. 703.

296 LOKIEC, P. Op. cit. p. 47. Como é sabido, no ordenamento jurídico as situações excepcionais sempre conviveram com o ordinário. Nessa linha, a Diretiva 2003/88 estabelece exceções e derrogações, por via legislativa ou convencional, nomeadamente aos arts. 3º, 4º, 5º, 5º, 6º, 8ºe 16º, em razão das características das atividades realizadas, nas quais não seja possível uma interrupção, em razão da inexistência ou incompatibilidade de um controle, em razão do local de prestação de serviços, destacando-se, cargos de confiança, trabalhos no âmbito familiar, domínio litúrgico, trabalho externo, serviços de guarda e vigilância, caracterizados pela necessidade de continuidade, serviços dispensados em hospitais ou similares, médicos em formação, trabalhos em portos ou aeroportos, imprensa, rádio, televisão, produção cinematográfica, correios ou telecomunicações, ambulância, sapadores-bombeiros ou proteção civil, transmissão e de distribuição de gás, água ou eletricidade, de serviços de recolha de lixo ou de instalações de incineração, etc (arts. 17 e 18).

qualitativos, relacionados à distribuição da jornada e sua intensidade e tempos de descanso, estabelecendo uma fronteira entre a vida pessoal e profissional.

É certo que o limite entre o tempo subordinado em contraposição a um tempo livre297, nunca foi “rígido” ou delimitável como o de uma figura geométrica, pois, sempre se exportou a vida privada para a profissional e vice-versa298, há obrigações que extrapolam

essa “fronteira” e o reconhecimento dos direitos da personalidade, impôs um distinto confronto com os perímetros da subordinação.

Nesse sentido, MARTINS aponta que «a disponibilidade implicada pelo contrato de trabalho não é total ou absoluta e a subordinação jurídica tem limitações funcionais temporais impreteríveis»299. Há obrigações que extrapolam o tempo de trabalho, como o dever de não concorrência, o dever de boa-fé300 e há nos tempos de trabalho, espaços exclusivos do trabalhador, inseridos na intimidade e privacidade.

No entanto, juridicamente, o tempo de descanso corresponde a um tempo em que o trabalhador descansa ou pode fazê-lo301. Assim, «a linha de fronteira entre o ‘tempo de trabalho’ e o ‘tempo de descanso’ situa-se naquele momento em que o trabalhador adquire o domínio absoluto e livre da gestão da sua vida privada».302

Todavia, a fronteira referida, que até então regulava as situações ordinárias, atualmente encontra-se “visivelmente fragilizada”, não apenas pela desterritorialização do trabalho, novas competências que envolvem uma intensificação do trabalho intelectual, novas formas de organização nas TICs e a ascensão do cloud computing que implicam em uma ubiquidade e um tempo contínuo, permitindo o trabalho através de qualquer dispositivo, em qualquer tempo e em qualquer lugar, mas também uma distinta cultura de conexão pelas novas gerações que enxergam uma “normalidade” nesse contexto.

Implicada com as TICs na sociedade da informação e da urgência, impera uma «dilatação do conteúdo funcional e da carga intelectual do trabalho»303, bem como, uma cultura da rentabilidade da vida, ensejando um tempo contínuo, «duplicado, sem delay e

297 Idem. Ibidem.

298 RAY, J.-E. Op. cit. (Droit du travail). p. 213. «se o empregado inevitavelmente importa o estresse de vida privada no escritório, ele também exporta sua vida profissional para vida pessoal»

299 MARTINS, J. Z. Op. cit. p. 25-67. 300 HERNÁNDEZ, J. G. Op. cit. p. 19. 301 MARTINS, J. Z. Op. cit. p. 25-67

302 Acórdão Processo 250/13.0 TTCTB.C1, Rel. Paula do Paço. Acesso 27/04/2019, 19h47 min. Disponível na URL: http://bit.ly/2wIZqxn.

vacuidade»304, mediante o aproveitamento de todos os momentos (em salas de espera, restaurantes, espaços de convívio familiar, etc), para acessar redes sociais, emails pessoais e profissionais (bombardeados por diretrizes organizacionais), responder mensagens, tratar indistintamente de assuntos pessoais e profissionais.

Agrava-se a situação a “promiscuidade” como o uso de aplicativos pessoais para fins profissionais - BYOD (bring your own device) que permitem a indiferenciação dos espaços e questões atinentes a privacidade de dados.

Nesse mundo on line, onde os tempos de trabalho são mais flexíveis, imprevisíveis, aumentando a disponibilidade e há grande envolvimento psicofísico e tecnologias “mais invasivas”, torna-se mais evidente o descompasso entre a realidade e a tutela, no sentido de se preservar os distintos tempos e espaços sociais, individualidades e integridade física/mental, tornando-se necessária uma compreensão do tempo de trabalho a partir de uma dimensão quantitativa-qualitativa e o de descanso, a partir de um log off 305, que perpassa por problemas complexos como uma (re)organização dos tempos de trabalho, uma adequada carga informacional e de trabalho (suficiente à ser cumprida dentro de uma jornada de trabalho) e uma limitação da disponibilidade e da conectividade, através de uma desconexão.

Haveria, no entanto, um “direito” à desconexão? Quais seriam seu conteúdo e limites?