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Natureza jurídica da desconexão

Capítulo 3: A desconexão

3.4 Natureza jurídica da desconexão

A definição da natureza jurídica do “direito” à desconexão tem se revelado um dos campos de maior divergência na doutrina, ora sendo enquadrada como uma categoria autônoma, um “direito” novo ou desdobramento do direito à limitação da jornada, descanso, proteção à saúde, intimidade, etc. Trata-se de tema de enorme relevo porque é partir daí que se delimitará seu centro de imputação e os princípios relativos ao seu regime jurídico.

Constitui a desconexão, preponderantemente, uma construção dogmática,335 interligada ou mesmo imbrincada a institutos jurídicos base do direito do trabalho como a limitação do tempo de trabalho, os descansos (dentro da jornada e entre as jornadas, semanais e anuais – férias), licenciamentos, a saúde e segurança, a conciliação entre vida privada e profissional336 e o direito ao lazer.

Dentre os que não vislumbram distinções entre a desconexão e o direito ao descanso ou institutos que regulam o tempo de trabalho (e institutos limítrofes) AMADO337, GÁMEZ338, CARLI 339 e GARZÓN340. Em uma linha intermediária SIMONET a identifica como uma «condição necessária[...] para tornar possível o exercício do direito ao descanso»341. Reconhecendo também a conexão com as normas de organização dos tempos de trabalho e o princípio da conciliação, respectivamente AVILÉS342 e NOBRE343.

335 CARLI, F. R. El “derecho” a la desconexión. In: Revista de Direito do Trabalho. Edição Especial Cielo laboral 2018. SP: Thomson Reuters, 2019. p. RR-41.1. (edição digital). Acesso 03/07/2019, 12h. Disponível na URL: https://tmsnrt.rs/2RS4d9K

336 Idem. Ibidem.

337 Refere que a desconexão não é propriamente um «novo direito» [...], surgindo «como o efeito natural da limitação da jornada de trabalho, isto é, do balizamento do tempo de trabalho através da definição do horário de trabalho de cada trabalhador […]» AMADO, J. Tempo de trabalho e tempo de vida: sobre o direito à desconexão profissional. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15º região, nº 52, janeiro-junho/2018. p. 255-268.

338 Refere tratar-se de «uma mutação do direito ao descanso». GÁMEZ, M. R. V. El derecho a la desconexión: ¿"Novedad digital" o esnobismo del "viejo" derecho al descanso? Revista de trabajo y seguridad social, nº 408/2017. p. 171.

339 Refere que o «conteúdo mínimo do direito à desconexão já se encontra ocupado pelos institutos clássicos que ocupam o tempo de trabalho» e normas que obstam a exisgência de trabalho durante os períodos de repouso ou o trabalho extraordinário.CARLI, F. R. Op. cit. p. RR-41.5-6. No mesmo sentido, DI MEO, R. Op. cit. p. 26.

340 Afirmando que não «há diferença no conteúdo material» entre o direito ao descanso e a desconexão. GARZÓN, M. J. C. Op. cit. p. 437.

341 SIMONET, R. A. El ‘derecho a desconectarse del trabajo’. Análisis desde la perspectiva chilena. Op. cit. (II Encuentro Latinoamericano de Jóvenes Juristas). p. 171.

342 AVILÉS, J. A. F. Op. cit. p. 100.

343 Afirmando que a legislação portuguesa já contempla um “direito à desconexão”, mediante a previsão constitucional de uma organização do tempo de trabalho e a conciliação da vida privada e profissional. Por todos, NOBRE, D. L. O Direito à desconexão. O mundo do trabalho e as novas tecnologias: amigos ou inimigos? n.p. Acesso 24/01/2019, 19h44min. Disponível na URL: http://bit.ly/2QZ5Q4T.

Referindo-a como um direito autônomo, mas a tratando como o direito ao lazer e ao descanso, OLIVEIRA NETO344. Tratando-a como categoria autônoma destacam-se DAGNINO345 e ROTA346 e como um «direito novo», CIALTI e FERNANDES347.

A apreensão jurídica da limitação dos tempos de trabalho e não trabalho, como bens passíveis de resguardo implicou, com relação ao primeiro o direito à limitação da jornada e para o último, o surgimento de um direito, o direito ao repouso ou ao descanso, em suas inúmeras irradiações, pausas, intervalos, descansos diários, semanais, anuais, licenciamentos, etc.

Corresponde então a desconexão, a um instituto clássico do direito do trabalho, a limitação da jornada? Identifica-se com os períodos de descanso (compreendidos lato

sensu)? Se encaixaria em uma nova categoria?

Consoante FERRAZ JR a dogmática se vale de topois para o reconhecimento da

facti species, destacando-se a natureza jurídica a qual é «dada pelas normas que a

disciplinam» e a análise da natureza intrínseca das coisas (natureza das coisas)348.

Assum, a busca pela “natureza das coisas” ou de determinado instituto pressupõe a análise de seus fundamentos ou sua essência, o que implica como pressuposto, o exame do interesse tutelado e vínculo obrigacional, ou seja, quem se beneficia da desconexão e como isso ocorre. Vejamos.

344 OLIVEIRA NETO, C. P. Trabalho em ambiente virtual: causas, efeitos e conformação. SP: LTr, 2018. p. 78-79.

345Aponta a desconexão como um direito subjetivo, «via para afirmar a noção do tempo de não trabalho (de descanso) como o tempo da pessoa livre». DAGNINO, E. Op. cit. p. 1036.

346 Reconhecendo-a como uma «garantia a favor do “always connect workers”». ROTA, A. El debate europeo sobre el derecho a la desconexión en las relaciones de trabajo. In: Anuario internacional sobre prevención de riesgos psicosociales y calidad de vida en el trabajo. Nuevas tecnologías de la información y la comunicación y riesgos psicosociales en el trabajo. Madrid: Secretaría de Salud Laboral y Medio Ambiente UGT-CEC, 2016. p. 287-310. Acesso 12/03/2019, 20h02min. Disponível na URL: http://bit.ly/2XwiKtn.

347 CIALTI, P-H. El derecho a la desconexión en Francia: ¿más de lo que parece? Temas laborales nº 137/2017. p. 163-181. Acesso 12/03/2019, 21h09min. Disponível na URL: http://bit.ly/2K4XOXs. Conquanto FERNANDES, F. L., se refira a um “direito novo” o autor levanta dúvidas sobre se tratar de «medida destinada a garantir a eficácia do actual quadro jurídico» ou «novo instrumento dirigido a adaptar a organização do trabalho». Op. cit. (Organização do trabalho). p. 7-17

348 FERRAZ JR, T. S. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3ª ed. SP: Atlas, 2001. p. 139

3.4.1 Dimensões e beneficiários da desconexão

Há divergência doutrinária com relação às dimensões preponderantes da desconexão variando entre direito, dever ou a associação de ambos.

AMADO que a relaciona com os descansos, a concebe muito mais como um “dever de não conexão patronal” do que um “direito à desconexão do trabalhador»349; MOREIRA refere-se à desconexão como “direito fundamental” à privacidade350; na linha de que constitui um direito, SOUTO MAIOR351, ALMEIDA, SEVERO e OLIVEIRA 352 e MOLINA entende tratar-se de um «princípio geral de desconexão do trabalho».353

Dentre os defensores de que possui duas dimensões, destaca-se RAY que se refere a um direito-dever de desconexão354 e SIMONET que defende a existência de um direito a se desconectar propriamente dito e o direito a não ser obrigado a trabalhar em períodos de descanso, relacionando-se a primeira dimensão com uma conduta ativa do trabalhador e passiva do empregador, garantindo-se de forma bastante ampla, o direito de se desligar do trabalho, funções, responsabilidades, computadores portáteis, plataformas, etc355, enquanto a segunda dimensão representaria uma conduta ativa apenas do empregador, o de não exigir trabalho durante os períodos de descanso independentemente do meio ou finalidade, o que do ponto de vista do trabalhador representa apenas uma potencialidade de fazê-lo sem sofrer represálias356.

Com relação aos favorecidos caminha a doutrina com uma certa homogeneidade no sentido de que ocorre uma sobreposição de interesses, entre os comuns dos contratantes, os exclusivos do próprio trabalhador e do empregador e os interesses da coletividade357.

349 «cremos que é mais de um “dever de não conexão patronal” do que de um “direito à desconexão do trabalhador” que, in casu, se trata». AMADO, J. L. Op. cit. (Tempo de trabalho). p. 264.

350 MOREIRA, T. C. Op. cit. (O direito à desconexão) p. 10.

351 SOUTO MAIOR, J. L. Do direito à desconexão do trabalho. Revista do TRT da 15.a região, Campinas, nº 23, Jul-Dez/2003. p. 311.

352 ALMEIDA, E. A.; SEVERO, V. S. Op. cit. p. 39-41; OLIVEIRA, C. D. D. Direito à desconexão do trabalhador: repercussões no atual contexto trabalhista. Revista IOB Trabalhista e Previdenciária, SP, v. 22, nº 253, jul/2010. p. 65.

353 MOLINA, A. A. Dano existencial por violação dos direitos fundamentais ao lazer e à desconexão do trabalhador. Revista dos Tribunais on line (versão física: Revista de Direito do Trabalho), vol. 175, 2017. p. 1-25. Acesso 06/03/2018 14h30min. Disponível na URL: http://bit.ly/2ZfH4Aw.

354 RAY, J.-E. Actualité des TIC. Tous connectés, partout, tout le temps. Droit Social, Paris, nº6, 2015, p. 516- 527.

355 SIMONET, R. A. Op. cit. p. 173. 356 Idem. Ibidem. p. 173-174.

Entretanto, ponto essencial, a sobreposição dos interesses não os iguala, enquanto um é guiado pelo viés econômico o outro se pauta pela dignidade humana.

A desconexão, como patente, se relaciona diretamente com a «disciplina geral do tempo de trabalho»358.

No entanto, a concebemos lato sensu, ou seja, aquela que se dá fora do horário de trabalho (do trabalho) e no trabalho359, porque sua razão de ser repousa exatamente na preservação da integridade e um equilíbrio psicofísico-social. Representa como tal, a faceta de direitos fundamentais já consagrados, voltados à tutela da proteção, saúde e segurança, primordialmente e como garantidores da privacidade/intimidade do trabalhador, pressupondo uma organização do trabalho adequada à capacidade/necessidade de absorção informacional e o estabelecimento de uma fronteira entre o tempo de trabalho e não trabalho, permitindo a fruição de um adequado tempo livre.

Isso implica em assumir que sofre idêntica carga axiológica de instituto clássico do direito do trabalho, que regula o tempo de trabalho, atuando na limitação da heterodisponibilidade, ao impor um limite quantitativo/qualitativo à jornada e ao contemplar a fruição de tempos livres, descansos fora do trabalho.

É certo, como referido, que o reconhecimento da natureza jurídica da desconexão guarda direta relação com aquilo que se concebe como seu conteúdo. Entendida como o desligamento do trabalho, por certo a percepção é uma. Estendendo-a também ao “no trabalho”, a percepção só pode ser outra, por atuar na limitação da jornada, mas em duas dimensões distintas.

A limitação da jornada e os descansos, enquanto direitos trabalhistas específicos (art. 59, nº1, d), constituindo categoria dos direitos fundamentais no ambiente de trabalho, inserem-se num núcleo homogêneo e um sistema que tem por escopo, a garantia da proteção da pessoa, através de sua saúde e vida relacional, durante o curso da relação de trabalho360, o que lhes confere o status de normas essenciais à convivência social, de ordem pública.

Tal contexto implica que a limitação da jornada e os descansos sejam compreendidos em sua forma ampla, ensejando que a desconexão não constitui em realidade

358 DI MEO, R. Op. cit. p. 26.

359 Também, MOREL, L. Le droit à la déconnexion en droit français: La question de l’effectivité du droit au repos à l’ère du numérique. Labour & Law Issues, Bologna, vol. 3, no. 2, 2017, p. 1-16. Acesso 18/05/2019, 18h0min. Disponível na URL: http://bit.ly/2QUau4b.

360 LECCESE, V. L’orario di lavoro. Tutela costituzionale della persona, durata della prestazione e rapporto

uma categoria autônoma, mas está contida naqueles, enquanto limite da heterodisponibilidade.

Corolário, anuímos que as dimensões referidas por SIMONET são complementares, vislumbrando-se que a desconexão possui dimensões que afetam a esfera jurídica tanto do trabalhador, como do empregador e corresponde também aos interesses da sociedade.

Para o empregador, preponderante destaca-se uma faceta negativa que consiste no dever de instituir mecanismos que implementem a desconexão, como bloqueios de e-mails, mensagens inibidoras de trabalho durante os períodos de descanso, repouso, licenças, vedação para punição do trabalhador que se desconecte e restrição a uma “intoxicação” informacional, que se reflete em uma adequada carga de trabalho.

Para o trabalhador, em duas dimensões, uma positiva que deriva daquele dever, ensejando o direito de se “desconectar” do trabalho com a finalidade de usufruir os repousos, além de fazer jus a uma limitação da heterodisponibilidade e também uma dimensão negativa correspondente a um dever de se desconectar ante os interesses do empregador e da própria sociedade, o que autoriza que as legislações estipulem mecanismos protetivos não apenas em face de ingerências e coações do empregador, mas com relação a própria disponibilidade do trabalhador, inibindo renúncias (art. 237, nº 3 CT, art. 36 da CRI) e visando dificultar exemplificativamente a comercialização dos períodos de disponibilidade, como ocorre com a vedação para que o trabalhador exerça outra atividade remunerada durante a fruição dos descansos anuais (art. 247, nº1 do CT e art. 138 da CLT).

Contudo, se a desconexão já se encontra contemplada pelo direito à limitação jornada e descansos, qual seria a razão para uma abordagem dogmática ou um tratamento jurídico?

Ao se identificar uma nova organização e distribuição dos tempos de trabalho, flexíveis e digitais é nítido que se está a exigir uma requalificação jurídica361, a fim de garantir-se a plena eficácia do direito à limitação da jornada/descanso, na medida em que «a falta de regulação institucional da articulação entre vida privada e profissional, longe de garantir uma existência mais equilibrada, representa riscos para a efetividade coletiva»362.

361 SUPIOT, A. Op. cit. (Homo Juridicus). p. 158.

362 CLÉACH, O.; METZGER, J.-L. Le télétravail des cadres: entre suractivité et apprentissage de nouvelles temporalités. Sociologie du Travail. França, vol. 46, n° 4, 2004. p. 433-450. Acesso 24/06/2019, 14h50min. Disponível na URL: http://bit.ly/2Fv8A5z.

Justifica-se, portanto, uma “nova” abordagem, a partir de novos cenários enfrentados por esses institutos, embora não se resuma aos trabalhos em TICs, pois, como discorremos, insere-se num contexto bem mais amplo, de flexibilizações nos tempos de trabalho, transformações produtivas, uma sociedade do conhecimento, com aqueles se entrecruzam em sinergia363.

Dito isso, mister uma necessária limitação à heterodisponibilidade no tocante à conectividade, frente a uma densificação do conteúdo informacional, um incremento da disponibilidade e um esbatimento da fronteira jurídica da disponibilidade e entre espaços- tempos de trabalho e não trabalho, potencializadores de inúmeros distúrbios, como fadiga, doenças mentais, além de implicarem invasão da privacidade e inviabilizarem a conciliação vida família-trabalho, contexto que nos delimita seus centros de imputação, a ordenação do tempo de trabalho, prevenção de riscos laborais e a conciliação da vida pessoal e familiar.364

Necessário advertir, que a desconexão, embora em área limítrofe, não pode ser vista como uma contratualização dos tempos de não trabalho365, mas uma restauração da qualificação jurídica dos descansos e dos limites da heterodisponibilidade.

Não por menos, informe da OIT apregoa que caberá aos parceiros sociais, na era digital, a instituição de mecanismos para a melhor administração do tempo livre e «novos meios para aplicar de forma eficaz a nível nacional determinados limites máximos de horas de trabalho, por exemplo, estabelecendo o direito a desconexão digital»366.