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FUNDAMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM PROGRAMA DE RD

A concepção de Redução de Danos que orientou nosso trabalho se alinha com a definição proposta por Andrade (2002) que assim considera as ações que visam reduzir os riscos e da- nos de natureza biopsicossocial provocados e/ou secundários ao uso nocivo de drogas. Esta definição demonstra sua atuali- dade, em comparação com a posição oficial recomendada pela Associação Internacional de Redução de Danos.

Redução de danos é um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Por definição, a redução de danos foca na prevenção aos danos; ao invés da pre- venção do uso de drogas; bem como foca em pessoas que seguem usando drogas.(ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE REDUÇÃO DE DANOS, 2010)

De acordo com Andrade (2002), as ações de redução de danos podem ser individuais e/ou coletivas e são pautadas em alguns pressupostos básicos dentre os quais destacamos a complexidade do fenômeno; o processo de adoecimento, como resultante da multideterminação de fatores biopsicossociais; o pragmatismo; a consideração das particularidades, diversida- des culturais, direitos humanos e de cidadania de cada usuá- rio; e o trabalho intersetorial, como modo de organização dos serviços de atenção.

Sobre a complexidade do fenômeno, as drogas são subs- tâncias encontradas em todas as sociedades e agrupamentos humanos, ao longo da história, com significados variados, que vão desde a dimensão sagrada ao flagelo público, desde a di- mensão de remédio à de veneno. Na contemporaneidade, o uso ritualístico cedeu espaço ao uso indevido, norteado pela lógica de

consumo das sociedades capitalistas, regidas por um imperativo de consumo e gozo obtido a qualquer preço. (MELMAN, 2003)

Do ponto de vista do processo saúde-doença, Machado e colaboradores. (2007) postulam que seus fatores causais são multideterminados sob a influência da dimensão biopsicosso- cial. Nesta perspectiva, entendemos que o uso nocivo de dro- gas representa o resultado de condições familiares, econômi- cas, educativas e socioculturais de cada sujeito. Além disto, é importante levar em conta as possibilidades de organização e acesso aos serviços de assistência social, à saúde, educação, cidadania e lazer como fatores também importantes ao se con- siderar os mecanismos de adoecimento em uma população.

Como consequência, a adoção de comportamentos menos arriscados em relação ao consumo nocivo de drogas depende da implementação de estratégias transdisciplinares. Para isto, as práticas de redução de danos enfatizam o trabalho inter- setorial, consoante com a articulação da rede dos serviços de saúde, de assistência social, jurídica e educacional, como a forma mais efetiva de enfrentamento da questão. É importante sa- lientar que as propostas e intervenções devem ser planejadas e executadas de modo pragmático, mediante o estabelecimento de metas passíveis de serem alcançadas, que devem ser defini- das junto com os usuários.

A redução de danos não se pauta, portanto, na lógica da abstinência, com sua resultante política de proibição e “to- lerância zero”. Neste sentido, Patrick Mordelet (2002), alerta para os “efeitos perversos” dos modelos centrados unicamente na proibição/abstinência, pois eles podem levar a um aumento da segregação, ao considerar o usuário como um marginal, e, assim, empurrá-lo para a clandestinidade. A título de exemplo, chamamos a atenção para a apreensão de adolescentes que, por serem pegos fumando um cigarro de maconha, são levados

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A adolescência e o consumo de drogas: uma rede informal de saberes e práticas

pela polícia a uma delegacia, sem nenhuma história anterior de delinquência; ou, ainda, o risco de exposição a agressões por parte de agentes públicos devido a um consumo que, por vezes, pode ser caracterizado como “recreativo” ou “experimental”. Nestes casos, o uso é, no geral, motivado por curiosidade e/ou vontade de vinculação ao grupo de adolescentes e às atividades de lazer, não sendo possível falar de dependência. Ao invés de resolver o problema, este tipo de abordagem aumenta os riscos e danos que recaem sobre o sujeito.

Predominantemente, as abordagens ainda propõem a abstinência frente ao consumo, enquanto, em contrapartida, a Redução de Danos - agora política pública adotada pelo Minis- tério da Saúde, desde 2005 (Portaria nº 1.028) -, por considerar as particularidades subjetivas e a diversidade cultural dos usu- ários, nos leva a crer que, caso queiramos construir estratégias práticas efetivas, é necessário, antes de tudo, escutá-los, para identificar quais os valores e significados que eles atribuem ao seu uso e sob que circunstâncias específicas ele se dá.

Portanto, é indispensável contar com a participação dos usuários no planejamento e desenvolvimento das intervenções. Entre outras questões, salientamos a importância de investi- gar quais os laços que unem o sujeito à droga, seus sentidos na vida do sujeito e o que ele acha que agrava ou atenua este recurso a uma substância psicoativa. Por isto, as estratégias de redução de danos devem ser estabelecidas de acordo com as particularidades dos usuários, e ajustadas às características das populações-alvo, sem perder de vista a atenção aos fami- liares, à comunidade e à sociedade de modo geral.

A Redução de Danos considera o usuário de drogas, aci- ma de tudo, como um cidadão que vive em sociedade, o que implica uma dialética de direitos e deveres. Na condição de cidadão, ele tem direito à seguridade social, ao trabalho e a

usufruir do sistema público social de saúde e educação. Como sujeito de direitos, o indivíduo é considerado coautor de sua própria história, sendo responsável pelas consequências advin- das do uso indevido de drogas. Mas, como aplicar esta máxi- ma quando se trata de crianças e adolescentes, indivíduos em processo de formação física e psíquica, ainda não totalmente responsáveis, subjetiva e socialmente, por seus atos?

Nessa perspectiva, fundamentamos a elaboração de um programa de redução de danos com crianças e adolescentes, cientes de que a adoção de comportamentos menos arriscados em relação ao consumo nocivo destas substâncias depende de estratégias transdisciplinares. Consideramos, ainda, que, no caso de crianças e adolescentes abrigados, sobrepõem-se, ao próprio consumo de drogas, questões específicas relativas à situação de abrigamento.