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2.1 Breves notas sobre o contexto produtivo das animações

2.1.4 Gênero e corpo na animação

Diante de estratégias narrativas aliadas à comicidade, a animação atinge alguns de seus principais objetivos com a narração de acontecimentos. Wells (1998, p. 187) destaca ainda que o animador pode utilizar da animação, por ter uma linguagem distintiva, para incitar o debate de problemáticas sócio-políticas importantes, contemporâneas da produção do

65 produto animado, que, consequentemente, podem ser colocadas em pauta para que haja uma reconfiguração de códigos e condições representativas tradicionais e dominantes de determinadas temáticas. Aqui, se encaixa o objeto de pesquisa desse estudo, a série

SuperDrags.

Vale ressaltar, nessa secção, dois aspectos referentes à animação que se relacionam diretamente com a série animada em análise e que durante a evolução histórica da animação tornaram-se quesitos a serem debatidos. Primeiramente, a temática da representatividade do corpo, e não menos importante, a discussão de gênero nas animações (Bell, 1995; Jeffords, 1995; Nelmes, 2012; Sells, 1995 & Wells, 1997, 1998, 2012). Ademais, é importante frisar que a discussão dessas duas temáticas também gera pressupostos por toda a história do cinema em geral.

Quanto ao primeiro tópico, pode-se afirmar que o corpo sempre esboça uma reação a uma ação e, na animação, ele é ainda um aspecto que merece atenção redobrada, porque ali, é construído de uma maneira a reforçar uma expressão simbólica visto que no seu processo de criação, a animação atua com um viés de representação do corpo.

Dessa maneira, o corpo pode desenvolver oito competências das quais a animação propõe-se a fazer uso para atingir seu objetivo as vezes narrativo-semântico e outras vezes representativo-simbólico de maneira a deixa a definição do corpo fluída, além de ignorar as premissas sociais ou políticas da formação do corpo. A primeira é a sua maleabilidade que permite ao animador atribuir-lhe com os traços a forma que quiser. A segunda habilidade relaciona-se com a possibilidade de fragmentação do corpo o qual pode ser dividido e remontado como o animador bem desejar. A terceira capacidade envolve o poder do corpo em ser um espaço contextual. O corpo ser tratado como uma máquina compreende a quarta aptidão que lhe pode ser atribuída. A possibilidade de voar, levantar objetos pesados, experimentar violência sem dor e outras atividades relacionadas a situações impossíveis abrangem a quinta habilidade que o corpo pode ter na animação. A sexta condição envolve a reação por emoções de maneira explicitas que é intrínseca do corpo. A sétima capacidade compreende a equiparidade entre os corpos de seres humanos, animais e/ou criaturas quanto a tamanho, à força etc. E, por fim, a última competência consiste na redeterminação de padrões físicos de gênero e espécie (Wells, 1998, pp. 188-189).

Essa última competência indica a relação que o corpo como forma representativa na animação tem com o debate das questões de gênero, cerne do segundo tópico destacado acima. Esse segundo quesito compreende como a masculinidade e como a feminilidade são apontadas nas animações, tanto na produção desses produtos culturais quanto na questão da representatividade dos gêneros em seus contextos narrativos. Wells (1998, pp. 190-196) ressalta em suas análises que em grande parcela das animações, a masculinidade é

66 representada pela hiperbolização do físico e pela idealização da figura masculina como aquela que resolve os problemas quando uma situação de crise se instaura.

Quanto à representatividade da feminilidade, é averiguada que na década de 1970, aliada à ascensão da teoria feminista, há uma expansão da estética feminina nas animações, que deixa de ter um caráter extremamente sexualizado e busca uma equiparidade representativa em relação a figura masculina. Além disso, a entrada de mulheres no mercado de produção que outrora era predominantemente masculino proporcionou consequentemente que a temática de gênero fosse discutida também nas próprias narrativas das histórias contadas pelas animações (Nelmes, 2012, pp. 266-267).

Inclusive, Wells (1998, p. 200) assinala que a estética feminina nas produções animadas compreende a mudança da representatividade da mulher de objeto para sujeito; a proposta da linguagem como agente expressivo; o abandono de formas conservadoras além de a criação de textos mais radicais e a busca da mulher por revelar-se mulher com a percepção do seu corpo a fim de ressignificar a sua identidade social.

A importância de se estudar o gênero e a sexualidade tanto na animação como em qualquer outro produto cultural na contemporaneidade é expressa pelo o anseio da sociedade em compreender mais sobre quem somos. Consequentemente, os produtos culturais conseguem traduzir esses interesses individuais, por meio da narrativa e da apresentação de imagens a fim de ilustrar realidades diferentes e levantar discussões.

Ainda nessa discussão sobre gênero na animação, pode-se afirmar que a tendência de atribuir características humanas a animais e objetos, iniciada em 1913, por Winsor McCay na intenção de dar mais personalidade a suas personagens, foi intensificada pelas produções da Disney no início do cinema de animação e durante a evolução da animação consegue refletir claramente a dominância masculina sobre aquilo que é feminino (DelGaudio, 1980). Mais uma vez aqui cabe lembrar que o corpo constitui um vocabulário básico no qual são determinados componentes da masculinidade e feminilidade e ainda é válido reforçar que “a representação da sexualidade é claramente uma metodologia dominante para localizar o gênero, mas é também a arena de representação mais desestabilizada e ambivalente da animação” (Wells, 1998, p. 205)51.

Assim, o início do cinema de animação, ao representar a masculinidade e a feminilidade, recorre aos estereótipos do que é masculino e feminino a fim de que houvesse uma fácil distinção entre o que é masculino e feminino em muitos âmbitos, sendo a corporalidade um deles. Por conseguinte, aliado à temática do corpo, a sexualidade passa a ser uma outra arena a ser explorada pelas produções animadas para a definição da

51 Texto original: “The depiction of sexuality is clearly a dominant methodology by which to locate gender but it is

67 representatividade dual dos gêneros. Porém, o que é observado, na contemporaneidade, é o aumento da discussão, nas animações e sobretudo na sociedade, das políticas de gênero abordando as políticas queer52, visto ainda o incentivo ao desenvolvimento de uma discussão mais crítica sobre gays e lésbicas no começo dos anos 2000. Essa nova perspectiva crítica favoreceu o debate sobre as definições de sexo e sexualidade, engendradas historicamente de maneira dominante e socialmente restritivas. As animações se baseiam nessa perspectiva e muitas vezes passaram a utilizar essa temática como fonte de humor para suas narrativas, além de promoverem a ideia de definirem e representarem as ideias de gênero em fluxo, negando uma definição mais concreta de identidade de gênero e de identidade sexual ao romper com as demarcações físicas e ideológicas do corpo antropomorfizado existentes nas animações (Wells, 1998, pp. 206-208).

O foco é que as noções de masculinidade e feminilidade dominantes podem ser pautas para uma discussão numa narrativa animada e ali serem assim desfeitas. Atualmente, existem animações as quais podem, por sua vez, usar o humor na construção de suas narrativas de modo a decompor a dominação que define o masculino e o feminino como acontece na série

SuperDrags, objeto de estudo desse trabalho. Dessa maneira, a próxima secção abordará o

humor que também é um objeto utilizado pela animação e especificamente em SuperDrags como um artificio para chamar a atenção à temática LGBTI+ que a série possui.