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O gênero ficcional televisivo versus a narrativa complexa nas produções da Netflix

Foi indagado anteriormente nesse estudo, se a máquina televisa seria capaz de suportar a era da globalização, e com a intenção de responder a vários questionamentos em torno desse paradoxo, muitos pesquisadores de todos os cantos do mundo se debruçaram e

38 muitos ainda procuram compreender melhor o universo da tecnologia. Compreender, principalmente o porquê que a internet, como ferramenta de tecnologia digital foi a responsável por causar tanto reboliço no panorama televisivo, tanto na sua produção e distribuição como no seu consumo (Lotz, 2007; Uricchio, 2009; Miller, 2009; Evans, 2011; Lacalle, 2011; Mittell, 2012; Léon, 2014; Silva, 2014 & Souza Filho, 2015).

Souza Filho (2015, p. 101) considera que o reflexo do uso da tecnologia digital no universo televisivo é o ganho de uma dinamicidade visto que, na atualidade, a distribuição do conteúdo dissipa-se por diversas vias que otimizam o tempo daqueles que consomem os produtos audiovisuais, que antes eram exclusivos da caixa mágica televisiva.

Logo, a viabilidade de assistir à TV por meio de dispositivos móveis, como

smartphones e tablets; a chegada dos canais fechados; a possibilidade crescente do VOD16,

da gravação de conteúdos da grelha televisiva por meio de dispositivos tecnológicos e do NVOD17, técnica de vídeo pay-per-view (PPV) usada por emissoras de televisão multicanais

que querem atender um público que paga por uma programação específica e mais restrita; e além disso, a distribuição e a criação de conteúdo por plataformas digitais e redes sociais soam como um trunfo para espectadores dos produtos audiovisuais televisivos. Afinal, a cada dia, no imediatismo de um mundo globalizado, o consumidor ganha mais protagonismo e adquire um poder sobre o âmbito televisivo que outrora não tinha, quando a TV era quem preconizava o que deveria ser e quando deveria acontecer, fazendo os espectadores organizarem seus cotidianos em favor de sua programação.

Claramente, o gênero narrativo ficcional seriado da máquina televisiva também sofreu muitas mutações diante das mudanças que aconteciam a volta do mundo, já que suas histórias são releituras desse mundo. Nesse enquadramento e a partir de uma trajetória científica baseada em investigações coesas e coerentes, pode-se aferir que o storytelling do gênero ficcional televisivo, especificamente o das séries, passou por uma reforma que lhe proporcionou uma complexidade narrativa.

Segundo Mittell (2012, pp. 36-37), a complexidade narrativa, definindo historicamente, iniciou no universo televisivo estadunidense por volta da década de 1970 e 1980, com o sucesso de novelas que atingiram um alto grau de popularidade e aprovação, como é o caso de Dallas e Dynasty. Agora, conceitualmente, de uma maneira mais generalista, a complexidade narrativa compreende uma redefinição de modelos episódicos os quais sofreram influência da narração em série atingindo, portanto, um equilíbrio volátil entre essas escolhas. Além disso, esse novo modelo híbrido propõe que o formato seriado se desvincule das novelas, por conta das narrativas genéricas encontradas no gênero novelístico, sendo

16 VOD é a sigla para Video On Demand, traduzindo para o português é vídeo sob demanda. 17 NVOD é a sigla para Near Video On Demand.

39 assim a concepção que se tem é que a complexidade narrativa emerge como um modelo de narrativa diferenciado e contemporâneo.

Ressalta-se ainda que as transformações na indústria midiática televisiva, no comportamento do público e nas tecnologias convergem para o surgimento da complexidade narrativa. As mudanças na indústria televisiva reforçaram o engendramento da complexidade narrativa na televisão norte-americana, porque a quebra da lógica televisiva, anterior a esse período de inovação, tratava a TV como um meio de comunicação massivo que apenas servia para a manutenção social devido ao poder que detinha. Aliado a esse aspecto, a emergência da complexidade narrativa na televisão contemporânea dos Estados Unidos proporcionou um novo padrão comportamental do público que passou a ter a necessidade e a satisfação na legitimidade que a realidade ficcional televisiva apresentava, além de a existência de um apelo para os produtores dos audiovisuais ficcionais (Mittell, 2012, pp. 33-34).

Quanto às inovações tecnológicas, o controle definitivamente da lógica televisiva passa para o espectador. É necessário destacar que o aparecimento de mais canais, de canais exclusivos, a possibilidade gravar programas televisivos, além de o surgimento de mecanismos e ferramentas digitais oriundas da ubiquidade da internet capazes de transmissão online são sinais de que o gênero ficcional seriado também precisava de transformações a fim de adaptar-se a nova maneira que caracterizava seu consumo (Mittell, 2012, pp. 34-36).

Em suma, tanto no meio televisivo quanto em outras plataformas produtoras de conteúdo audiovisual ficcional, é fácil de notar que “a complexidade narrativa oferece uma gama de oportunidades criativas e uma perspectiva de retorno do público que são únicas [...]” (Mittell, 2012, p. 31).

Em seus estudos sobre a retroalimentação entre a televisão e as novas tecnologias, Lacalle (2011) frisa a configuração de novos modelos narrativos e novas modalidades de cooperação textual, os quais alteram os moldes de texto e de interpretação incitando à

Transmedia Storytelling18. Assim, a autora distingue que

[...] de fato, a extensão das narrativas televisivas às novas tecnologias é considerada um dos principais motores da renovação da ficção televisiva, em um momento em que o cinema se dedica mais a conservar seu patrimônio semiótico do que a inovar, ou então recorre a gêneros ainda raros ou quando não completamente ausentes das salas de cinema - sobretudo o documental. No entanto, vale lembrar que é precisamente o específico da televisão - a recepção concomitante com outras atividades do lar e o caráter seriado que caracteriza a estrutura de seus relatos, - que converte a retroalimentação em uma prática produtivo-interpretativa (Lacalle, 2011, p. 82).

18 Transmedia Storytelling é um conceito introduzido no debate em 1999 por Henry Jenkins (2006). E, sua origem

está no sucesso do filme A Bruxa de Blair, uma produção independente que obteve uma atividade de fãs na Web mais de um ano antes de sua estreia nos cinemas. Mas, foi em 2003, que o fenômeno da Transmedia Storytelling alcançou seu auge com o filem Matrix (Lacalle, 2011, pp. 81-82).

40 Em vista disso, pode-se afirmar que a televisão não vai ser exterminada pelas novas tecnologias digitais, pois, na verdade, a máquina televisiva se renova a cada dia com as suas hipertelias - televisão a cabo, VOD, NVOD, plataformas de streaming entre outras ferramentas e mecanismos já existentes e futuros - as quais, por sua vez, deslocam a perspectiva massiva da TV para uma nova era onde a personalização da informação coloca o espectador no centro dos holofotes da produção, distribuição e consumo de conteúdo audiovisual ficcional seriado. Ademais, Lacalle (2011, p. 95) reforça a ideia de que no mundo globalizado com a hibridização de meios de comunicação e na mescla de narrativas possíveis, principalmente o jovem, mas também todos os outros usuários das tecnologias digitais são “telenautas”, utilizadores que migram da TV para internet tornando-se juízes da grelha televisiva como um todo e do mundo digital.

Diante de todas essas implementações, modificações e inovações naquilo que concerne o gênero ficcional seriado, vale ainda ressaltar que, na contemporaneidade, há a existência de uma cultura das séries que, segundo Silva (2014, p. 243), é compreendida como resultado da convergência das novas dinâmicas oriundas dos espectadores de séries de televisão, primordialmente, as estadunidenses.

Silva (2014, p. 243), ao observar o cenário de transformação que a TV vem passando nas últimas duas décadas, releva que apesar de a máquina televisiva ainda ser um modelo industrial que exerce impacto na sociedade, a nova gama de possibilidades de produção, distribuição e consumo audiovisual propõe que os produtos ficcionais seriados tem um lugar de destaque dentro e fora dos moldes televisivos. Assim, corrobora-se a existência manifesta de uma cultura de séries, por meio do entendimento de três condições: a sofisticação das formas narrativas, o contexto tecnológico e os novos modos de consumo, participação e crítica textual.

A primeira condição é pontuada por Mittell (2012) e o que Silva (2014, p. 244-246) ressalta é a relação que a complexidade narrativa possui com aquele que cria e escreve as narrativas, conhecido como showrunner, o qual, por sua vez, torna-se o responsável por gerar a singularidade e a característica de replicação que proporciona a serialidade (Calabrese, 1999 & Colonna, 2010) ao produto audiovisual.

A segunda condição de existência da cultura de séries é referida a partir da compreensão do aparato tecnológico que nas últimas duas décadas impulsionou a formação de uma “geração de espectadores capazes e interessados em assistir séries pela internet, através tanto de sistemas de transmissão em streaming, simultaneamente à exibição nos países de origem, quanto de download, via torrent, disponibilizados em sites e fóruns especializados” (Silva, 2014, p. 246). Para tanto, que com a disponibilização de conteúdo no universo digital abrangendo uma espectatorialidade cada vez mais em rede, o que acaba por formar o que Souza (2014, p. 247) chama de cibertelefilia; ou seja, um público cujo interesse

41 é ter a possibilidade de acompanhar o universo das séries e de acessar à produtos culturais, de hoje e de antigamente.

A terceira e última condição aborda a dialética que as séries tendem a estabelecer um relacionamento com o público. Souza (2014, p. 248) retrata que a materialização dessa relação no universo digital acontece por meio da agregação de fãs em comunidades virtuais nas redes sociais, além também da própria participação e do discurso individual que cada um pode oferecer nos seus perfis. Além disso, atualmente, o fato de poderem assistir aos episódios das séries sem seguir o fluxo televisivo instiga o compartilhamento de informações, experiências e a discussão dos fãs sobre suas percepções de encenação e de diálogos, sobre a caracterização das personagens e sobre o próprio desenrolar da trama em qualquer momento do dia ou da noite e em qualquer lugar por meio da internet e das redes sociais.

Em outras palavras, a cultura das séries é o resultado da incessante atividade interrelacional cíclica dessas três condições básicas que amparam a existência desse novo padrão comportamental, que serve de rastro para se elucidar o período de transformação e adaptação pelo qual os produtos culturais ficcionais seriados estão transitando, restabelecendo num cenário cultural novas formas, cada vez mais dinâmicas e singulares, de produção, distribuição e consumo.

Após toda essa argumentação a respeito da lógica televisa e de sua interferência na evolução do gênero ficcional, mais precisamente, na do gênero ficcional seriado, e diante à migração de parte desse tipo de produção audiovisual para as hipertelias televisivas, como a

Netflix, as quais também exerceram influência modificando o storytelling de produtos

audiovisuais seriados; pode-se afirmar que SuperDrags, nessa perspectiva, emerge, assim como outros produtos culturais classificados como produtos seriados, com uma nova perspectiva tanto de produção como de distribuição e consumo. Além disso, SuperDrags propõe ser um instrumento de discussão de uma temática muito relevante na contemporaneidade cercando as relações de gênero e de sexo como um pilar na construção de sua narrativa tal como outras séries e outros produtos culturais audiovisuais.