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Gênero e interdiscurso

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 43-45)

2 GÊNEROS ACADÊMICOS E ENTREVISTAS: ASPECTOS

2.2 Gênero e interdiscurso

Nos dizeres de Bakhtin (2003, p. 265), “a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua” e todo conjunto de enunciados se materializa em um determinado gênero discursivo, que por sua vez é reflexo e produtor da atividade humana.

Rojo (2005) afirma que a apreciação valorativa sobre o tema e sobre a parceria entre os sujeitos da enunciação determinam também, tanto nas esferas do cotidiano quanto nas esferas dos sistemas ideológicos constituídos, o lugar social que o enunciador e o seu coenunciador podem ocupar, as relações hierárquicas e interpessoais que serão estabelecidas, os temas que serão abordados e as finalidades ou intenções comunicativas que serão adotadas. Dessa maneira, o fluxo discursivo das esferas comunicativas “cristaliza historicamente um conjunto de gêneros mais apropriados a esses lugares e relações, viabilizando regularidades nas práticas sociais de linguagem” (idem, p. 197).

Maingueneau (2012) defende que cada texto pertencente a um dado gênero discursivo e ligado a um certo posicionamento ideológico induz expectativas no tocante a um determinado ethos. Segundo o autor, “a noção de ethos permite ainda refletir sobre o processo mais geral de adesão dos sujeitos ao ponto de vista defendido por um discurso” (idem, p.

271), processo particularmente evidente no caso de discursos como a literatura e a ciência, que devem conquistar um público que pode aderir a eles ou recusá-los. Cabe apontar, contudo, as relações existentes entre ambos os discursos, relações estas que propiciaram o desenvolvimento de disciplinas como a ciência da literatura. Tal questão é abordada por Roberto Acízelo de Souza, quem, na obra Teoria da literatura, afirma que

resultou no mérito de superar tanto o impressionismo crítico quanto a superficialidade das orientações positivistas do século XIX; mas o apego intransitivo ao texto, consequência dessa atitude, acabou vedando o acesso a questões da maior importância. Daí o desenvolvimento de novas atitudes metodológicas, cujas análises não pretendem simplesmente desconsiderar o método linguístico, mas partir das insuficiências que ele revela. Tais análises tornam a teoria da literatura permeável a outros métodos de investigação, sobretudo os de base sociológica, antropológica, psicanalítica e histórica. (SOUZA, 2007, p. 55-56)

Teorizar sobre a literatura, portanto, consiste em constituir um objeto e um método apropriados, considerando ainda as possíveis relações entre esse objeto e diferentes campos do saber.

Retomando a questão levantada por Maingueneau (2012), ressaltamos que os textos a serem analisados, que constituem o recorte do nosso corpus, associam-se a ethos discursivos múltiplos não apenas por pertencerem a gêneros distintos (entrevista, ensaio e artigo acadêmico), mas também por denotarem posicionamentos ideológicos diversos, como por exemplo concepções de sujeito divergentes.

Bakhtin (2003, p. 294) afirma que “a experiência discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interação constante e contínua com os enunciados individuais dos outros”. Todo enunciado, portanto, é pleno de um grau vário de alteridade, de palavras dos outros, cujo tom valorativo é assimilado e posteriormente reelaborado e reacentuado pelos sujeitos da enunciação.

Cada enunciado constitui-se de ecos de enunciados dos outros, que podem corresponder a discursos da tradição, do que não é da ordem do individual, configurando-se como o Outro num determinado discurso. Levar em conta, portanto, a relação do sujeito com o outro e seus enunciados é essencial para a compreensão dos gêneros discursivos, de um modo geral, e, especificamente nesta pesquisa, das entrevistas, dos ensaios e dos artigos acadêmicos, uma vez que nos enunciados analisados, ou seja, na fala dos professores e dos licenciandos e nos textos teóricos, ressoam vozes que mantêm relações conflituosas entre si, visibilizando assim as disputas entre as formações em língua e em literatura no âmbito da licenciatura em Letras Espanhol.

A respeito de tal questão, Arfuch (2010) afirma que

Essa consideração do outro como fazendo parte de meu enunciado (…) encontra seu correlato na ideia de uma linguagem outra, habitada por vozes que deixaram seu rastro com o uso de séculos, uma palavra alheia que expressa sentidos, tradições, verdades, crenças, visões de mundo, e que o sujeito assume de forma natural, mas da qual deverá se apropriar pelo uso combinatório peculiar que dela faça, pelos gêneros discursivos que escolher e, sobretudo, pelas tonalidades de sua afetividade. (ARFUCH, op. cit., p. 67)

Nosso enunciado, por conseguinte, já está determinado por um outro, que também atua na constituição de nossa subjetividade, pois estamos abertos a identificações múltiplas, sempre em tensão com o outro, com o diferente. Há memórias discursivas associadas a cada enunciado, memórias estas que se configuram como “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível” (ORLANDI, 2000, p. 31), isto é, o interdiscurso.

De acordo com Orlandi (op. cit., p. 32), o que é dito não significa apenas numa situação discursiva dada, mas também pode significar em outros contextos, pois o sujeito “não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele”, e nesse jogo se configuram o interdiscurso e a memória discursiva. Sendo assim, o sujeito acessa apenas uma parte do dizível, pois “mesmo o que ele não diz (e que muitas vezes ele desconhece) significa em suas palavras” (idem, p. 34), o que se liga à opacificação do discurso (cf. AUTHIER-REVUZ, 1998, 2004) e à recusa da transparência da linguagem. Veremos (cf. seção 2.2.2), portanto, o modo como as categorias enunciativas utilizadas na análise dos textos teóricos e das entrevistas relacionam-se aos sentidos múltiplos instaurados a partir dos discursos que atravessam a formação docente.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 43-45)

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