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Uma perspectiva discursiva do gênero entrevista

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 47-52)

2 GÊNEROS ACADÊMICOS E ENTREVISTAS: ASPECTOS

2.3 Os textos teóricos, as entrevistas e as formações discursivas

2.3.2 Uma perspectiva discursiva do gênero entrevista

Consideramos importante problematizar a entrevista enquanto um gênero discursivo que permite a produção de verdade(s) através de dispositivo similar ao da confissão (FOUCAULT, 2014c). A partir de um processo que teve início na época moderna e atinge seu auge na contemporaneidade, os indivíduos são cada vez mais impelidos à produção discursiva em torno de suas próprias subjetividades. Tal produção torna-se objeto de desejo dos sujeitos, que, inconscientemente, a relacionam à noção de liberdade vinculada a princípios neoliberais. Esse processo, no entanto, funciona como uma estratégia de ocultação do poder do Estado na medida em que propicia o controle dos corpos, moldando, assim, comportamentos e mentalidades.

O gênero entrevista se constitui a partir de uma relação metonímica com a noção de verdade, já que a confissão modifica a instância da subjetividade, instaurando assim uma individuação: ao confessar, o sujeito constrói a verdade sobre si mesmo. Além disso, ao construir discursivamente sua subjetividade, ou seja, ao se dizer, o sujeito é também assujeitado pelo discurso e pelas coerções do poder.

A produção da verdade se dá ainda na relação estabelecida entre os participantes envolvidos no ato da confissão. Desse modo, “a verdade não está unicamente no sujeito, que a revelaria pronta e acabada ao confessá-la. Ela se constitui em dupla tarefa: presente, porém incompleta e cega em relação a si própria, naquele que fala, só podendo completar-se naquele que a recolhe” (FOUCAULT, 2014c, p. 75). O filósofo ainda afirma que “somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercê-lo através da produção da verdade” (idem, p. 279), cujo acesso também se daria por meio da confissão.

A respeito dos dispositivos que se aproximam ao da confissão, Norman Fairclough (2008, p. 79), em uma releitura da obra de Foucault, afirma que a confissão é a técnica de subjetivação do homem moderno e que, embora aparente “ser uma resistência liberadora para a objetificação do biopoder”, a confissão na verdade expõe os sujeitos mais ainda ao domínio do poder, como discutido anteriormente.

De modo semelhante, Daher et al. (2004) consideram a entrevista como um dispositivo enunciativo e um gênero discursivo em que se constroem possíveis versões do real. Portanto, não há uma correspondência entre o dito e a verdade. Para os autores, o texto resultante desse gênero caracteriza-se como coconstrução do entrevistador e do entrevistado. Além disso, o pesquisador, ao realizar uma entrevista, provoca, num dado momento/espaço, a atualização de textos que foram regularmente produzidos na interação entre o(s) sujeito(s) da pesquisa e seus interlocutores, o que implica uma determinada “massa de textos” cujo acesso é viabilizado no evento discursivo da entrevista. O referido gênero, portanto, constitui um dispositivo de produção/captação de textos que permite retomar/condensar diversas situações enunciativas que ocorreram em momentos anteriores.

Sonia Isabel Fabris Campos (2013), no texto “A entrevista de pesquisa: um empreendimento coletivo”, afirma que durante o evento discursivo da entrevista existe uma constante negociação entre o sujeito da pesquisa e o entrevistador, e ambos têm como tarefa produzir de maneira colaborativa os significados. A noção de polifonia do discurso também é relevante, pois “o limite discursivo entre o que pertence ao falante ou à instituição que ele representa pode ser muito tênue” (idem, p. 109).

que afirma ser preciso ter uma “percepção ativa da palavra do outro”, sem interpretá-la como fonte imediata de verdade, nem considerar o “caso” estudado como exemplo arquetípico para uma generalização. Para a autora, a entrevista midiática e a entrevista utilizada na pesquisa acadêmica têm uma genealogia comum, pois ambas “compartilham o imaginário da voz, da presença, da proximidade, a ideia de uma 'verdade' – da vida, do acontecimento – que o diálogo, em suas inúmeras acentuações, seria capaz de restituir” (idem, p. 242).

É interessante mencionar também a caracterização que a autora faz do “novo jornalismo” norte-americano de meados da década de 1960 como um gênero “em que os personagens ou acontecimentos 'verdadeiros' eram construídos numa trama de grande liberdade narrativa e estilística, que dessacralizava a regra de objetividade e neutralidade” (ARFUCH, 2010, p. 247). Tal dessacralização aproxima-se da interpretação da voz do outro que queremos adotar por questionar a noção de discurso objetivo e neutro, inclusive no campo científico. Concordamos com a crítica de Arfuch (op. cit., p. 258) acerca dessa “literalidade”, por conseguinte, na medida em que adotamos a concepção de que a linguagem é “um acontecimento de palavra que convoca uma complexidade dialógica e existencial”.

Podemos opor a “transparência” da linguagem, mencionada por Arfuch, ao conceito de opacificação do discurso, postulado por Authier-Revuz (1998). Tal conceito liga-se à noção de modalização autonímica, em que a enunciação é representada como uma não coincidência consigo mesma, pois o enunciador distancia-se de suas palavras em um movimento de autocomentário materializado no fio do discurso. Segundo Authier-Revuz (op. cit., p. 84), “esse desdobramento aparece, na representação que a enunciação dá de si mesma, como associado a uma junção, no âmbito do dizer, de fatos pontuais do 'não um', do desvio, da heterogeneidade, da não coincidência”, que podem se manifestar em várias dimensões enunciativas: a) não coincidência interlocutiva entre os participantes da interação; b) não coincidência do discurso consigo mesmo, afetado por palavras pertencentes a um discurso outro; c) não coincidência entre as palavras e as coisas; e d) não coincidência das palavras consigo mesmas. As não coincidências do dizer são consideradas pela autora como formas da heterogeneidade mostrada, apresentando-se como glosas ou em sinais tipográficos (aspas, itálico) ou de entoação. Essas glosas podem apoiar-se explicitamente num exterior, marcando um posicionamento no interdiscurso, o que, de acordo com Authier-Revuz, é muito comum nos discursos teóricos. Veremos, a partir da análise dos ensaios, dos artigos acadêmicos e das entrevistas, que cada palavra consiste em “um lugar 'compartilhado' onde se confrontam discursos diferentes, portadores de sentidos diferentes para essa palavra” (idem, p. 41). Nesse sentido, há um apelo explícito e um movimento de defesa contra um certo exterior no campo

interdiscursivo de forças que o dizer atravessa e que se concretiza como um discurso-outro. Tal questão, de certo modo, relaciona-se à concepção foucaultiana de sujeito como um lugar ou função complexa e variável do discurso. Foucault (2006, p. 287), portanto, desconsidera as referências biográficas ou psicológicas, bem como “o caráter absoluto e o papel fundador do sujeito” e propõe que se retire do sujeito seu papel de fundamento originário. Desse modo, o filósofo rejeita o humanismo tradicional, segundo o qual o homem é o centro de tudo, e sustenta uma noção de sujeito fragmentado e desejante.

Serrani (2010) assume igualmente uma concepção de sujeito fragmentado ao analisar as formações discursivas predominantes em três textos do gênero editorial publicados em revistas de divulgação científica. Em seu estudo, a autora formula a hipótese de três formações discursivas: a primeira, “quantitativista”; a segunda, “de enfoque qualitativo”; e a terceira, “não cientificista”. A partir da análise de Serrani e da reflexão de Adorno, buscaremos identificar nos discursos dos professores e licenciandos entrevistados e nos textos que constituem parte do corpus desta pesquisa, ou seja, os ensaios e artigos acadêmicos oferecidos na licenciatura em Letras Espanhol, formações discursivas cientificistas ou não cientificistas. Faremos a distinção entre essas formações a partir da tendência de um determinado discurso a se representar, “quanto ao seu modo de enunciação, como discurso da Verdade, fora de qualquer especificidade histórica e individual” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 75), eliminando traços mostrados de outros discursos. Consideramos, portanto, que quanto maior for a pretensão de um discurso de apagar as marcas de outras vozes, mais ele se aproximará a uma formação discursiva cientificista. Além disso, diferenciaremos ambas as formações discursivas mencionadas a partir das concepções de sujeito que elas encetam: uma formação discursiva não cientificista implica a noção de que os sujeitos e os sentidos “constituem-se e funcionam sob o modo do entremeio, da relação, da falta, do movimento” (ORLANDI, 2000, p. 52). Uma formação discursiva cientificista, por outro lado, corrobora a ilusão da transparência dos sentidos, dos sujeitos e da linguagem, cujo caráter material é silenciado. Não podemos desconsiderar, no entanto, as possíveis imbricações entre as FD aqui delimitadas, tendo em vista que tais formações “são constituídas pela contradição, são heterogêneas nelas mesmas e suas fronteiras são fluidas, configurando-se e reconfigurando-se continuamente em suas relações” (idem, p. 44).

Cabe ainda ressaltar a importância de que sejam seguidas as convenções de transcrição (cf. ANEXO 1) no tratamento das entrevistas, tendo em vista uma maior aproximação da fala dos sujeitos participantes da pesquisa, o que nos permitirá explorar características

próprias da oralidade, tais como as hesitações, as repetições, as ênfases de volume, entre outros traços relevantes para nossa análise.

Com base nas discussões levantadas neste capítulo, faremos o cotejo da análise dos textos teóricos e das entrevistas, tendo em vista: a) as categorias enunciativas (como por exemplo a modalização autonímica, a heterogeneidade discursiva e o não dito) adotadas no tratamento dos dados; b) a “massa de textos” atualizados a partir da fala dos professores e dos licenciandos; e c) as especificidades de cada gênero que constitui nosso corpus e sua relação com o interdiscurso. Pretendemos depreender como resultado do cotejo a filiação dos enunciados analisados a formações discursivas cientificistas ou não cientificistas, além de possíveis imbricações entre as FD mencionadas.

3 CATEGORIZAÇÃO DE TEXTOS DA LICENCIATURA: GÊNEROS E

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 47-52)

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