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CAPÍTULO 2 – O ENSINO DE PRODUÇÃO TEXTUAL EM CONTEXTO ESCOLAR NO

2.3. Gêneros do discurso: concepções teóricas

Toda comunicação verbal se efetua por meio de enunciados, orais e escritos, concretos e únicos, que estão intrinsecamente relacionados com as esferas de atividades humanas, de forma que, conforme são bastante variadas essas esferas, também são variados os modos de utilização da língua, o que resulta em grande variedade de tipos de enunciados.

As condições e propósitos específicos de cada esfera de atividade trazem implicações para o enunciado, definindo-lhe o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional. Portanto, cada esfera comporta um repertório específico de tipos relativamente estáveis de enunciados. Com base nisso, Bakhtin (1997) esclarece que ―qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro,

individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso‖ (p. 279).

Uma vez que a variedade das atividades humanas é, potencialmente, inesgotável, a diversidade de gêneros do discurso é incomensurável. E essa diversidade se amplia à proporção que cada esfera de atividade, que comporta um repertório de gêneros discursivos específico, desenvolve-se e torna-se mais complexa.

Para Bakhtin (1997), esse é um aspecto fundamental, afinal, ―o estudo da natureza do enunciado e da diversidade dos gêneros de enunciados nas diferentes esferas da atividade humana tem importância capital para todos as áreas da linguística e da filologia‖ (p. 282).

Para analisar a natureza do enunciado, o autor considera imprescindível estabelecer uma distinção entre gêneros do discurso primários e gêneros do discurso secundários. Aqueles estão relacionados a situações de uso da língua mais simples e espontâneas, ao passo que estes estão relacionados a circunstâncias de comunicação culturalmente mais complexas.

Bakhtin (1997,p. 282) enfatiza:

uma concepção clara da natureza do enunciado em geral e dos vários tipos de enunciados em particular (primários e secundários), ou seja, dos diversos gêneros do discurso, é indispensável para qualquer estudo, seja qual for a sua orientação específica. Ignorar a natureza do enunciado e as particularidades de gênero que assinalam a variedade do discurso em qualquer área do estudo linguístico leva leva ao formalismo e à abstração, desvirtua a historicidade do estudo, enfraquece o vínculo existente entre a língua e a vida. A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua.

Dessa forma, todas as vezes em que os sujeitos se comunicam verbalmente, são utilizados gêneros do discurso, os quais apresentam uma forma padrão e relativamente estável de estruturação. As especificidades de cada esfera de atividades humanas impõem necessidades que determinam a escolha do gênero por meio do qual se realizará o querer-dizer do locutor. Esse querer-dizer adapta- se ao gênero a partir do qual se compõe, sem que isso implique a renúncia da subjetividade e individualidade do sujeito.

No entanto, pode-se afirmar que há níveis diferentes de adaptação do querer-dizer ao gênero, visto que, conforme explica Bakhtin (1997), existem gêneros mais padronizados e estereotipados, do mesmo modo como há gêneros mais maleáveis, plásticos e criativos.

A esse respeito, Bakhtin (1997, p. 302) chama atenção para o fato de que ―há toda uma gama dos gêneros mais difundidos na vida cotidiana que apresenta formas tão padronizadas que o querer- dizer individual do locutor quase que só pode manifestar-se na escolha do gênero‖.

Consequentemente, os enunciados podem ser realizados por meio de gêneros altamente padronizados (em que o intuito discursivo praticamente se limita à escolha do gênero discursivo, quase não permitindo a expressão da individualidade do locutor, como ocorre, por exemplo, com gêneros oficiais, altamente prescritivos e normativos) ou por meio de gêneros mais criativos (em que se observa maior liberdade para a expressão individual, como ocorre nos gêneros da intimidade familiar, das reuniões sociais, entre outros).

Todavia é relevante salientar que não se trata de uma dicotomia, os níveis de padronização/liberdade dos gêneros do discurso se distribuem em um continuum. Além disso, a forma de um gênero mais normativo pode ser transferida de uma esfera mais padronizada para uma mais livre e vice-versa. Quando tal fenômeno ocorre, há relevantes implicações discursivas, visto que esse deslocamento responde a um propósito comunicativo: se, por exemplo, um gênero de uma esfera oficial é transferido para uma esfera familiar, pode sinalizar uma intenção irônica.

Com isso, percebe-se que o domínio de um amplo repertório de gêneros discursivos é imprescindível para que os sujeitos possam se comunicar de maneira efetiva e eficiente. Não basta, portanto, o conhecimento acerca das formas da língua, é necessário se apropriar também das formas dos gêneros típicas de cada esfera. Quando não se apropriam adequadamente dessas formas dos gêneros, mesmo dominando as formas da língua, os sujeitos podem se sentir inseguros ou até incapazes de interagir em dados domínios discursivos.

Por isso, Bakhtin (1997,p. 301) defende que:

a língua materna – a composição de seu léxico e sua estrutra gramatical –, não a

aprendemos nos dicionários e nas gramáticas, nós a adquirimos mediante enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos durante a comunicação verbal viva que se efetua com os indivíduos que nos rodeiam.

Logo, as formas da língua são aprendidas e apreendidas à medida que o sujeito se apropria das formas dos enunciados, elas são assimiladas concomitantemente, sem rupturas. A comunicação verbal não se dá através de orações isoladas, ela ocorre por meio de enunciados, ainda que estes sejam constituídos por apenas uma oração. ―Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero […].‖ (BAKHTIN, 1997, p. 302). E, ao passo que a fala é organizada em função dos gêneros discursivos, são também organizadas as formas gramaticais, visto que, de acordo com Bakhtin (1997, p. 302), ―os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam as formas gramaticais (sintáticas)‖.

As formas dos gêneros, entretanto, diferenciam-se substancialmente das formas da língua, já que a estabilidade e o caráter normativo dos gêneros apresentam diferentes níveis de flexibilidade.

Apesar disso, não deixam de ter um valor prescritivo: conforme o gênero adequado a cada situação comunicativa, definem-se o limite e a intensidade da expressividade do locutor.

Portanto, o locutor recebe, além das formas prescritivas da língua comum (os componentes e as estruturas gramaticais), as formas não menos prescritivas do enunciado, ou seja, os gêneros do discurso, que são tão indispensáveis quanto as formas da língua para um entendimento recíproco entre locutores. Os gêneros do discurso são, em comparação com as formas da língua, muito mais fáceis de combinar, mais ágeis, porém, para o indivíduo falante, não deixam de ter um valor normativo: eles lhe são dados, não é ele que os cria. (BAKHTIN, 1997, p. 304).

Assim, há uma expressividade própria, determinada, específica de cada gênero, em função da qual são selecionadas as palavras e outras formas da língua. Os gêneros estão essencialmente relacionados a circunstâncias específicas e estabelecem relações entre as significações das palavras e a realidade concreta. Desse modo, cada gênero compreende certa expressividade típica, que não é definida pela força normativa exercida pelas formas da língua, mas pela força normativa do gênero, que apresenta um caráter mais livre.

Decorre disso, pois, a visão segundo a qual

essa expressividade típica do gênero, claro, não pertence à palavra como unidade da língua e não entra na composição de sua significação, mas apenas reflete a relação que a palavra e sua significação mantêm com o gênero, isto é, com os enunciados típicos (BAKHTIN, 1997, p. 312).

Em decorrência disso, percebe-se que os gêneros discursivos não se limitam a uma forma linguística, embora seja inegável o fato de que cada gênero apresenta características linguísticas e formais relativamente específicas. Deve-se reconhecer que os gêneros do discurso se constituem como formas de ―realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares‖ (MARCUSCHI, 2007, p. 29).

Para tanto, também será imprescindível considerar o interlocutor a quem o enunciado se dirige. Isso fará com que o locutor organize o seu dizer em função daquilo que acredita caracterizar seu interlocutor: seus conhecimentos, suas opiniões, suas convicções, suas crenças, suas simpatias e antipatias, entre outros fatores que conduzirão à determinação do gênero pertinente e, com isso, permitirão a escolha dos procedimentos composicionais, dos recursos linguísticos e do estilo do enunciado.

este destinatário pode ser o parceiro e interlocutor direto do diálogo na vida cotidiana, pode ser o conjunto diferenciado de especialistas em alguma área especializada de comunicação cultural, pode ser o auditório diferenciado dos contemporâneos, dos partidários, dos adversários e inimigos, dos subalternos, dos chefes, dos inferiores, dos superiores, dos próximos, dos estranhos, etc; pode até ser, de modo absolutamente indeterminado, o outro não concretizado (é o caso de todas as espécies de enunciados monológicos de tipo emocional). Essas formas e concepções do destinatário se determinam pela área da atividade humana e da vida cotidiana a que se reporta um dado enunciado.

Isso implica que, em cada domínio discursivo, cada gênero comporta uma concepção padrão do destinatário, o que determina sua composição, seu conteúdo temático e seu estilo, definindo-o como gênero.

Essas concepções bakhtinianas que tratam dos gêneros discursivos como tipos relativamente estáveis de enunciado inseridos no âmbito da interação verbal propiciaram significativas mudanças no ensino de Língua Portuguesa, principalmente no que se refere à produção textual, uma vez que levaram a uma nova visão do texto como objeto de ensino, não mais limitado a seus aspectos linguísticos, mas como produto da complexa cadeia de interação verbal, vinculado às esferas de atividades humanas, contextualizado e resultante de necessidades sociocomunicativas. O efeito disso será discutido no próximo item.