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CAPÍTULO 1 – ARGUMENTAÇÃO: PERCURSO HISTÓRICO E BASES TEÓRICAS

1.3. Os estudos da argumentação na Nova Retórica

1.3.1. Perelman e Olbrechts-Tyteca e o papel do Tratado da argumentação

1.3.1.2. Os tipos de acordo

1.3.1.2.3. O acordo referente à sua apresentação

Ao tratar do acordo referente à escolha, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) destacaram o importante papel desempenhado, no processo argumentativo, pela presença de certos elementos e pela ênfase a eles atribuída, já que, colocados em primeiro plano da consciência, sinalizam aquilo em que o orador deseja centralizar a atenção. Os autores chamaram a atenção para o fato de que, antes mesmo de desenvolver a argumentação propriamente dita por meio de premissas, o orador já dá início à persuasão quando escolhe os elementos que vai pôr em evidência em meio a todos os elementos de acordo disponíveis.

Diante disso, eles dão início à abordagem da apresentação dos dados afirmando que, muitas vezes, esta se confunde com o processo de escolha de que os autores trataram anteriormente. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) defendem que se pode distinguir entre os problemas relativos à apresentação dos fatos e aqueles relativos à escolha, desde que se considerem os aspectos que caracterizam essa apresentação.

Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 161),

uma apresentação eficaz, que impressiona a consciência dos ouvintes, é essencial não só em toda argumentação visando à ação imediata, mas também naquela que visa a orientar o espírito de uma certa forma, a fazer que prevaleçam certos esquemas interpretativos, a inserir os elementos de acordo num contexto que os torne significativos e lhes confira o lugar que lhes compete num conjunto.

Para tanto, os autores optaram por realizar uma análise da forma do discurso que leva em consideração os meios que permitem situar o acordo relativo a uma apresentação em um dado nível capaz de possibilitar a ênfase em determinados aspectos, colocando-os com certa intensidade nas consciências.

Afinal, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) julgam a forma do discurso relevante para o sentido, uma vez que, tendo em vista as variadas possibilidades de apresentação dos dados, quando o orador escolhe uma dada forma para apresentar certo conteúdo, essa escolha traz implicações para

a significação, o que pode ser provado pelo fato de que, se fosse apresentado de forma diferente, o conteúdo não poderia ser considerado exatamente o mesmo.

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) também chamam a atenção para o fato de que todo discurso sofre limitações, as quais podem ser impostas pelo tempo, pela atenção dos interlocutores, pelo espaço disponível para sua realização, entre outros fatores. Por isso, Perelman e Olbrechts- Tyteca (2005, pp. 162-163) argumentam que ―o problema genérico da amplitude do discurso repercute imediatamente no espaço que se concederá à exposição dos elementos iniciais, na escolha destes e no modo como serão apresentados aos ouvintes‖.

Em virtude disso, o orador precisa organizar seu discurso da melhor maneira possível para alcançar seu propósito argumentativo. Para tanto, é fundamental organizar bem o tempo que será dedicado a cada parte do discurso, dedicando-se um espaço proporcional à importância que se deseja atribuir a cada uma dessas partes.

Tendo em vista o grau de importância que se quer atribuir, um orador pode omitir elementos que, embora apresentem um caráter bastante discutível, não são adequados aos objetivos da discussão, de tal modo que o locutor não deseja colocá-los em foco. Da mesma forma, ele pode dedicar-se a elementos indiscutíveis, os quais poderiam ficar subentendidos ou simplesmente poderiam não ser mencionados, pois visa aumentar-lhes a presença na consciência dos interlocutores.

Com isso, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) defendem que tratar brevemente de um assunto favorece o raciocínio, ao passo que a discussão mais aprofundada é criadora de emoção. Eles acreditam que a repetição se constitui como uma boa técnica para incitar a presença. Por esse motivo, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 164) afirmam que ―a acumulação de relatos, mesmo contraditórios, sobre um dado sujeito pode suscitar a ideia da importância deste‖.

De acordo com os autores, tornar um elemento presente, avivando a atenção sobre ele, pode ser o efeito positivo de textos confusos, uma vez que creem no fato de que, diante de um signo que levanta questionamentos ou contraria a expectativa, o sujeito dedica uma importância maior a esse elemento.

Além disso, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) destacam que a acumulação de relatos contraditórios sobre um dado sujeito é relevante pelo problema que essa multiplicidade evoca.

Eles explicam que, não raras vezes, à técnica da acumulação soma-se a da evocação de detalhes, de maneira que as duas podem se confundir a tal ponto que se tornam praticamente indiscerníveis. Em outras situações, pode ainda ocorrer de um fenômeno ser explicado por meio da apresentação de suas sucessivas etapas. Essas etapas podem estar relacionadas às ações que devem ser realizadas ou as condições que precedem o ato ou, ainda, a enumeração de suas consequências.

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, pp. 165-166) associam esses procedimentos à formulação de hipóteses, já que não consideram esta um fenômeno única e meramente expositivo, ao contrário, acreditam que se pode atribuir a ela um caráter argumentativo:

formular uma hipótese não é fazer uma afirmação isolada, pois a explicitação desta só é possível pela enumeração das condições que se lhe impõem e das consequências que dela se deduzem. É por essa razão que, ao lado de hipóteses científicas que servem à invenção, encontramos hipóteses argumentativas.

Os autores também salientam o fato de que, em certas circunstâncias, a descrição de uma hipótese pode se concentrar em todos os seus detalhes, a fim de torná-la indesejável ou chocante. Para Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), essas possibilidades de apresentação de hipóteses sinalizam os usos argumentativos habituais das formas de utopia.

Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), à utopia interessa mais um aumento de consciência que a verdade. Ocorre, então, um confronto entre o real e uma presença imaginária, da qual são obtidas reações mais duradouras.

Em decorrência disso, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 166) explicam que:

é por isso que a utopia propriamente dita tende a desenvolver-se em seus mais ínfimos detalhes: não se hesita em manter o auditório nesse meio novo durante longas horas. O sucesso só é possível se a estrutura lógica do meio imaginário é a mesma do meio habitual do leitor e se nela os acontecimentos produzem normalmente as mesmas consequências.

Os autores também defendem que a especificação é primordial para que se crie a emoção. Eles argumentam que noções gerais e esquemas abstratos atuam pouco sobre a imaginação e, por essa razão, para dar a impressão de presença, é recomendável dar preferência ao uso do termo concreto.

Quanto mais especiais os termos, mais viva a imagem que evocam, quanto mais gerais eles são, mais fraca ela é. Assim é que nos discursos de Antônio, no Júlio César de Shakespeare, os conjurados não são designados como aqueles que ―mataram‖ César, mas como aqueles cujos ―punhais trespassaram‖ César. O termo concreto aumenta a presença (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 167).

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) julgam esta uma boa técnica, contudo reconhecem que não é simples precisar a distinção entre termos concretos e abstratos, visto que podem ser reconhecidos diferentes níveis de abstração, os quais atuam com variados graus de intensidade

sobre a impressão de presença. Apesar disso, os autores admitem como ponto de partida, para traçar essa delimitação entre concreto e abstrato, a concepção que se tem do real.

Para indicar a complexidade do problema, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) sugerem uma reflexão: analisar os efeitos sobre a imaginação que os mesmos fatos, cujo aspecto quantitativo ora é apresentado em números absolutos, ora é apresentado em números relativos. De acordo com Perelman; Olbrechts-Tyteca (2005, p. 167), ―com muita frequência, os números absolutos falam mais vivamente à imaginação‖.

Por outro lado, os autores reconhecem que pode ocorrer o inverso, quando o número relativo se refere a um acontecimento que sensibiliza mais os interlocutores e citam como exemplo a probabilidade de morrer em virtude de uma doença. Diante disso, afirmam que a relação numérica pode parecer mais ou menos concreta, dependendo do interesse que suscita o assunto que está sendo tratado. Assim, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 168) questionam: ―não seria mais certo fazermos nossa ideia do concreto depender da impressão de presença provocada em nós por certos níveis de apresentação dos fenômenos?‖.

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) não deixam de reconhecer que a utilização de termos abstratos, que impressionam, representando um modo mais intuitivo de expressão, não deixa de apresentar certos inconvenientes, todavia acreditam que alguns autores dão preferência a esses usos, em dadas situações, porque eles tornam mais fácil esquivar-se de objeções. Eles ainda ressaltam que

embora o termo concreto e preciso possibilite o estabelecimento de um acordo, graças, ao mesmo tempo, à presença que ele cria e à univocidade que favorece, jamais se deve esquecer que, em certos casos, apenas o uso de um termo abstrato permite não deixar para trás as possibilidades de um acordo (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 168).

Com isso, explicam que é necessário adaptar a apresentação dos dados a cada caso, para que a argumentação se torne eficaz. Além disso, destacam que a apresentação dos dados sofre interferências dos problemas de linguagem, já que, de acordo com os autores, os termos utilizados raramente deixam de ter função argumentativa. A crença de que um termo poderia fazer o mesmo papel que outro é equivocada.

Por isso, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) defendem que não se pode admitir a existência de sinônimos, exceto mediante a supressão deliberada ou inconsciente da intenção argumentativa. Mas, de um modo geral, a escolha de um termo não se restringe a uma questão de forma, um termo não é suscetível de ser substituído indiferentemente por outro.

Assim, apenas em circunstâncias em que a intenção argumentativa não pode ser evidenciada ocorre a equivalência de sinônimos. No entanto, esse fenômeno é muito raro, os autores apontam,

como exemplo de situação em que os termos parecem ser intercambiáveis, a listagem de palavras no dicionário. Contudo, o uso de termos em um discurso particular não pode assegurar tal equivalência, visto que obedece a convenções sociais e é regido pelas intenções argumentativas.

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) explicam que o ponto de partida para contatar a existência de intenção argumentativa é observar o emprego de termos que se afastam da linguagem habitual. Porém, isso criaria um problema: como identificar os usos que podem ser considerados habituais?

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) resolvem tal problema indicando como habituais os usos que passam despercebidos. Eles esclarecem que não existe uso neutro, contudo perceberam que alguns usos se passam por neutros, ou seja, parecem ser neutros. A partir desses aparentes usos neutros, os autores acreditam que podem ser estudadas as modificações argumentativas.

Apesar disso, os autores não defendem que os usos habituais são sempre, em qualquer situação, descritivos e aparentemente isentos de valor argumentativo. A esse respeito, Perelman; Olbrechts-Tyteca (2005, pp. 169-170) tecem considerações por meio dos seguintes exemplos:

sob a ocupação alemã, na Bélgica, em certos meios era sem dúvida normal designar o alemão pelo termo ―boche‖. Por conseguinte, o emprego do termo ―alemão‖ podia indicar seja uma atenuação genérica da atitude hostil para com o inimigo, seja uma estima particular por um determinado alemão que merecesse essa consideração. Assim também o uso da perífrase ―pessoa com uma disposição

para induzir em erro‖ para designar ―o mentiroso‖ pode ter o objetivo de despojar

tanto quanto possível esse termo do elemento desvalorizador para assimilá-lo a um termo descritivo e conferir ao juízo no qual ele intervém a aparência de um juízo de fato, donde o significado argumentativo dessa perífrase, que não possui o termo ―mentiroso‖. Esses dois exemplos mostram bem que o termo a que chamamos neutro, ou seja, o que passa despercebido, está longe de ser aquele a que se chama geralmente descritivo ou factual. Nada a esse respeito é mais arbitrário do que as distinções entre discurso factual, neutro, descritivo e discurso sentimental, emotivo.

Por isso, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) ressaltam que essas análises são relevantes porque põem em evidência a demonstração de juízos de valor na argumentação, todavia não se deve, em virtude disso, acreditar que existem formas de expressão meramente descritivas, nas quais atuam um tipo indiscutível de objetividade.

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) sugerem que, para discernir o uso argumentativo de um termo, devem-se conhecer as palavras que estavam disponíveis para o orador e foram preteridas por ele. A esse conjunto poder-se-ia denominar família de palavras, que, no entanto, não deve ser confundido com termos relacionados por um sistema de derivações, já que diz respeito a expressões ligadas pelo sentido.

Mesmo assim, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) admitem que o critério para determinar quais palavras podem fazer parte de tal conjunto é relativamente arbitrário, uma vez que consiste na ideia prévia que se tem do sentido desses termos. Apesar disso, os autores julgam relevante esse conceito, visto que ―os termos de uma mesma família formam um conjunto em comparação com o qual um termo se especifica; são, de certo modo, o fundo contra o qual se destaca o termo utilizado‖ (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2005, pp. 170-171).

Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) chamam atenção para o fato de que, embora o papel persuasivo de certos termos seja analisado no confronto entre eles e a expressão que passaria despercebida, não se deve crer que o uso de termos aparentemente neutros é desprovido de função argumentativa. Afinal, conforme afirmam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 172), ―quando nos perguntamos por que um orador se expressa de maneira neutra, subentendemos que ele poderia não o fazer e que, fazendo-o, tem um objetivo. […] A ausência de técnica pode ser um método, não há naturalidade que não possa ser intencional‖.

É necessário ter em mente que o uso da linguagem pressupõe acordo. A linguagem comum não é isenta dessa pressuposição, de modo que se deve perceber que a aproximação entre uma linguagem aparentemente neutra e ideias aceitas não se dá ao acaso. Recorrer à linguagem comum, em detrimento de um discurso mais argumentativo, muitas vezes, é um recurso para intensificar a credibilidade das premissas, apresentadas como objetivas e factuais.

Em decorrência disso, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 173) afirmam que:

encontramos aqui um fenômeno que nunca é demais salientar, o de que o

conhecimento generalizado – pelo menos intuitivo – das técnicas argumentativas,

de suas condições de aplicação, de seus efeitos, está na base de muitos mecanismos argumentativos: o ouvinte não é considerado um ignorante, mas, ao contrário, alguém bem-informado.