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GARANTIAS DOS PARTICULARES NO ESTADO DE DIREITO

4. Enquadramento na ordem jurídica angolana

4.2. Garantias jurisdicionais ou contenciosas

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supervisão, mas sem que entre eles exista relação de hierarquia (isto é: sem que aquele tenha poder para dar ordens ou instruções a estes) e o recurso hierárquico impróprio para os órgãos colegiais189 em relação aos atos administrativos praticados por qualquer dos seus membros, sobretudo nos casos expressamente previstos na lei (artigo 118.º, n.º 2 das NPA)

Ainda dentro do recurso hierárquico avulta-se o recurso tutelar, onde está em causa determinado ato administrativo praticado por órgãos de pessoas coletivas públicas sujeitas a tutela e a superintendência190. É um recurso que existe apenas quando a lei expressamente determinar, não excluindo-se a possibilidade de uma visão contrária decorrente da própria lei.

À luz do raciocínio do legislador ordinário, esse recurso tem carácter facultativo e só pode ter por fundamento a inconveniência do ato recorrido nos casos que a lei estabeleça a tutela de mérito191. (artigo 119.º, n.º3 das NPA).

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tribunais a fim de verem os seus interesses legítimos devidamente acautelados por esse órgão.

Quando a Administração Pública pratica certo ato administrativo lesivo dos interesses dos particulares, por força da lei, aquele que for diretamente molestado, ainda fora da jurisdição dos tribunais, pode apresentar uma reclamação sucinta perante o órgão administrativo que o terá praticado na tentativa de que o ato em causa seja revogado ou ainda modificado. Se por essa via o requerente não for bem-sucedido, é-lhe dada a possibilidade de apresentar um recurso hierárquico com a finalidade de suspender a eficácia do mesmo ato. Finalmente, na eventualidade de todas essas garantias administrativas se mostrarem inoperantes, a ordem jurídica oferece uma outra de natureza jurisdicional, onde todo sujeito no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos pode dela se socorrer, tendo como objeto a sua declaração de invalidade ou anulação.

Recorrendo ao pensamento de MARCELLO CAETANO192, pode-se perceber na sua conceção de garantias jurisdicionais que dava relevo a expressão “judicial”

abrangendo todas as garantias proporcionadas pelo acesso dos interessados aos tribunais constituídos por juízes de carreira, gozando das imunidades da magistratura, quer esses tribunais façam parte do poder judiciário ou não, quer sejam comuns ou especiais.

O entendimento supra, do ponto de vista da sua construção, reflete em certa medida a realidade jurídica angolana, pelo facto de em primeiro lugar, existirem um conjunto de instrumentos legais que conferem proteção jurídica aos particulares na relação estabelecida com as autoridades administrativas, em que de forma simplificada sobressai o direito de acesso aos tribunais e tutela jurisdicional efetiva para a salvaguarda dos direitos e interesses legalmente protegidos. Em segundo lugar, apesar de não existir uma jurisdição especificamente administrativa, a justiça no que reflete os litígios da relação administrativa são solucionados em salas especializadas (a sala do cível e administrativo- à luz da designação da LSUJ; É nesta ótica que mostra-se saliente a abordagem das referidas garantias jurisdicionais ou contenciosas, procurando saber de forma pormenorizada sobre cada uma delas em função da consagração no plano constitucional e infraconstitucional, partindo da célere sistematização de FREITAS DO AMARAL193 que valoriza essencialmente as espécies de contencioso

192 CAETANO, Marcello, Princípios Fundamentais do Direito … ob.cit.,p.531.

193 AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito …ob. cit.,p.793.

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administrativo194 para aferir as garantias jurisdicionais, que doravante usar-se-á apenas a expressão “garantias contenciosas ” que da nossa perspetiva faz alusão aos litígios da relação jurídico-administrativa, levados ao conhecimento dos tribunais e solucionados por regras do Direito Administrativo (enquanto direito substantivo) destacando-se igualmente as normas do direito processual administrativo que estabelecem os meios, os trâmites para que o primeiro seja efetivamente aplicado.

Na descrição e análise das diferentes garantias contenciosas tal como já assinalado anteriormente, observar-se-á a sistematização perfilhada pelo autor acima, que ao nosso ver, oferece maior facilidade de compreender a realidade em estudo.

Partindo das garantias contenciosas no que toca aos atos administrativos, realça-se prima facie, o ato administrativo para efeitos de que dispõem as normas do procedimento administrativo no artigo 63.º, onde se pode ler “ são decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos imediatos numa situação individual concreta ” Quanto à eficácia dos mesmos, uma vez praticados produzem efeitos jurídicos, com exceção de uma outra interpretação legal a lhes atribuir eficácia retroativa ou deferida. Ao particular de acordo com esta garantia contenciosa, é-lhe atribuído o direito de impugnar, através do recurso contencioso (artigo 9.º, al.c) da LIAA) procurando anular ou declarar inexistente o ato praticado. Ademais, é-lhes reconhecido também o direito à suspensão dos atos administrativos, como resulta do artigo 1.º da LSEAA, segundo o qual “ a eficácia dos atos administrativos impugnáveis por via contenciosa pode ser suspensa a requerimento dos interessados, como ato prévio à interposição de recurso contencioso ou juntamente com a interposição desse recurso”. A referida suspensão é concedida sempre que o tribunal considere fundadas as razões invocadas pelo requerente e dela não resulte lesão grave para a realização do interesse público (artigo 60.º, n.º2 do RPCA).

Em seguida, merecerá semelhante apreciação sucinta, - as garantias contenciosas no que tange aos regulamentos administrativos. Por regulamento se deve entender, toda

194 Apoiando-se ao Direito comparado, vale dizer que as espécies de contencioso administrativo que mais

ecoam em Portugal, são as seguintes: o contencioso dos regulamentos; o contencioso dos atos administrativos; o contencioso dos contratos administrativos; o contencioso da responsabilidade da Administração; o contencioso dos direitos e interesses legítimos dos particulares; contencioso eleitoral;

Cfr. artigo 51.º, als. a) e d) da versão anterior do ETAF. O mesmo também se pode dizer do atual ETAF aprovado na sequência da Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro com muitas alterações destacando a última introduzida pelo DC- Lei n.º 214- G/2015, de 2 de Outubro que apresenta outras espécies, fruto da reforma que se tem gizado a nível de todo contencioso administrativo Português.

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a decisão de um órgão da Administração Pública que, ao abrigo de normas de direito público, visa produzir efeitos jurídicos em situações gerais e abstratas195.

Para a boa execução das leis, a Constituição atribui ao titular do poder executivo a competência de elaboração de regulamentos (artigo 120.º, al.l).

Enquanto forma de atividade administrativa os regulamentos estão sujeitos ao princípio da legalidade e, quer na sua dimensão de preferência de lei, quer na sua dimensão de reserva de lei196.

No atual quadro jurídico-legal, o legislador nada diz em relação a impugnabilidade dos regulamentos, apesar de ser um facto que eles existem e têm sido o instrumento preferencial na execução das leis.

Caso haja um regulamento ilegal pode ser diretamente impugnado para o tribunal? Sobre a questão colocada, o legislador constituinte na nossa perceção optou por se manter num silêncio total, não tecendo de modo expresso um pronunciamento a respeito da consequência no presente contexto. A despeito de tal inércia de que já nos referimos, a solução para tal questionamento encontra sustentação noutros preceitos contidos no texto constitucional, sendo possível subsumi-la artigo 26.º, da CRA, onde resulta de acordo a sua transcrição que “ a validade das leis e demais atos do Estado, da Administração Pública e do poder local depende da sua conformidade com a Constituição”. Ora, não havendo conformidade do regulamento em relação à Constituição, o mesmo será considerado inconstitucional por violar os princípios e normas constitucionais (artigo 226.º, n.º2 da CRA). Enquanto a Constituição da República de Portugal resolve tal questão no artigo 204.º, quando o legislador constituinte expressamente realça que “ nos factos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados”. MARCELO REBELO DE SOUSA197, entende nesse sentido, que os regulamentos ilegais devem ser desaplicados pelos tribunais por identidade de razão (artigo 73.º, n.º2 do CPTA) e são suscetíveis de impugnação contenciosa, na sequência da qual os tribunais administrativos podem, em determinadas condições, declarar a sua ilegalidade com força obrigatória geral (artigo 268.º, n.º 5, artigos 72.º, 1,2,4,e 76.º, n.º2 do CPTA).

195 SOUSA, Marcelo Rebelo de Sousa, e MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral:

Atividade Administrativa, Tomo III, Lisboa, Dom Quixote, 2006, p.238.

196 Ibidem,p.239.

197 Ibidem, p.240.

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Não aceitamos a tese da não impugnabilidade direta dos regulamentos administrativos ilegais por dois motivos fundamentais: No que concerne ao primeiro, Tal como as leis criadas devem estar em conformidade com os ditames constitucionais, os regulamentos de igual modo devem se submeter à mesma lógica; Já em relação ao segundo fundamento, sublinha-se na eventualidade de os regulamentos serem suscetíveis de ofender os direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, fazendo preito a garantia constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, os particulares poderão sim recorrer dos mesmos por via contenciosa, aliás, uma das grandes novidades da atual Constituição angolana, é justamente a reafirmação deste princípio fundamental, dando lugar com isso a consagração de um modelo de contencioso voltado também ao subjetivismo, deixando cair a tónica de um único modelo objetivista muito cingido a proteção da legalidade da atuação administrativa, criando condições para a coabitação de ambos.

Em terceiro lugar, aponta-se as garantias contenciosas, quanto aos contratos administrativos198 e ou contratos públicos. As ações derivadas de contratos de natureza administrativa são suscetíveis de apreciação contenciosa nos termos do artigo 2.º da LIAA. No mesmo sentido, a lei n.º 9/16, de 16 de junho estabelece um novo regime jurídico da formação dos contratos públicos199. Trata-se da lei dos contratos públicos que também acautela a questão do recurso contencioso, admitindo no artigo 21.º que “ as decisões proferidas sobre as impugnações administrativas são suscetíveis de recurso contencioso”.

198 «A doutrina francesa é apontada como a responsável pela criação da figura do contrato administrativo, todo o edifício doutrinal em matéria da atividade contratual administrativa assenta tradicionalmente, em França, na dicotomia entre os contratos administrativos e os contratos de direito privado da Administração Pública. Em relação a questão contenciosa, tal como aliás em todas outras questões contratuais, a dogmática jurídico- administrativa francesa ocupa-se tradicionalmente apenas dos referidos contratos administrativos, pura e simplesmente relegando os outros contratos da administração para o foro do Direito Privado e da competência dos tribunais comuns, deles se esquecendo quase em absoluto».Cfr.

ESTORNINHO, Maria João, Curso de Direito dos Contratos Públicos: Por uma Contratação Pública Sustentável, Coimbra, Almedina, 2012,p.181.

199 Com entrada em vigor na ordem jurídica da Lei n.º 20/10, de 7 de Setembro que estabelecia as bases gerais e o regime jurídico relativos à contratação pública, decorridos três anos da sua vigência, houve a necessidade de melhorá-la em alguns pormenores, tendo sido aprovado um novo diploma legal através da Lei n.º 3/13, de 17 de Abril, procedendo alterações à anterior. E porque a vida é dinâmica, e as normas devem procurar espelhar ao máximo a dinâmica social de um povo, oferecendo mecanismos de celeridade, economicidade e eficiência administrativa, a Assembleia Nacional de Angola por mandato que lhe foi atribuído pelo povo, de acordo os preceituados nos artigos 161.ºal.b); 165.º, n.º 2, 166.º, n.º 2, al.d) ambos da CRA, aprovou a nova Lei n.º 9/16, de 16 de Junho já referida no corpo do texto.

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Em quarto lugar assinalam-se as garantias contenciosas quanto ao reconhecimento de direito, qualidades ou situações. Quanto a esta importante garantia, na atualidade o contencioso administrativo tem conhecido importantes reformas, e uma delas prende-se fundamentalmente com o amplo reconhecimento dos direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares.

A Administração ao desenvolver as suas atividades típicas voltadas a satisfação do interesse da coletividade, está constitucionalmente vinculada ao dever de respeitar os mesmos direitos e interesses por força do princípio da prossecução do interesse público com respaldo nos termos do n.º 2 do artigo 198.º da CRA. Deste modo, os órgãos afetos à Administração direta ou indireta do Estado, devem priorizar as posições subjetivas dos particulares decorrentes de tal imperativo legal. Aos particulares é garantido o direito à indeminização pela ações ou omissões praticadas pelo Estado e outras pessoas coletivas, tal como se confirma no preceituado no artigo 75.º da CRA.

A disposição legal acima, faz alusão a responsabilidade civil do Estado e demais pessoas coletivas públicas, um princípio com grande relevância para a garantia dos direitos e interesses dos administrados nos Estados alicerçados no primado da lei. É neste âmbito que apraz saber o significado de responsabilidade civil no contexto da atuação dos órgãos do Estado.

«A responsabilidade civil administrativa é o conjunto de circunstâncias da qual emerge, para a Administração e para os seus titulares de órgãos, funcionários ou agentes, a obrigação de indeminização dos prejuízos causados a outrem no exercício da atividade administrativa. O qualificativo “civil” da responsabilidade, não remete para o direito privado: trata-se apenas de esclarecer que a responsabilidade em causa não é política, criminal, contra-ordenacional ou disciplinar200». O que se procura com o instituto da responsabilidade civil é alcançar a reparação, de tal forma que se coloque o lesado na situação mais natural possível em que estaria se não fosse a lesão. Ainda bem que existe a favor dos particulares essa tão importante garantia, porque a ideia de impunidade quando há lesão de direitos subjetivos é inimiga de qualquer estabilização da sociedade. As normas jurídicas devem ser aplicadas não só ao simples cidadão, como também à todas instituições ligada ao próprio Estado. Ademais, convém realçar que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias fundamentais

200 SOUSA, Marcelo Rebelo de Sousa, e MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral…ob.cit., p.409.

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são diretamente aplicáveis e vinculam todas entidades públicas e privas (artigo 28.º da CRA).

Nos modernos Estados de direito, o instituto da responsabilidade civil é de um predomínio incomensurável na indeminização dos danos causados na violação dos direitos dos particulares pelas entidades administrativas públicas. Destarte, a confiança que os particulares depositam às referidas instituições incumbidas na satisfação de seus interesses, dificilmente se fragmentará devido o vínculo que se estabelece entre ambos, que é constituído por direitos e obrigações. Os particulares na relação com a Administração são obrigados a observar um conjunto de deveres, é natural que se espere da Administração, um comportamento exemplar, e não aquele que deliberadamente provoque lesão ao particular sob o pretexto de se estar a prosseguir o interesse público.

Por último, destacam-se outras garantias contenciosas, como é o caso do direito aos recursos ordinários e extraordinários, expressamente regulados nos artigos 79.º e ss do RPCA;

As garantias acima apresentadas conhecem efetivação em sede dos tribunais angolanos, concretamente nas salas especializadas para questões de natureza contenciosa.