• Nenhum resultado encontrado

34

A primeira dessas experiências ou acontecimentos traumáticos decorre do surgimento do contencioso administrativo na Revolução Francesa, concebido como “ privilégio do foro” da Administração, destinado a garantir a defesa dos poderes públicos e não a proteção dos direitos dos particulares, tendo protagonizado o surgimento do princípio da separação de poderes, retirando aos órgãos da Administração o privilégio de se julgarem a si próprios, o que criava uma autêntica confusão entre a função de administrar e de julgar 43.

A segunda experiência tem que ver com as circunstâncias em que foi afirmada a autonomia do Direito Administrativo ou foi verificada a preocupação como garantia da Administração do que a proteção dos particulares teria de ser.

O mesmo autor referenciado44 ainda no que concerne a origem e linhagens profundas do contencioso administrativo distingue três fases principais45, conforme se pode confirmar abaixo:

(I) A fase do “pecado original”, que corresponde ao período do seu nascimento e que passa por distintas configurações até chegar ao sistema da “ justiça delegada” – que se impôs como paradigma do modelo do Estado Liberal;

(II) A fase do “ batismo”, ou de plena jurisdicionalização do contencioso Administrativo – prenunciada na transição dos séculos XIX para o XX;

(III) Por último, a fase do “crisma” ou da “ confirmação”, caracterizada pela reafirmação da natureza jurisdicional do contencioso Administrativo, acompanhado da respetiva dimensão subjetiva, destinada à proteção plena e efetiva dos direitos dos particulares.

35

Europeu e Americano, que em rigor, serviram de exemplo inspirador para a construção do atual modelo de contencioso vigente em todo quadro jurídico.

A República de Angola em materia de contencioso administrativo não possui uma história que permita afirmar tratar-se de uma realidade com grandes avanços, visto que a aplicação das regras do Direito Processual Administrativo nem sempre tiveram o merecido acolhimento por parte das instituições ligadas ao Estado num momento de exceção constitucional, com consequências diretas na atuação dos órgãos administrativos, bem como dos poucos tribunais existente na altura. Foi apenas na sequência do término do conflito armado em 2002 que se procurou repor a legalidade, sendo que a partir da data supracitada, começou-se a desenhar um novo quadro jurídico-legal que em certa medida trouxe algumas soluções para os principais problemas de que enfermava a conjuntura social, política e económica. O que era quase impossível alterar-se a nível dos diplomas legais ordinários sobre o contencioso, já não é em relação aos dias que correm.

A história do contencioso administrativo no panorama jurídico-legal angolano explica-se através de três grandes momentos diversos46:

(1) A primeira fase que compreende a proclamação da independência a 11 de Novembro de 1975, correspondendo à primeira república, em que o país viveu um longo período de luta pela libertação que de certa forma já durava há 14 anos e com a revolução de Portugal ocorrida a 25 de Abril de 1974, como causa imediata que contribui na autodeterminação e no surgimento do novo ente de Direito Internacional. Porém, ainda era prematura qualquer abordagem relativa ao contencioso administrativo, porque não havia um rigoroso controlo jurisdicional dos atos que a administração praticava, os fundamentos do estado democrático e de direito ainda não tinham sido construídos, a aplicação do princípio da separação de poderes encontrava resistências por parte dos órgãos do Estado.

(2) A segunda fase que começa com a aprovação da LC de Angola e mais tarde com a Lei de Revisão constitucional pela assembleia do povo, através do Decreto- Lei nº 23/92, de 16 de Setembro que corresponde a segunda

46 MANJOLO, Manuel Graça, O princípio da tutela jurisdicional efetiva no ordenamento jurídico angolano e Português, in Relatório de Mestrado científico apresentado à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, (não publicado) 2016, pp. 19-20.

36

república que se estende a aprovação da nova Constituição da República pela assembleia Constituinte, aos 21 de Janeiro de 2010 e na sequência do Acórdão do tribunal Constitucional nº 111/2010, de 30 de Janeiro; Por conseguinte, é nesse período onde com maior preponderância se podia falar de contencioso administrativo em Angola, já que, com as alterações à LC introduzidas em Março de 1991, através da Lei n.°12/91 foi possível a criação de premissas constitucionais hábeis a implementação de um verdadeiro estado de direito, com uma certa amplitude no reconhecimento dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. Os tribunais como verdadeiros órgãos de soberania, independentes e autónomos do poder executivo, de acordo o disposto no artigo 53.º da lei acima citada, passaram a controlar todas as atuações da Administração Pública, O princípio da tutela jurisdicional efetiva foi consagrado nos termos do artigo 43.º deste mesmo diploma legal, em que resultaria a faculdade dos cidadãos impugnarem e recorrerem aos tribunais, contra todos os atos que violassem os seus direitos e garantias constitucionalmente consagradas.

(3) Finalmente, um terceiro momento recente, que vai desde a entrada em vigor da Constituição, isto é, em 5 de Fevereiro de 2010 até a presente data, que marca o início da terceira república. A partir desta Constituição houve avanços nos esclarecimentos de várias matérias contidas na LC. Deste modo, o Estado angolano subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis, em conformidade com o artigo 6.º CRA. Fica igualmente reforçado o princípio da tutela jurisdicional efetiva, no artigo 29.º CRA.

As grandes mudanças que ocorreram em termos de justiça administrativa podem ser sintetizadas nos seguintes termos:

(i) Com a aprovação da Lei n.º 17/90, de 20 de Outubro, o artigo 27 .º previa

“ para a apreciação de questões contenciosas que digam respeito à Administração Pública, bem como a fiscalização sobre atos que envolvam nomeação ou contratação de funcionários da Administração Pública, serão competentes as salas e camaras dos tribunais populares provinciais e do tribunal popular Supremo”;

37

(ii) Com a aprovação da lei do Sistema Unificado de justiça(LSUJ), através do DC-Lei nº 18/88, de 31 de Dezembro, houve em Angola a integração de várias jurisdições existentes, para uma jurisdição comum, e por essa via, os tribunais passaram a estar divididos de acordo com a hierarquia do artigo 6 .º e ss. do mesmo diploma47;

(iii)Em 1994 com a aprovação da Lei da Impugnação dos atos administrativos(LIAA) através do DC-Lei nº 2/94, de 14 de Janeiro, os particulares passaram a ter um instrumento legal que lhes permitia por via de reclamação ou recurso, impugnar determinados atos praticados por órgãos públicos com eventuais erros, excessos ou abuso, nas decisões executórias ou deliberações administrativas violadoras da lei48. Antes da entrada em vigor do supracitado diploma, não existia em todo ordenamento jurídico algum instrumento legal, cujo escopo estava cingido na impugnação contenciosa dos atos administrativos. Os particulares não podiam impugnar contenciosamente qualquer ato da administração, através de um instrumento legal elaborado com essa finalidade, visto que não existia em todo ordenamento administrativo;

(iv) Em 1996 após dois anos de vigência da LIAA, houve necessidade de se legislar no âmbito do contencioso administrativo, a lei da Suspensão da Eficácia do Ato Administrativo( LSEAA), aprovada pelo DC-Lei nº 8/96, de 19 de Abril. Esta nova lei procura acautelar interesses legítimos, quer dos cidadãos e outras entidades privadas, quer do Estado, interesses estes que não haviam sido referenciados ao abrigo do DC- Lei nº 2/94, de 14 de Janeiro. Deste modo, a eficácia dos atos administrativos impugnáveis por via contenciosa, podia ser suspensa por iniciativa dos interessados através

47 Do entendimento que se extrai da LSUJ resulta que “O Tribunal Supremo encontra-se no topo da hierarquia, exercendo jurisdição em todo território nacional, com a sede na cidade capital do país (Luanda); os tribunais provinciais passaram a exercer jurisdição no território da respetiva província, com a sede na sua capital; Por último os tribunais Municipais, de igual modo, exerciam jurisdição sobre o respetivo Município.” Na atualidade, com a aprovação da nova lei da organização e funcionamento dos tribunais de jurisdição comum (Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro que dela nos debruçaremos com mais detalhes no capítulo III), a lógica permanece intacta, com exceção dos tribunais municipais e provinciais que à luz desta lei passarão a ser designados por tribunais de comarcas, exercendo jurisdição dentro da circunscrição territorial em que forem instalados.

48 MARQUES, António Vicente, Direito Administrativo Angolano: Legislação Fundamental, Luanda, Textos Editores, 2007. p.117.

38

da apresentação de um requerimento. Esta suspensão afigura-se como uma medida justa e atendível, sempre que a execução da decisão por parte do órgão administrativo pudesse causar prejuízo irreparável ou de difícil reparação para o interessado e não resultar da referida suspensão grave lesão ao interesse público, como também nas situações em que a execução imediata das decisões judiciais transitadas em julgado, proferida em matéria de contencioso administrativo, for suscetível de causar prejuízos graves para o Estado. Por meio desta, o órgão administrativo ou a pessoa coletiva de direito público a quem caiba executá-la podia requerer ao tribunal a suspensão da sua execução, por um período de seis meses;

(v) Em 1996 com a aprovação do Regulamento do Processo Contencioso Administrativo(RPCA), através do DC-Lei nº 4-A/96, de 5 de Abril, o processo jurídico- administrativo passa a ser objeto de regulação. Com este instrumento legal as questões em sede do contencioso administrativo ficaram melhor esclarecidas, com destaque para a sua aplicação aos recursos e ações propostas no âmbito da LIAA, com exceção das matérias não contidas no diploma que podiam ser reguladas pelas disposições relativas ao funcionamento da administração do Estado e supletivamente as normas do processo civil.