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2.1 Contexto da administração pública brasileira 23 

2.1.4 Gestão societal 38 

Os estudiosos da corrente societal a apresentaram como uma possível alternativa para concretizar a reforma do Estado, incluindo aí a preocupação com a dimensão política, a fim de tornar o Estado mais legítimo e democrático. A partir dos anos 80, quando se iniciaram as transformações em busca de uma reforma do Estado, desenrolou, também, um fenômeno de questionamento do papel do mesmo, principalmente no que diz respeito à forma de gerir o social (PAULA, 2005). É desse cenário que surgiram novas concepções para a gestão pública, a fim de consolidar a democracia, à época recém-incorporada na política brasileira, bem como difundir o conceito e a prática da cidadania. Com a democracia e a transferência de algumas responsabilidades do Estado para a sociedade, fomentou-se a gestão social, contemplando em seu processo a participação nos espaços públicos.

Para Paula (2005), esta é uma visão alternativa que procura ir além dos problemas financeiros e gerenciais, embasada nos princípios da gestão social, considera a reforma um projeto político e de desenvolvimento nacional. A Gestão social, de acordo com Tenório (2005), contrapõe-se à gestão estratégica

na medida em que busca substituir a gestão tecnoburocrática, monológica, por um modo de gestão mais participativo, dialógico. Nesse tipo de gestão, o processo de decisão se dá por diferentes sujeitos sociais e desenvolve-se segundo os pressupostos do agir comunicativo. Para se construir um processo de gestão social em consonância com o agir comunicativo, na opinião desse autor, é preciso que todos os participantes da ação social admitam sua validade, em uma verdade aceita pelo consenso racional, alcançada pela discussão crítica e apreciação intersubjetiva.

Assim, Tenório (2005) acompanhando o pensamento de Guerreiro Ramos e, essencialmente o de Habermas, acrescentou à discussão da gestão social a concepção habermasiana de cidadania deliberativa (relacionado ao significado de participação). Para o entendimento do conceito de gestão social, Tenório (2005) orientou-se pela discussão de pares de palavras-categoria, sendo estes: Estado-sociedade, capital-trabalho, gestão estratégica e gestão social, bem como, cidadania deliberativa, que intermediou a relação entre estes pares.

Quanto aos dois primeiros pares, Tenório (2005) faz a inversão das posições das categorias para: sociedade-Estado e trabalho-capital. O intuito seria construir um novo discurso, em busca de uma mudança social, sinalizando que a sociedade e o trabalho devem ser protagonistas nesta relação, na qual se observa que, historicamente, o inverso tem prevalecido. Referente ao par gestão estratégica e gestão social, a primeira atua determinada pelo mercado, guiada pela competição, onde o outro deve ser eliminado e o lucro é seu motivo. Em oposição, o autor trouxe a gestão social. Esta deve vir determinada pela solidariedade, guiada pela concordância, onde o outro deve ser incluído e a solidariedade ser o motivo.

A gestão social é abordada por França Filho (2008) em dois níveis: um como uma problemática da sociedade que diz respeito à gestão das demandas e necessidades sociais; neste sentido, o social, sugere a ideia de política social,

confundindo-se com a própria ideia de gestão pública. O outro, como uma modalidade específica de gestão, em que a gestão social seria uma forma de subordinar as lógicas instrumentais a outras lógicas mais sociais, políticas, culturais ou ecológicas.

Na busca por reformular o Estado e construir um novo modelo de gestão identificam-se, conforme salienta Paula (2005), dois projetos políticos concorrentes e em andamento. O primeiro, como abordado na seção anterior é inspirado na vertente gerencial e o segundo tem como principal referência a vertente societal, cujas “raízes estão no ideário dos herdeiros políticos das mobilizações populares contra a ditadura e pela redemocratização do país” (PAULA, 2005, p. 37), nos movimentos sociais, sindicais, nas pastorais sociais, nos partidos políticos de esquerda, ONGs, entre outros movimentos cujo cerne é a participação popular na gestão pública. Nesse sentido, a gestão pública busca explorar melhor suas interfaces com a gestão social, vez que a gestão social preza pelo conhecimento intersubjetivo e pelo processo dialógico de gestão e nesse ponto, sua finalidade expressa o que seria de fato uma gestão pública.

Então, surgiu no âmbito público, essa corrente cuja intenção era desenvolver um projeto político que procurasse ampliar a participação dos atores sociais na definição da agenda política, utilizando instrumentos capazes de possibilitar um “maior controle social sobre as ações estatais e desmonopolizando a formulação e a execução das ações públicas” (PAULA, 2005, p. 39). Essas experiências foram sendo construídas, em especial, nos governos das Frentes Populares, os quais começaram a ganhar maior importância no cenário político. Hodiernamente, esse campo movimentalista tem se manifestado nas experiências alternativas de gestão pública, como os Conselhos Gestores, Orçamentos Participativos, Comissões de Planejamento, Fóruns Temáticos para discussões de interesse público e outras formas de

representação, essencialmente nos governos estaduais e municipais, já que essas esferas atuam mais próximas da sociedade (PAULA, 2005; WAMPLER, 2008).

Nesse processo busca-se atuar em defesa de uma esfera pública não estatal. Porém, segundo Paula (2005), seria um conceito de esfera pública não estatal relacionado com os objetivos de se criar espaços públicos de negociação e deliberação, no sentido de envolver e elaborar novos formatos institucionais, que possibilitem a cogestão e a participação dos cidadãos nas decisões públicas. Deste modo, políticas e ações governamentais passam a conferir identidade aos envolvidos, alterar o cotidiano das cidades e interferir na compreensão de cidadania. Toma-se por objetivo o aperfeiçoamento da democracia representativa e a consolidação do controle social, como mecanismos de participação direta e práticas de gestão que envolva ação conjunta do governo e de atores sociais relevantes (DASSO JÚNIOR, 2002).

Esse cenário possibilita, ainda, que, tanto o cidadão quanto os servidores dos órgãos públicos, conscientizem-se da importância do participar, de existirem espaços que permitam seu exercício e de estabelecer regras que democraticamente vão delimitar a prática (ARAÚJO; PEREIRA, 2012). Com isso, os envolvidos passam a compreender o processo o qual vivenciam, legitimando as ações por eles executadas. A participação torna-se voluntária, deixa, então, de ser imposta, concedida ou doada.

No entanto, França Filho (2008) aborda algumas limitações quanto ao modelo societal. Por se tratar de uma concepção ainda em desenvolvimento, do ponto de vista metodológico, a gestão social refere-se a um conceito em construção. Ainda faltam contatos e articulações políticas com outros grupos, a fim de evitar que a reprodução da lógica gerencial das empresas reduza o conteúdo dessas ações a um atributo meramente técnico. Há que se atentar, também, e combater com severidade aqueles indivíduos que, aparentemente, incitam e conduzem os grupos de discussões, mas na verdade, tentam manipular

as pessoas para atingir seus próprios interesses (TENÓRIO, 2005), usando do discurso participativo. Os resultados disso, em geral, são desastrosos e geram a perda do sentido dos projetos, descaracterizando seu conteúdo e sua finalidade.

França Filho (2008) chama a atenção, também, para o fato de muitas organizações que atuam no campo social, em especial as públicas, ainda permanecerem marcadas por práticas de poder despóticas, advindas da cultura política clientelista e personalística do modelo patrimonial. Este aspecto é um desafio expressivo que se coloca à gestão social, já que ela tem grande preocupação com a postura ética da conduta, com a valorização da transparência na gestão dos recursos e a ênfase na democratização das decisões e das relações na organização. Logo, é preciso direcionar para uma nova cultura política. Em resumo, o autor cita dois grandes desafios que se impõem à gestão social:

De um lado, superar uma cultura política tradicional que permeia o mundo das organizações sociais e empreender parcerias efetivas entre sociedade civil e poderes públicos que reconheça e estimule o real potencial dos grupos implicados, para além de uma mera atitude de instrumentalização da ação. Do outro, a necessidade de construção de um arcabouço metodológico que preencha os requisitos básicos de uma gestão genuinamente comprometida com o social. Isto implica não o desprezo absoluto por todo um aparato de conhecimento técnico- gerencial desenvolvido pela ciência administrativa de orientação estritamente gerencialista e corporativa. Mas, a adoção de uma abordagem crítica que permita discernir aquilo que pode ser incorporado do mundo privado e o que deve ser efetivamente constituído, resguardando desse modo o reconhecimento da especificidade, em termos de racionalidade, do universo da gestão social (FRANÇA FILHO, 2008, p. 33-34).

Muitas definições clássicas de administração, ainda vigoram atualmente da forma como introduzida por Henri Fayol no início do século XX, compreendendo a gestão a partir de quatro processos gerenciais básicos: o

planejamento, a organização, a direção e o controle. O que se tem buscado mudar nas práticas de gestão parece ser menos a definição em si e mais o conteúdo de cada um desses processos gerenciais. E esse parece ser um caminho para que a vertente societal consiga definir sua estratégia. É preciso buscar articular as dimensões econômico-financeira, institucional-administrativa e sociopolítica da gestão pública, visando adotar práticas de gestão, que tomem por base suas experiências que vão além das recomendações gerencialistas, como o Orçamento Participativo, por exemplo, e várias outras iniciativas de gestão pública que incorporam questões culturais e de inclusão social. Sem se ater ao intuito único de sobrepujar o modelo vigente.

Diante disso, observa-se que os diferentes modelos de administração pública mencionados, representam mais do que convenções adotadas pelos governantes na determinação da melhor forma de gerenciar. São estágios de evolução em que se encontra a sociedade na qual estão inseridos, pois, é possível notar que, na verdade, não houve superação dos antigos modelos com o estabelecimento dos novos. Os antigos, ainda, encontram-se imbuídos no âmago dos procedimentos administrativos do setor público, mesmo que, com novas roupagens. De repente, a saída para uma reforma do Estado e a adoção de um modelo mais adequado nem seja superar um modelo com a implementação de outro, mas, observar e trazer para os dias atuais o que há de melhor em cada um.

Ou seja, é preciso adotar uma abordagem mais crítica, que saiba discernir o que poderá ser incorporado do mundo privado no público, que saiba considerar as especificidades do setor público em termos de que este existe para o povo, devendo atuar em prol do bem comum e não da lucratividade. Logo, como destaca Tenório (2008), não é necessário negar a razão, mas utilizá-la a partir do consenso alcançado por uma ação social baseada na comunicação, no diálogo, para o conhecimento reflexivo e não puramente estratégico.